Especial Capa: Helena na Biblioteca

Em 11 de agosto de 1986, Helena Kolody participou do projeto “Um Escritor na Biblioteca”, criado naquele ano. Helena falou sobre poesia, processo criativo, leitura e assuntos relacionados à literatura. A conversa, que teve a participação, entre outros, de Paulo Leminski e Alice Ruiz, foi transcrita e publicada em livro. O Cândido publica, a seguir, alguns dos principais momentos do encontro.


Helena
O que é poesia?


A respeito de poesia, eu poderia citar o que Camões, que disse a propósito do amor: “é um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei como...” Eu nunca sei o que vou escrever, nem quando, nem como. Quando termino um livro, tenho a impressão de que nunca mais vou escrever. Quando menos espero e, nas ocasiões mais imprevistas, começo a sonhar palavras. Outro dia, estava fazendo o almoço, cozinhar também é uma arte, e assaltou- me um poema. Talvez, porque eu estivesse muito preocupada com o novo livro, pronto, para o prelo. Nunca estou satisfeita com o que escrevo. Quanto mais envelheço, mais aumenta o meu descontentamento. Sempre penso: será que não chegou a hora de parar? Difícil saber quando se deve parar de escrever.

Síntese

Talvez a poesia de hoje solicite mais a cooperação do leitor. Antigamente, o que eu escrevia era reflexo da realidade. Depois, aprendi que o poema cria sua própria realidade, diferente da realidade prática, embora esta seja a base do poema. Não sei por que alguns acham minha poesia de agora mais difícil. Ela não é hermética; é até muito clara. Só é mais sintética, mais essencial.

Eu e os outros

Tema e forma não podem ser separados, são como a alma e o corpo de um ser. Há dois tipos de temas em minha poesia: os que refletem meu próprio eu, confessionais; e os que mostram minha preocupação com os outros e com os problemas do mundo. Ou seja, temas do eu íntimo e do eu social. Uso muito imagens, metáforas, símbolos tirados da paisagem. Sou uma enamorada da beleza do mundo que me cerca.

Vício e leitura

Creio que uma das características do poeta é essa paixão pela palavra e pela leitura. A leitura amplia nossos horizontes, enriquece nossa arte. É preciso ler, ler e ler. Não só criar o hábito da leitura, mas o vício da leitura, porque o vício é uma necessidade imperiosa, um hábito compulsivo. Desde criança, cultivei o hábito de ler. No próprio Grupo Escolar Barão de Antonina, em Rio Negro, havia uma pequena biblioteca à disposição dos alunos. O estudante retirava o livro e levava para ler em casa. Li toda uma coleção que apresentava as grandes lendas da humanidade, trocadas em miúdos, para as crianças. Livros de papel acetinado, ilustrados com sugestivas policromias. A apresentação do livro é importante porque apura o senso estético da criança. Aqueles lindos livros de meu tempo de criança não só desenvolveram meu amor pela palavra, mas cultivaram meu amor pela beleza.

Imaginação


Ler é um exercício de imaginação. E uma imaginação muito viva é outra característica do poeta e do artista em geral. Ela é nosso poder criador; a capacidade de sonhar e de inventar, que precisa ser exercitada. Principalmente hoje, uma época tão tecnológica, em que a tônica de nossa atividade é o raciocínio. Por isso, hoje, mais que nunca, a arte, que se estriba na imaginação, é tão importante. Fico feliz quando vejo tanta gente escrevendo, pintando, esculpindo, compondo, cantando, cultivando as mais diversas modalidades da arte.

Frutos do tempo

Tão importante como o hábito de ler, é o hábito de conversar. Nasce-se poeta, como se nasce pintor ou músico. Mas o ambiente em que o artista se desenvolve, o diálogo que ele tem com os outros, estimula e aprimora a sua expressão. O poeta precisa testar o que escreve na sensibilidade do outro, e se animar a escrever quando conversa sobre literatura com os que também escrevem. Somos, até certo ponto, frutos de nossa época. Mudam os tempos, muda a poesia. Nestes nossos tempos novos, os poetas moços estão criando poesia. Tudo já foi feito, tudo já foi dito, mesmo dentro da poesia moderna. Por isso, o artista de talento inova e renova. O Paulo Leminski, por exemplo, está criando uma poesia diferente, só dele. Ele desintegra as palavras, cria termos novos, desmancha a própria lógica e inventa uma nova, só de seu poema.

Para todos

É importante que todo mundo escreva. Mesmo os mais fracos se enriquecem com a experiência. E o tempo se encarrega de fazer a seleção. Há também um outro fator positivo: os pequenos servem de medida de avaliação para o talento dos grandes. Os menores ficam apegados aos padrinhos de uma escola literária, ao passo que os maiores alçam voos altos e independentes. Aqueles só dizem o óbvio. Estes transcendem o assunto e a linguagem usual.

Conhecimento

O candidato a “feiticeiro inventor” deve ter algum conhecimento da técnica das diversas formas de poesia. Como pode avaliar um soneto, por exemplo, se não tem nenhum conhecimento de métrica e de rima? Assim, também, o pintor precisa conhecer desenho, perspectiva, a disposição das figuras na tela, a significação dos espaços, a vibração das cores, para depois lançar, com “engenho e arte”, duas ou três manchas magistrais na tela.

Utilidade da arte

Para que serve a arte? Não serve. Não tem uma utilidade pública, nem razão de ser. Pode-se dizer que nasce de uma sem-razão. A arte não persegue outro fim que não seja a sua própria realização, é tão indiferente à preocupação utilitária, tão avessa ao aspecto econômico, que sei de pintores que se recusam a vender seus quadros. Vocês não acham que parece um sacrilégio o autor vender seu livro? No entanto, precisa vendê-lo.

Poesia na prosa

Algumas páginas em prosa têm mais poesia do que um livro inteiro de certos poetas. Guimarães Rosa, por exemplo. Sagarana é pura poesia. Mesmo em Grande sertão: veredas há trechos políticos, nos quais até as frases têm ritmo e rimas internas. Creio que há poesia em tudo aquilo que nos proporciona uma emoção de beleza: poema, prosa, quadro, música.

Arte solitária

Eu mesma burilo o poema: suprimo, troco, altero. Se algum de vocês escreve, nunca deixe que os outros troquem ou incluam palavras em seu poema. Pode alguém dizer se ele está bom, ou não está; pode sugerir modificações. Você mesmo faça as alterações, porque seu instrumento de trabalho é a palavra. A palavra nasce da gente, uma vivência pessoal. A que você usa é muito diferente da que outro usa. Se ele coloca uma palavra no seu trabalho, esta fica sendo uma intrusa, uma pedra estranha na sua construção. Quando pedem a minha opinião, posso dar sugestões; mexer no poema, Deus me livre!As palavras do poema são como o sangue e a alma do autor.

Inesperado

A poesia, para mim, é como uma visita inesperada. Nunca sei como, nem quando vai chegar. Começo a sonhar palavras. Depois, não sei se está bom, ou se está fraco, onde falhou. Preciso da opinião daqueles que considero. O sonho sempre é mais bonito do que as palavras.