Especial Capa: Bastidores de um romance policial

Autor de vários livros de ficção, Flávio Carneiro descreve como foi escrever O campeonato, seu primeiro romance policial

Flávio Carneiro


Todo detetive é um leitor. O primeiro detetive de que se tem notícia na história da ficção policial, Dupin, criado por Edgar Allan Poe em Assassinatos da rua Morgue, decifra o mistério aparentemente indecifrável lendo as notícias sobre os assassinatos publicadas nos jornais e, também, claro, lendo os signos não escritos — porque, como todo leitor, um detetive não lê apenas palavras.

Quando me veio a ideia de escrever um romance policial, a primeira coisa que pensei foi: vou criar um detetive que goste de ler. Não um leitor comum, imaginei algo mais radical — um leitor viciado em leitura. E viciado em leitura de romances policiais. Assim surgiu o narrador de O Campeonato, André, e o seu vício maldito, que o leva a perder um emprego atrás do outro, o último deles numa biblioteca (foi pego algumas vezes lendo escondido num canto qualquer, enquanto os usuários aguardavam atendimento).

Como em todo romance ou conto, policial ou não, achar a voz certa para o narrador é tudo. Você pode ter um enredo chinfrim, se tiver um bom narrador terá uma boa história. Machado de Assis sabia disso (afinal, quem faz de Dom Casmurro um romance genial não é o enredo, bastante simplório, mas o narrador Bentinho).

Então precisava achar um narrador para o meu romance e pensei num narrador detetive, com algo diferenciado. Exagerei no gosto dele pela leitura e este ficou sendo um dos seus traços principais. O outro era a juventude. Não queria um detetive experiente, queria algo que fugisse um pouco à tradição, sem, no entanto, fugir ao gênero. Isso é importante: se você opta por experimentar demais, transgredir demais, acaba saindo do gênero policial. Eu queria fazer um romance policial com cara de romance policial. E que trouxesse alguma novidade. Esse foi então o motivo por ter criado um narrador detetive de 26 anos que sabe tudo de assassinatos, pistas, criminosos, vítimas, sem nunca, porém, ter investigado um caso sequer. Aprendeu tudo a partir de sua condição de leitor.

Criado o narrador — ou pelo menos seu esboço, porque o narrador só vai sendo criado mesmo quando você passa a colocar palavras em sua boca, ou seja, quando ele de fato começa a contar a história —, parti para o segundo passo: inventar seu assistente. Não é obrigatório que o detetive tenha um assistente. Na tradição do romance negro, por exemplo, muitas vezes não existe o assistente, que é também uma criação de Poe, revista e ampliada por Conan Doyle ao criar Watson, e está presente no chamado romance de enigma. Mas achei que seria interessante o André ter um assistente e pensei num personagem sem nome, que seria designado por seu apelido: Gordo.

O Gordo também é um leitor apaixonado por romances policiais, embora não chegue a ser obsessivo como o André, que o admira sobretudo pelo incrível autocontrole de trabalhar numa livraria (o Gordo é vendedor numa livraria no centro do Rio) e nunca ler durante o expediente.

Quis também fazer uma pequena inversão no que estamos acostumados a ver nos policiais clássicos, em que o detetive é mais astuto que seu assistente. Pensei no meu detetive como um leitor que sabe observar e articular signos — é isso que define o detetive, sua capacidade de saber o que observar e o que fazer com aquilo que observou —, e quis que seu assistente fosse um pouco mais frio na leitura das pistas e tivesse o raciocínio mais rápido.

Como o leitor do romance saberia dos fatos apenas pelo olhar do André, achei que seria uma boa estratégia colocar o Gordo como mais astuto. Dessa forma, assim como, em algumas cenas, André se surpreende com as sacadas do Gordo, o leitor também se surpreenderia. Este, aliás, é um velho truque, que Conan Doyle conhecia bem: o narrador é sempre aquele que sabe menos. O leitor acompanha a história pelo olhar de Watson e fica surpreso, como o narrador Watson, a cada dedução brilhante de Sherlock — se fosse o contrário, se soubéssemos o que Sherlock está pensando a cada página, talvez ele não fosse o herói que é, porque teríamos acesso a suas dúvidas e erros, como temos acesso às dúvidas e erros de Watson.

Fiz então essas pequenas mudanças no formato tradicional do gênero: um detetive viciado em romances policiais, jovem, inexperiente, e com um assistente que sabe mais do que ele. Faltava agora o cenário e isso não foi difícil porque esse romance é o primeiro de um projeto que chamei de Trilogia do Rio de Janeiro. A ideia era escrever três romances passados no Rio, cada um dialogando com um gênero popular diferente. Daí nasceu O Campeonato (policial), A Confissão (fantástico) e o recém-lançado A Ilha (ficção científica).

Decidi que o centro da cidade seria o bairro principal do cenário. Fiz isso porque é ali que os signos estão numa verdadeira festa da linguagem. Com seu casario antigo, prédios modernos, largas avenidas e ruelas de paralelepípedos, frequentados pelos tipos mais diversos que você pode imaginar, dos certinhos aos malucos de carteirinha, o centro do Rio é cenário perfeito para um romance policial (Rubem Fonseca e Garcia-Roza que o digam). André mora em Copacabana (outro bairro bom para um romance policial), mas é no centro que a maior parte das cenas acontece e é onde mora o Gordo.

Por fim, o enredo. Tinha uma ideia inicial básica. Precisando de grana e sem conseguir parar em nenhum emprego fixo, André resolve fazer um curso de detetive por correspondência (isso existe), já que entende tudo do assunto e assim poderia continuar lendo seus romances — como se fosse a trabalho. Ele e o Gordo colocam um anúncio no jornal. Aparece um primeiro cliente, querendo saber do paradeiro do filho, um adolescente que desapareceu sem deixar rastros. Não há pedido de resgate, nem motivos aparentes para o desaparecimento, o garoto simplesmente sumiu.

A partir daí fui montando a trama, que é bastante movimentada, envolvendo o irmão de André (os dois não se dão nada bem), mulheres sedutoras (romance policial tem que ter mulheres sedutoras), criminosos, charlatães (um escritor de autoajuda que escreveu um best-seller chamado As flores do bem), virgens (meninos e meninas), falcatruas, algumas pistas falsas. E com humor.

Há sempre alguma dose de humor nos romances policiais. Ferino, irônico, escrachado, paródico, o humor vai estar lá, um pouco que seja. Quis que meu romance fosse divertido, que tivesse os ingredientes pesados do gênero, mas também alguma leveza — que busquei ao optar por um narrador meio ingênuo, com traços quase românticos às vezes, e ao escolher o humor como parte integrante do estilo de narrar deste detetive.

Se funcionou ou não, se a dupla André & Gordo deu conta do recado, só cabe ao leitor dizer. Afinal não é ele, o leitor, o verdadeiro detetive?

Flávio Carneiro é escritor, autor do romance policial O campeonato (2009). Seu mais recente livro é A ilha (2011). Vive no Rio de Janeiro (RJ).