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A lacraia conversível ou o submundo da tradução

Tradutor de Dom Quixote, entre tantos outros livros de língua espanhola, Ernani Ssó cita inúmeros equívocos de traduções realizadas no Brasil nos últimos anos


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Ilustração: Marcelo Cipis

Toda tradução pode ser criticada. As palavras não são como os números. Um quatro vale tanto no Brasil como na China, hoje ou daqui a cem anos. As palavras têm mais de um sentido, têm sinônimos, ritmos, reverberações. As palavras variam na mesma língua, dependendo da época, da região. As palavras envelhecem, morrem, às vezes ressuscitam ou trocam de identidade. Quer dizer, uma boa tradução está mais para arte do que ciência e por isso o seu julgamento não é preto no branco, dando margem a muitos argumentos.

Ernesto Sábato disse que a tradução argentina de Orlando, de Virginia Woolf, é demasiado borgeana, porque logo no começo se fala num “vasto mouro”. Jorge Luis Borges achou curioso, porque a tradução foi feita por sua mãe, embora os editores tenham preferido usar o nome dele. De qualquer forma, a tradução brasileira de Orlando, assinada por Cecília Meireles, também fala num “vasto mouro”. Sentiram o problema?

Agora, no feijão com arroz de todo dia, há erros absurdos, tão objetivos como bofetadas na cara do leitor. Mas vamos repartir a culpa. Uma tradução sai das mãos do tradutor e passa pela leitura de um editor que, para estar no cargo, espera-se, deve ser sensível e inteligente. Depois ela ainda passa por uns dois ou três revisores que devem saber português para serem revisores. Se eles topam com algo estranho, comunicam ao editor que, se não pode resolver o caso sozinho, fala com o tradutor ou outra pessoa. O que não se sabe, se pesquisa. Parece um esquema seguro, não parece? Mas basta folhear algumas páginas de meia dúzia de livros para termos dúvidas.

Antônio Callado traduziu O amor nos tempos do cólera, de García Márquez, para a editora Record. Foi muito elogiado, inclusive por Paulo Francis. Fui dar uma espiada para ver se aprendia alguns macetes. Na primeira página, tem a cena do fotógrafo e do cachorro mortos. No original, se diz que o cachorro estava “amarrado de la pata del catre”, quer dizer, amarrado à ou na perna da cama. Segundo Callado, o bicho estava “atado pela pata ao catre”. Costume exótico da Colômbia? Não, cochilo bobo. Na segunda página, me cansei do cotejo. Não encontrei nada mais pitoresco, mas um punhado de exemplos que provam que os elogios à tradução foram feito sem o trabalho da comparação com o original.

No segundo parágrafo de 62 — Modelo para armar, de Julio Cortázar, se fala em “cadena de preguntas” (cadeia, corrente de perguntas). Algumas frases depois, isso repica em “otro elo a situar”. Glória Rodríguez, na sua tradução para a Civilização Brasileira, optou por “sequência de perguntas”. O elo se perdeu.

Mesmo autor, mesma tradutora, mesma editora: Histórias de cronópios e de famas. Na historinha “Conservação das lembranças”, se diz que os famas, “após fixada a lembrança com cabelos e sinais, embrulham-na da cabeça aos pés”. “Pelos y señas” é uma expressão — os famas fixam as lembranças em todos os detalhes, tim-tim por tim-tim.

No primeiro capítulo de Rayuela, há uma frase sobre os “matadores de brújulas”. Fernando Castro Ferro, na sua tradução também para a Civilização Brasileira, teve um ataque de realismo e “corrigiu” Cortázar para “destruidores de bússolas”.

Alguém que anda por aí, também do Cortázar, foi traduzido por Remy Gorga Filho para a Nova Fronteira. No conto “As caras da medalha”, se lê: “Em um café, depois de brigarmos rindo para saber quem pagaria a conta, olhamo-noscomo velhos amigos, inesperadamente camaradas, nos dissemos palavrões privados de sentido, garras de ossos brincando”. O que vocês acham? Tenho minhas dúvidas de que as garras de ossos possam passar por poesia. A mim causa um incômodo instantâneo. Alguma coisa me parece fora de esquadro.

É o seguinte: o Remy confundiu urso, “oso” em espanhol, com osso, “hueso”, em espanhol. Garras de ursos brincando pode não ser uma grande metáfora, mas, convenhamos, indica claramente o que se passa com aquele casal.

Agora, me parece que o Remy cometeu um erro mais sutil no título: “As caras da medalha”. Cara é uma palavra bastante forte em português. Entra em mais de uma expressão: cara de pau, cara de tacho, cara a cara, dar as caras, com a cara no chão, encher a cara, fechar a cara, estar na cara ou de cara, enfim, a lista é longa. Tudo isso pesa. Dá um ar mais popular ou mais cru à palavra. Mas, mais importante, quando falamos cara, pensamos no rosto todo. Os lados do rosto são as faces. Tanto que a expressão duas caras quer dizer falta de sinceridade, não o lado esquerdo e o direito. “As faces da medalha” não soa melhor e não é mais plausível? Mas se o conto tivesse sido escrito em português, provavelmente se chamaria “As faces da moeda”, nunca da medalha.

Nos contos de Borges, seguido aparecem “orilleros”. “Orilla” é margem. Vai daí, Hermilo Borba Filho, na tradução de O informe de Brodie, para a Globo, no primeiro parágrafo de “A intrusa”, nos deu “ribeirinhos”. Não há rio no conto. Carlos Nejar, também para a Globo, no volume Ficções, no primeiro parágrafo de “Funes, o memorioso”, preferiu “margeador”. Segundo o Aurelião, margeador é alguém que trabalha em gráfica. “Orillero” é o morador dos subúrbios, ou dos arredores da cidade, geralmente meio marginal. Nesse mesmo conto, na primeira frase, “con una oscura pasionaria en la mano” se transforma em “com um escuro livro da paixão nas mãos”, o que é muito para uma simples flor de maracujá.

Falando em Nejar, ele declarou ao jornal , de Porto Alegre, na época da morte de Borges, que não teve problema nenhum para traduzi-lo. Acredito. Abrindo Ficções quase que em qualquer página se vê que quem teve problema foi Borges.

Pepe Escobar traduziu Os conjurados, último livro de Borges, para a Editora Três. Disse que tentou não atraiçoar Borges na medida do possível e que traduzi-lo foi — e é — uma artimanha da libido. Vejamos um exemplo ao acaso. Há quase que dois ou três por página. Um verso do poema “Todos os passados, um sonho”: “una mano templando una guitarra” (uma mão afinando um violão) se tornou, na versão libidinosa, “uma mão moderando uma guitarra”. Certo, “templar” também é moderar, mas no caso não faz sentido nenhum. Ler o verbete inteiro no dicionário não está dentro do possível?

Ivan Junqueira traduziu para a Rocco o Prólogos com um prólogo dos prólogos, de Borges. No prólogo de A invenção de Morel, no segundo parágrafo, falta a seguinte frase: “Essa liberdade plena acaba por equivaler à plena desordem”. Parece grave? As traduções de Kafka feitas pelo Torrieri Guimarães têm trechos inteiros faltando. É que a parte mais chata da tradução, depois do pagamento irrisório e atrasado, é o cotejo do texto com o original. Geralmente o tradutor deixa isso para o editor e o editor jura que tinha deixado para o tradutor.

No próximo parágrafo desse mesmo prólogo, há este trecho: “se hundió en el corazón de laberintos hechos de laberintos” (mergulhou no coração de labirintos feitos de labirintos). Segundo Junqueira: “se fundiu no coração de labirintos”. Segundo Vera Neves Pedroso, que traduziu A invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, também para a Rocco: “mergulhou no âmago de labirintos”. Depois o pobre leitor pensa estar se deliciando com as sutilezas do estilo de Borges.

Nas novelas de Georges Simenon, encontrei mais de uma vez jornal diário (“quotidien”) traduzido por cotidiano, como em O presidente, na tradução de Áurea Weissenber, para a Nova Fronteira. Esse mesmo erro aparece em Georges Simenon – Uma biografia, de Pierre Assouline, traduzido para a Siciliano por Raul de Sá Barbosa. O melhor foi um “cotidiano de grande circulação”, mas não lembro em que novela.

Na página 237 de Santa Evita, de Tomás Eloy Martínez, traduzido por Sérgio Molina para a Companhia das Letras, se lê a seguinte frase: “Era um desses momentos em que a tarde está indecisa, conforme as palavras de Cifuentes: a luz oscila entre o cinza, o púrpura e o laranja como uma vaca boba”. Vaca boba, como? Fui ao dicionário: não, a vaca não era boba, era a vaca da festa de casamento. “La vaca de la boda” é uma expressão que nasceu de uma festa medieval, tipo farra do boi, em que a multidão espanta uma vaca de um lado para o outro, até a pobre não saber pra que lado correr.

É fácil o olho da gente trocar uma letrinha e assim formar outra palavra. Por isso é preciso reler. Numa releitura quase sempre um erro desses fica claro. Digo quase porque acontece às vezes de o erro fazer sentido dentro da frase. Por isso, além de reler, temos de comparar frase a frase a tradução e o original.

Agora, a obra-prima pertence a uma edição da Artenova. Na página 25 de O olhar de despedida, de Ross Macdonald, traduzido por Marcos de Almeida, uma garota espia num estacionamento uma “lacraia conversível”. Suponho que se referisse àqueles carros que se chamavam baratas. Mas, mesmo assim, é forte. A lacraia tem mais de noventa patas que a barata.

Esses erros são sinal do quê? Ignorância das duas línguas, principalmente do português? Se em alguns casos é exatamente isso, na maioria a culpa parece estar na pressa, no desleixo, no desrespeito e numa autoconfiança à prova de balas. Qualquer revisão digna desse nome não deixaria passar nada disso.

Agora, talvez o mais perigoso não sejam esses erros cabeludos. Afinal, qualquer um, com dois dedos de testa, se dá conta de que uma lacraia conversível é coisa de ficção científica. Talvez o mais perigoso sejam as pequenas traições. Como Fernando Castro Ferro liquidando a poesia dos matadores de bússolas. Como Ivan Junqueira e Vera Pedroso mergulhados no coração de enganos e resumos estúpidos. Como no elo perdido de Glória Rodríguez. Como nas caras das medalhas do Remy Gorga Filho.

Em primeiro lugar, esse tipo de erro é muito mais comum. Para cada lacraia conversível — ou descapotável, se for em Portugal —, há dezenas, centenas de idiotices sem perdão, temo que algumas cometidas por mim mesmo. Pior, o leitor que não tem acesso ao original, engole tudo, porque no fim das contas o texto faz sentido. É mais pobre, mais feio, mas faz sentido. Essa corrupção estilística é um caso sério. Literatura não se faz com mera informação

Ernani Ssó traduziu, entre muitos, Dom Quixote, de Cervantes, para a Penguin-Companhia, e é autor do romance Como o diabo gosta, a sair pela Cosac Naify. Vive em Porto Alegre (RS).