Especial | Capa

Reconstruir um texto original

Em alta no mercado, representando a metade dos livros publicados pela editoras brasileiras, as traduções viabilizam ao leitor o acesso a obras e culturas de outros países, do presente e de outras épocas, a partir do exaustivo trabalho dos tradutores


Marcio Renato dos Santos

s

Ilustração: Marcelo Cipis

Luci Collin define o tradutor como o pontifex, ou seja, um “construtor de pontes”, “aquele que recria um texto em outro idioma e permite que o sentido do original seja transposto, que exista e resista em outra cultura.” A tradutora sabe que o ofício não é fácil. Ela conta, inclusive, sobre a sua experiência em sala de aula, no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “A experiência de confrontar resultados é reveladora. Há situações em que um mesmo texto é lido e interpretado de maneiras muito diferentes e as soluções são surpreendentemente díspares. Uma aula de tradução é um fórum que oscila divertidamente entre momentos de ‘sucesso’ e ‘fracasso’, ambos sempre de grande inspiração”, diz Luci, que ainda acrescenta: “O tradutor deve sempre considerar que as soluções por ele encontradas são apenas as suas, não melhores do que outras, nem definitivas.”

Tradutor do russo, incluindo o romance Guerra e paz, de Tolstói, e do inglês, o carioca Rubens Figueiredo afirma: toda tradução compreende alguma perda. “Só que isso não é exclusividade da tradução: qualquer transposição da experiência para a linguagem compreende uma perda de informação, em relação à fonte, ou seja, à experiência em si”, argumenta o carioca que traduz desde 1991. De acordo com Figueiredo, o que é chamado de tradução seria entendido de maneira mais própria se abrangesse toda e qualquer manifestação de linguagem. “Quero dizer, a expressão original de um pensamento ou de um relato já é uma tradução desde sua origem, pois o seu tema não nasce como texto escrito, e sim como experiência mental ou física. E também nessa transposição, em primeira instância, alguma perda é inevitável”, argumenta.

A complexidade de traduzir é definida pelo carioca Paulo Henriques Britto, considerado um dos mais competentesprofissionais em atividade no país, em uma frase: “O tradutor tem que tomar diversas decisões por minuto”. E, para fazer tais escolhas, quem traduz deve ter algumas qualificações. A principal delas, na opinião de Britto, é saber redigir muito bem na língua-meta — o idioma para o qual se traduz. “Todo o resto, até mesmo o conhecimento da língua-fonte [o idioma do texto original], é secundário em relação a essa exigência”, garante Britto — e o ponto de vista é endossado por outros tradutores brasileiros.

Reescrever

Um dos desafios da tradução é: ser fiel ou recriar o texto original? Paulo Henriques Britto analisa que não se trata de uma opção binária, e sim de situar- -se num continuum entre dois extremos. “Tem que haver respeito ao original, poissem ele o resultado não será uma tradução, mas se for levado às raias da loucura o resultado ficará ilegível. Já a liberdade de reescrita é fundamental. Toda tradução é uma reescrita”, afirma.

Rubens Figueiredo entende que os critérios de tradução mudam com o tempo. “São valores históricos, condicionados pelas relações sociais. Há uns duzentos anos, e até bem menos que isso, traduzir quase equivalia a fazer uma adaptação. Nos últimos cem anos, prevaleceu o critério de procurar a fidelidade na tradução, ainda que apenas idealmente”, diz. Para ele, o mais importante é conseguir entender o livro. “E também poder ao menos imaginar como um leitor hipotético do original, em seu país, sente e reage ao texto e a seus movimentos. Mas, como eu disse antes, o conceito de boa tradução varia no tempo histórico.”

Já no que diz respeito ao que seria mais difícil traduzir, prosa ou poesia, há um consenso entre os profissionais: cada gênero e cada autor têm as suas complexidades. “As demandas postas a um tradutor de prosa ou de poesia são de ordens diferentes e não vale muito compará-las. E as demandas específicas ligadas a um determinado autor são de uma natureza muito especial: o código próprio, a dicção, a voz e a expressão estética contextualizadas, a técnica literária explorada e as inovações trazidas por um determinado autor. São, enfim, muitos elementos conjugados”, comenta Luci Collin.

a

Rubens Figueiredo já traduziu Paul Auster, Dashiell Hammett, Michael Ondaatje, entre outros, mas prefere os clássicos russos. “São livros incomparáveis, cuja fonte é a vivida, sincera e muito refletida preocupação com a vida das pessoas”, afirma. Foto: Kraw Penas


Para exemplificar o que diz, a curitibana cita algumas experiências. “Traduzir um romance de e. e. cummings, A cela enorme, foi um desafio pelo que o autor investe nos sentidos que brotam do cruzamento de diversas línguas (cummings mistura inglês, francês, alemão, e polonês no livro) e de diversas culturas, sempre com uma tensão tragicômica.” Já a tradução de textos de Gertrude Stein — Luci traduziu, em parceria com Dirce Waltrick do Amarante, O que você está olhando (teatro) — ela diz ter sido estimulante pelas características que marcam a voz de Stein como autora, que desestabiliza o próprio sentido da escrita. “E traduzir a poesia do avassalador Vachel Lindsay foi a experiência mais emocionante que já tive como tradutora porque ele mistura música e literatura, gerando um texto de uma sonoridade preciosíssima.”

Denise Bottmann, curitibana radicada em Registo (SP), conta que, recentemente, teve uma experiência incomum ao traduzir Moneyball, ensaio jornalístico sobre beisebol, de Michael Lewis: “Contratei um especialista para me orientar na área, visto que não entendo nada de beisebol. Foi até meio imprudente de minha parte aceitar fazer essa tradução, mas foi uma relação tão legal, séria e enriquecedora. Fico sonhando em desenvolver um novo tipo de trabalho similar”. Denise diz que traduzir é uma delícia. “Além de ser a coisamais importante que existe. Já pensou um mundo sem acesso às línguas, obras e realizações de outras pessoas, de outras terras, culturas e épocas diferentes das nossas? Não dá nem pra imaginar.”

Mercado em alta

As obras traduzidas ocupam, em média, a metade do catálogo das editoras brasileiras. Isto vale para os 4 mil títulos, dos quais 2 mil são traduções, publicados pela Companhia das Letras em quase 30 anos de atividades, e também para o projeto editorial da Iluminuras que, desde 1987, viabilizou 350 traduções entre as 700 obras editadas. Editor na Companhia das Letras, Leandro Sarmatz conta que este ano a empresa vai colocar 150 novas traduções no mercado. Ele comemora o bom momento, inclusive o sucesso da parceria da Companhia com a Penguin, uma das maiores editoras de literatura clássica do mundo.

“Publicamos novas traduções de Homero, Jane Austen, Jack London, Flaubert, Joyce, Maquiavel, entre outros, todos estes autores já contando com outras edições no Brasil. Acreditamos que, graças às características das edições Penguin/ Companhia — seja por causa da qualidade da tradução, dos aparatos editoriais como introdução e notas —, podemos trazer uma nova luz a estes autores e livros que já circulavam previamente”, diz.

Sarmatz também chama atenção para o amadurecimento da tradução no Brasil citando o caso da literatura russa: “No passado, as traduções nacionais dos grandes autores russos do século XIX vinham contrabandeadas do francês ou do inglês. Hoje podemos ler diversas obras de Dostoiévski e Tchekhov em traduções feitas diretamente do original. Isso é uma amostra de um amadurecimento da prática e do mercado de tradução.”

asd

Denise Bottmann reconhece que o mercado se profissionalizou com a presença de tradutores e editores excelentes, mas, mesmo assim, afirma: “É difícil encontrar alguma tradução que não contenha algum erro de entendimento ou de modulação” . Foto: divulgação

Samuel Leon, editor e proprietário da Iluminuras, a exemplo de Sarmatz, elogia as traduções realizadas atualmente no Brasil. “Sobretudo se compararmos com a produção da década de 1980”, observa. Leon analisa que há quatro décadas, apesar de trabalhos de qualidade pontuais, as traduções, em média, eram irregulares, seja pela ausência de uma edição final cuidadosa ou por haver poucos projetos buscando apresentar ao leitor brasileiro a obra completa de um determinado autor. “Avançamos muito. Hoje a realidade é outra.”

Os tradutores também percebem a profissionalização do mercado. Paulo Henriques Britto começou a traduzir em 1973 e, desde então, já verteu 111 títulos do inglês para o português, de Philip Roth a Jonathan Swift. “Em comparação com a situação que encontrei quando comecei nos anos 1970, a coisa melhorou muito. Paga-se melhor e às vezes respeitam-se os direitos autorais do tradutor. Mas ainda estamos bem longe de uma situação ideal”, avalia.

Denise Bottmann está no mercado desde a década de 1980, calula ter traduzido 120 títulos e tem a mesma percepção de Britto: as condições de trabalho melhoraram. Ela lamenta que, apesar de traduzir do espanhol, do francês e do italiano, por causa da demanda, realiza mais traduções do inglês. Rubens Figueiredo, especialista em russo, também se depara com a situação de Denise. “O motivo é a dominação do capital americano e, acessoriamente, do inglês. Os livros, como a arte, são, no campo simbólico, instrumentos dessa dominação”, reflete.

Figueiredo é crítico em relação à profissionalização do setor. “Será que a valorização do tradutor entre nós não será, infelizmente, em larga medida, uma expressão indireta do avanço avassalador do processo de dominação do qual somos objeto?”, questiona. No entendimento dele, apesar da eficiência desejada pelas relações de trabalho “desumanizadas”, o principal é “o tradutor não ser tratado como máquina”.