Especial | Caio Fernando Abreu

Anotações sobre um amor urbano

Vinte anos após a morte de Caio Fernando Abreu, o legado do escritor é cada vez mais lido, discutido, encenado e até mesmo compartilhado nas redes sociais. Os contos, romances, crônicas, textos para teatro e cartas dele repercutem, de acordo com a crítica, porque tratam, entre outras questões, dos afetos humanos


Marcio Renato dos Santos
Reprodução
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O poeta, crítico e professor da Uerj Italo Moriconi afirma que os afetos humanos estão presentes em toda a obra de Caio Fernando Abreu.

Italo Moriconi afirma que as duas principais linhas de unificação entre todos os gêneros praticados por Caio Fernando Abreu (1948-1996) são a referência melodramática — “aqui tomada em sentido totalmente positivo” — e intimista, e a capacidade do autor de criar metáforas simples, e ao mesmo tempo elaboradas, e fazer dessas metáforas os elementos que conduzem a narrativa. “Os assuntos são sempre os afetos. Mais que propriamente as paixões, são os afetos”, diz Moriconi, poeta, crítico e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). 

O comentário de Moriconi, apontando que Caio tratou literariamente dos afetos humanos, talvez ajude a entender, por exemplo, o motivo da popularidade do legado do escritor gaúcho, morto há duas décadas. Frases do autor, ou atribuídas a ele, fazem sucesso nas redes sociais. 

“A obra de Caio ainda atrai jovens inquietos, artísticos, amantes da leitura, vivendo intensamente os embates do afeto e da perturbação de gênero. O fato de ser tão recortada, imitada, falseada vem da grande comunicabilidade de sua obra e do fato de que sua assinatura assumiu um lugar popular, um lugar no imaginário comum, lugar esse potencialmente mítico, como ocorre com Clarice Lispector, Jorge Luis Borges, Mario Quintana, Paulo Leminski, até mesmo com Ana Cristina Cesar”, argumenta Moriconi. 

A exemplo do estudioso da Uerj, a professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Tânia Pellegrini também diz que a atual “popularidade” do autor se deve ao fato de a obra dele encontrar eco nas inquietações dos jovens que frequentam as redes sociais. “Sobretudo aqueles que são contrários às regras do convencionalismo burguês, aqueles que 'ouvem' nos textos de Caio ecos das próprias inquietações a respeito de questões de gênero, de raça, desigualdades sociais, em um momento da história brasileira em que essas questões são discutidas com mais clareza e vigor do que antes”, comenta Tânia. 

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Autor de Infinitivamente pessoal: a autoficção de Caio Fernando Abreu, O biógrafo da emoção, a primeira tese de doutorado sobre Caio Fernando Abreu defendida em 2008 na Universidade de São Paulo (USP), Nelson Luís Barbosa considera desagradável esse boom do autor nas redes sociais. “A meu ver, na medida em que qualquer frase passa a ser citada como de sua autoria, até mesmo as coisas mais bobas ou pueris”, critica. No entanto, admite que há um componente interessante nessa repercussão da obra de Caio no universo virtual. “Por que será que ele é tão citado, ou por que suas supostas frases servem tão bem para ‘amparar’ as mensagens ou os pensamentos pretendidos nas redes sociais? Arrisco a considerar que isso tem a ver com a verdade que Caio sempre tentou imprimir em seus textos”, diz Barbosa.

Construção autoficcional 

No entendimento de Barbosa, os textos de Caio, “numa postura altamente contemporânea e até hoje bastante inquietantes”, borram as fronteiras entre os gêneros, a ponto de um conto, uma peça, um texto avulso, uma crônica e até mesmo uma carta dialogarem entre si. “Ou seja, uma carta de Caio pode muito bem ser lida como um conto, ou vice-versa”, diz. 

Barbosa conheceu a obra de Caio na década de 1980. Leu os contos de Morangos mofados (1982) e as novelas de Triângulo das águas (1983) — obra que conquistou o Prêmio Jabuti, entre outros títulos. Conviveu, brevemente, com Caio a partir de 1986, período em que o escritor escrevia crônicas n’O Estado de S.Paulo — na época, Barbosa trabalhava no setor de publicidade do jornal. Mas só iria estudar academicamente a literatura do autor no século XXI. 

A tese de doutorado surgiu, entre outras inquietações, com a finalidade de questionar a recepção da literatura de Caio. “Sempre achei que a obra dele era recebida de forma equivocada. Sobretudo em relação ao equívoco de que sua obra era considerada gay, certamente em razão de suas declarações e de ele se assumir homossexual publicamente, ainda mais depois da fatalidade que o atingiu, no cerne de todo o preconceito com a questão da Aids e o mundo gay”, conta. 

Barbosa também se incomodava, por exemplo, com definições — como “literatura autobiográfica” — atribuídas à ficção de Caio. “Ele vivia mais da literatura do que propriamente da realidade. Havia nele uma certa incompatibilidade com a vida real, com seus tempos, seus espaços, suas cobranças, seus apertos e limites. Dessa forma, comecei a entender que aquele autor que por vezes se mostra na sua obra não é necessariamente o próprio Caio, mas uma fantasia de si mesmo, ou do amor, ou da vida, mas sempre ancorada numa vivência ou no desejo de uma vivência. Ou seja, literatura por excelência!”, observa Barbosa, cujo trabalho acadêmico será publicado, em forma de livro, pela Editora Hucitec ainda no primeiro semestre deste ano.

Alguns diálogos 

No texto “Adolescendo à beira do Guaíba”, de 2007, que acompanha uma reedição de Limite branco, o primeiro romance de Caio, Italo Moriconi afirma que o autor gaúcho dialogou literariamente com Clarice Lispector, Hilda Hilst e Graciliano Ramos. Agora, em 2016, Moriconi confirma o comentário. 

“Os autores com cujas linguagens Caio mais dialogou foram esses aí mesmo. Mas observamos que o processo de amadurecimento de Caio representou sua libertação de qualquer influência deles, tendo desenvolvido sua própria linguagem, não diria inconfundível — porque ele escreveu na língua literária dos anos 1970 e 1980, mas certamente dotada de singularidade”, diz. 

A professora da UFSCar Tânia Pellegrini compartilha do ponto de vista do estudioso da Uerj, e comenta: “O mais claro diálogo [de Caio] acontece com Clarice Lispector, de quem herda o mergulho nas profundezas da subjetividade, no reconhecimento e (re)construção de si mesmo, na contiguidade imediata com o viver, na estetização da linguagem para narrar o quotidiano banal, na insuficiência da palavra.” 

Outro diálogo do escritor, acrescenta Tânia, se dá com Graciliano Ramos e a sua meticulosa metodologia construtiva. “Além disso, certamente outros grandes mestres modernistas inspiram seu discurso, como herança e revivescência de uma geração que acreditava na elaboração literária criteriosa acima de tudo”, completa. 

Moriconi ainda observa que, no quadro da história literária, Caio pertence à vertente que ele define como “clariceana”: “Não no sentido de escrever como Clarice Lispector, mas no sentido que escreve a partir de um ponto de vista não machista, não heteronormativo. Isso é definidor do lugar de Caio na literatura brasileira.” Já o editor da L&PM, Ivan Pinheiro Machado, analisa que Caio ocupa um lugar sui generis no panorama da literatura brasileira. “Hoje eu vejo como ele foi à frente do seu tempo e como foi quase um solitário no seu gênero. Na época, os poetas estavam mais comprometidos com a ideia da vanguarda e o Caio, na minha opinião, fez o seu caminho solitário como ficcionista. Seguiu pelo ‘caminho do meio’, captando as vozes do seu tempo, lírico e libertário, transformando uma realidade extremamente rica e complexa, as décadas de 1970 e 1980, em grande literatura”, afirma. 

A L&PM tem exclusividade para publicar em formato pocket — de bolso — 4 títulos de Caio: Triângulo das águas (1983), o livro de contos O ovo apunhalado (1975), a reunião de dispersos Ovelhas negras (1995) e Fragmentos (2000) — atualmente, a Nova Fronteira publica em livros de formato tradicional toda a obra do escritor, incluindo textos para teatro, crônicas e a ficção. 

O relacionamento do editor gaúcho com Caio teve início a partir de um mal entendido. “Curiosamente o conheci a partir de uma carta, onde ele me esculhambava, porque havíamos incluído um conto seu numa antologia de autores gaúchos publicadas pela L&PM. Ele ficou furioso, mas o Caio Graco, o seu editor na Editora Brasiliense, tinha me dado autorização”, conta Pinheiro Machado. Uma vez esclarecida a questão, em 1976, eles se tornaram amigos. 

Quase uma década após o incidente, Caio planejava publicar uma biografia de Emma de Mascheville (1903- 1980), astróloga alemã que viveu em Porto Alegre. O escritor procurou Ivan Pinheiro Machado. “Fizemos várias reuniões, o Caio chegou a fazer um belíssimo trabalho, mas devido a influência dos familiares da famosa astróloga, o projeto não saiu da gaveta. Foi uma pena”, lamenta o editor da L&PM.

Caio rock and roll 

A literatura de Caio é cada vez mais adaptada para outras linguagens. O romance Onde andará Dulce Veiga? (1990), vencedor do prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), rendeu um longa-metragem, com título homônimo, dirigido por Guilherme de Almeida Prado. “Aquele dois”, conto de Morangos mofados, foi filmado por Sérgio Amon. Já o documentário Sobre sete ondas verdes espumantes, dirigido por Bruno Polidoro e Cacá Nazario, mostra cidades onde o autor viveu, como Porto Alegre, Paris e São Paulo, aproveitando trechos da obra do escritor e depoimentos de amigos de Caio. 

O ator e diretor de teatro Gilberto Gawronski já levou aos palcos contos do livro Os dragões não conhecem o paraíso (1988), vencedor do Prêmio Jabuti, entre os quais “À beira do mar aberto” e “Dama da noite”. No entanto, uma das montagens cênicas mais festejadas é a do conto “Aqueles dois”, realizada pela Cia Luna Lunera, de Belo Horizonte. A ficção mostra o encontro dos personagens Saul e Raul em um ambiente de trabalho e a respectiva hostilidade de quem está ao redor. 

Em texto publicado no Jornal do Brasil, o crítico Macksen Luiz afirmou: “Os atores-dramaturgos-cenógrafos-criadores desta coletivização de instigantes propostas dão corpo e voz à orgânica transposição do literário para o cênico, numa íntegra unidade onde não há lugar para destaques. Cláudio Dias, Marcelo Souza e Silva, Odilon Esteves e Rômulo Braga formam núcleo de criação vigoroso, em que ideias se transformam em teatro pulsante.” 

O crítico Jefferson Lessa também comentou, no jornal O Globo, a montagem: “‘Aqueles dois’ é um espetáculo sobre solidão, fragilidade, amizade. Longe de disfarçar a temática homossexual (é mais que claro que os rapazes se desejam), não faz dela um discurso panfletário, optando por mostrar, com inteligência e sensibilidade, um bonito poema teatral.” 

Italo Moriconi observa que o teatro, “o caráter dramático e melodramático da prosa de Caio”, merece ainda mais atenção, enquanto Tânia Pellegrini sugere que os estudiosos pesquisem nos textos de Caio as marcas, “profundas”, do contexto histórico em que o autor viveu. 

Ivan Pinheiro Machado acrescenta que Caio Fernando Abreu foi um artista que soube entender as transformações do seu tempo. “Sua literatura esteve afinada com os movimentos de vanguarda e com as inquietações, frustrações e esperanças de uma geração que vivia sob uma ditadura e ansiava por liberdade”, afirma. 

O editor da L&PM analisa que a obra de Caio se caracteriza, entre outras nuances, por um extremo apuro formal e temática cosmopolita, na medida em que ele foi um escritor urbano, o que não era comum naquele contexto no Brasil: “Caio estava mais para o rock and roll, enquanto a maioria dos autores buscava a tal ‘brasilidade’ no romance histórico ou no romance regionalista.” 

Vida e morte na obra de Caio F.

Autor de infinitivamente pessoal: a autoficção de Caio Fernando Abreu, o biógrafo da emoção, tese de doutorado sobre Caio Fernando Abreu que será editada em formato de livro nos próximos meses, Nelson Luís Barbosa comenta um aspecto do legado do escritor gaúcho

Arquivo UFRGS
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Em toda a sua vida, Caio jamais se omitiu em viver suas histórias ou as histórias que seu tempo apresentava para ele: foi hippie quando jovem, dark e punk mais maduro, experimentou drogas. Viveu em comunidades no Brasil e na Europa, viveu como estrangeiro fora e aqui no Brasil. Assumiu sua homossexualidade, mas nunca condicionou sua sexualidade a papéis previamente estabelecidos, amou mulheres, homens, manteve uma relação de amor e ódio com São Paulo, Porto Alegre, Rio, com sua família, com seus parceiros... 

Viveu intensamente suas paixões, suas viagens, abandonou empregos para escrever, sonhou viver apenas de literatura — amava música, artes em geral... Escreveu muito, traduziu, compôs, enfim, foi uma pessoa de seu tempo, com todas as letras que podia ou queria ser. Podia ser amado incondicionalmente, mas também ser muito odiado, mas tudo por sua verdade, por sua natureza transparente. Enfim... 

A sua história com a Aids aconteceu como aconteceria a todos/muitos de sua geração, que se entregavam a viver suas histórias sem medo e sem risco. Quando a doença realmente surgiu em sua vida (embora já a visse próxima desde sempre), na verdade não foi uma novidade, mas sim o ponto de inflexão para o qual ele sempre caminhava, antevisto na morte como um dos temas que lhe eram caros.

Embora muitos insistam em ver nessa “fatalidade” o grande momento de Caio F., chegando mesmo a explorar o fato como uma celebridade mórbida em sua época, costumo dizer que isso é um imenso engano, porque Caio jamais se utilizou dessa contingência para se promover ou transformá-la em um atrativo para sua obra. 

Caio optou por viver essa realidade como sempre viveu sua vida, escrevendo, produzindo e observando a vida, ainda que esta aos poucos lhe fosse escapando. 

Esta sua atitude nunca o levou a fazer da doença um panfleto ou um tratado sobre como enfrentá-la, ou lastimá-la. Muito contrariamente, sempre a tratou, como de resto toda a sua vida, como uma questão literária, e foi fazendo literatura que a enfrentou até o fim da vida. E foi assim também que corajosamente abriu caminhos para que a doença deixasse de ser vista como um castigo, ou mesmo uma irreversibilidade, como de fato acabou de fato se tornando. Pena foi ele não ter conseguido atingir esse momento de reversibilidade da doença, pois certamente estaria escrevendo muito e cada vez melhor. 

Esta condição certamente fez de Caio o primeiro autor a inserir em sua literatura a sua vida, mas também a sua morte. E raros são os autores que puderam assim elaborar suas existências.