Especial | Bibliotecas

Mentes em fuga

A reportagem do Cândido visitou uma penitenciária para entender como funciona o projeto de remição de pena por meio da leitura no Paraná


Omar Godoy

Fotos: Kraw Penas
mentes em fuga

Fernando lê dois livros por mês, um para o projeto e outro por interesse pessoal.

As sextas-feiras costumam ser muito aguardadas por um grupo de detentas do Complexo Médico-Penal do Paraná, em Pinhais, na Região Metropolitana. É dia de visita, mas elas não recebem amigos ou familiares. Quem leva algum alento à penitenciária é a professora responsável pelo projeto Remição de Pena pela Leitura, do Departamento de Execução Penal (Depen).

Semanalmente, a funcionária concursada sugere livros, promove leituras coletivas e ajuda as presas a produzir os textos que podem diminuir o seu tempo de reclusão. O mesmo acontece nos outros 31 estabelecimentos penais mantidos pelo governo estadual, distribuídos por dez municípios. Iniciado em 2012, o projeto pioneiro no país hoje conta com cerca 2,5 mil participantes — quase 13% do total de 19,5 mil apenados do Paraná. 

No início de cada mês, o detento interessado escolhe um livro da biblioteca instalada em sua unidade (mais 30 mil volumes foram doados para o Depen nos últimos dois anos, graças a uma campanha permanente do órgão). Vinte dias depois, ele deve escrever uma espécie de resenha sobre a obra, na presença do professor responsável. O texto é avaliado pelo próprio orientador e pode ser reescrito. Se a nota for igual ou superior a 6, o participante tem quatro dias de sua pena reduzida. Ou seja: em um ano, é possível “abater” 48 dias de prisão.

A professora Marta Carvalho mostra um dos hits do Complexo Médico-Penal

A professora Marta Carvalho mostra um dos hits do Complexo Médico-Penal

Marta Carvalho é a professora que atende atualmente o Complexo Médico-Penal, uma unidade considerada diferente das demais por abrigar vários perfis de apenados. Há gestantes, policiais envolvidos em crimes, portadores de doenças mentais graves e até presos da Operação Lava Jato da Polícia Federal. Mas, para ela, os motivos que levaram os alunos à penitenciária são indiferentes. “Nunca pergunto o que eles fizeram para estar aqui”, garante Marta, que recebeu a reportagem do Cândido em Pinhais no final de novembro. 

Diante de um grupo de grávidas, a professora fala sobre uma expressão que inventou e hoje é corrente no vocabulário dos participantes do projeto: “leitante” — aquele que lê bastante. “No início, achei as mulheres muito mais resistentes ao meu trabalho do que os homens. Hoje, não. Elas querem ler o tempo todo, trago até livros e gibis que eu tenho em casa para dar conta de tantos pedidos”, diz. 

Segundo Marta, quando um bom leitor chega à unidade, ele rapidamente influencia os outros companheiros. É o caso de Laura (todos os nomes de presos foram trocados), a principal “leitante” da turma. “Sempre gostei de ler. Antes de ser presa, tinha o costume de levar dois livros para a cama. Um infantil, que lia para os meus filhos, e outro para eu ler depois de eles dormirem”, conta. Para ela, a literatura, nas circunstâncias atuais, equivale a uma fuga. “É como se eu fosse lá fora, desse uma volta e conversasse com outras pessoas”, afirma. 

O mais comum, no entanto, é a descoberta do prazer da leitura ali mesmo. Tatiana, dona da barriga mais “avançada” do grupo, lembra com arrependimento da época em que não dava bola para os livros. “Minha outra filha vivia me pedindo para ler junto com ela os livrinhos da escola, mas eu nunca aceitava. Quero mudar isso quando sair daqui”, diz. 

Fernando, o único homem liberado pelo Depen para conversar com a reportagem, também fala em “tempo perdido”. “Demorei muito para entender a importância da leitura. Mesmo sendo formado em Pedagogia, o máximo que eu lia eram os livros técnicos do curso”, conta. Detido há um ano, ele mantém uma média de dois volumes lidos por mês — um para o projeto de remição e outro por interesse pessoal. 

Seus autores preferidos são Clarice Lispector (“Há um mistério por trás da escrita dela”) e Machado de Assis (“Gosto quando ele conta as histórias de trás para frente”). Mas, no momento, toda sua atenção está voltada para uma biografia de Nelson Mandela, enviada pela família. “Já tem um monte de gente na fila querendo emprestar”, revela. De acordo com o Departamento, os volumes entregues durante as visitas são automaticamente doados para a biblioteca da penitenciária. Quem recebeu o presente pode até ler primeiro, no entanto o livro deve ser compartilhado. 

Para Fernando, a oportunidade de reduzir a pena é apenas um chamariz para a leitura. “Depois que você entra no projeto, percebe que quatro dias não são muita coisa. No fim das contas, acaba sendo um ganho mais simbólico”, afirma. “A maior motivação é o conhecimento. E também a satisfação de ver os companheiros trocando ideias sobre livros. Alguns, que a gente chama de 'poetas', até aprendem a recitar trechos inteiros de cabeça”, completa. 

Integrante da equipe do Depen que concebeu e implantou o projeto no Estado, Agda Ultchak concorda com Fernando. “Quando um preso faz a adesão, ele vem movido exclusivamente pela remição da pena. Mas, após a leitura do terceiro ou quarto livro com a mediação do professor, acaba se encantando pela literatura”, diz. 

Segundo Agda, os benefício do programa vão além do acesso ao aprendizado e da redução dos efeitos negativos da prisão (como a depressão). “Quando os participantes fazem o Enem, tiram boas notas em redação e interpretação de textos, diferentemente dos que não leem com frequência. Temos também muitos apenados que nunca haviam lido um livro, e casos de leitores privados de liberdade que acabam incentivando os filhos a ler durante as visitas”, explica. 

Mas há também quem encare a leitura como mero passatempo — o que por si só já seria um alívio considerável para quem vive num “cubículo” (como eles chamam as celas compartilhadas). Como bem resumiu a detenta Cláudia, uma das grávidas orientadas pela professora Marta, o livro tem sido a grande diversão da cadeia. “O livro é o nosso cinema, nossa música, nossa televisão. Por isso a sexta-feira é o melhor dia da semana”.

Os mais lidos

Uma das características do projeto Remição de Pena pela Leitura é a inexistência de uma lista obrigatória de títulos resenháveis. Há uma preferência por clássicos da literatura brasileira e mundial, mas os presos também podem ler biografias e estudos nas áreas de História, Sociologia e Filosofia. Dependendo do autor, até livros de autoajuda são aceitos (contanto que o participante não insista no gênero em seus textos seguintes). Apenas material religioso é proibido, em respeito à laicidade do Estado. 

Essa flexibilidade faz com que a relação dos títulos mais resenhados em cada penitenciária traga algumas surpresas. No Complexo Médico-Penal, por exemplo, um dos autores campeões de leitura é o paranaense André Tressoldi. Figura pouco conhecida no circuito da literatura contemporânea, ele emplacou dois livros entre os hits da prisão: Quase acaso (2012) e Lua, lobos e cerrado (2014). 

O primeiro conta a história de dois amigos de origem pobre que tomam rumos diferentes na vida: enquanto um estuda para virar “doutor”, o outro se envolve com a máfia. Já Lua, como o título sugere, traz uma fábula sobre lobisomens ambientada no Brasil. “São histórias que envolvem, tem suspense. Mas acho que o pessoal gosta do Quase acaso por causa da parte do mafioso mesmo”, diz a detenta Laura. 

Para o preso Fernando, o sucesso de um título depende do boca a boca interno. “Se um lê, gosta e começa a falar sobre o livro, todos os outros ficam curiosos e querem ler também. Essa conversa também ajuda na hora de escrever a resenha, porque você vai mais preparado”, explica. 

Entre as obras mais conhecidas, os preferidos nacionais são Dom Casmurro (Machado de Assis), Senhora (José de Alencar), Quincas Berro D'Água (Jorge Amado) e o infantojuvenil A bolsa amarela (Lygia Bojunga). A revolução dos bichos (George Orwell), O príncipe (Maquiavel), O retrato de Dorian Gray (Oscar Wilde), O Pastor (Frederick Forstyth) e O caso dos dez negrinhos (Agatha Chritsie) aparecem na lista internacional. 

Obras sobre a realidade da prisão, como Memórias do cárcere (Graciliano Ramos) e O último dia de um condenado (Victor Hugo) também têm boa saída da biblioteca, mas se engana quem pensa que essa é a temática predominante. “Nós não nos interessamos tanto por histórias da cadeia, afinal já estamos passando por isso. Gostamos mais de livros sobre família, sentimentos e superação. Como os da Lya Luft”, afirma Fernando.

prateleira