Especial Beat | Maciel

Reflexões libertárias

Um dos maiores comentadores da contracultura no Brasil, o jornalista e escritor Luiz Carlos Maciel fala sobre o impacto literário e comportamental da beat generation, que ele conheceu quando morou nos EUA

 

Texto: Omar Godoy | Foto: Paula Giolito - Revista Brasileiros


“Se você está fazendo essa entrevista comigo agora, é muito mais por causa da repercussão da atitude beat do que pela linguagem literária dos escritores daquele grupo”, garante o filósofo, jornalista, escritor e roteirista Luiz Carlos Maciel, de 76 anos. Considerado um dos “gurus” da contracultura no Brasil, Maciel ficou conhecido por apresentar as novidades culturais e comportamentais das décadas de 1960 e 1970 aos leitores de publicações como Flor do mal, O Pasquim (do qual foi um dos fundadores) e Rolling Stone (em sua primeira versão brasileira). Tudo o que fosse libertário e marginal (no sentido de se posicionar à margem) era analisado e decodificado para um público que não tinha acesso a conteúdos internacionais.

Paula Giolito_revista Brasileiros
Para Maciel, a popularidade de On the road (Jack Kerouac) é uma exceção entre os autores beatniks. “Vendeu e vende bem até hoje, mas qual outro livro dessa geração é tão conhecido? A grande repercussão dos beats foi no nível do comportamento, dos costumes. Até porque, naquela época, as pessoas estavam muito mais interessadas em resolver seus problemas pessoais do que em literatura”, brinca o jornalista, que admite conhecer a fundo apenas a “biblioteca básica” do gênero.

Seus livros preferidos — e, segundo ele, “angulares” — do período são O almoço nu (William Burroughs), O primeiro terço (Neal Cassady), Uivo (Allen Ginsberg) e o já citado On the road. “Mas, na verdade, eu simpatizava com eles por causa do gosto em comum pelo jazz. Não à toa, um dos meus maiores ídolos é o Charlie Parker, de quem o Kerouac tanto gostava. Fui um adolescente jazzófilo, até hoje 90% da minha discoteca é composta por jazz, então acabei me identificando com os beats logo de cara”, conta.

Interessado por arte e propostas libertárias desde cedo, Maciel cursou Filosofia em Porto Alegre, sua cidade natal, no final dos anos 1950. Antes mesmo de se formar, já fazia parte do grupo literário-cultural Quixote, que movimentou Porto Alegre e revelou nomes como Raymundo Faoro, Paulo Hecker Filho, Heitor Saldanha, Wilson Chagas e Sílvio Duncan. “Eu era um pouco mais novo do que os outros, não conhecia quase nada. Mas anotava mentalmente todos os nomes que eles diziam e procurava na biblioteca depois. Foi aí que me envolvi com os existencialistas, Samuel Beckett, teatro de vanguarda”.

Decidido a se aprofundar na dramaturgia, ele ganhou bolsas para estudar teatro na Universidade Federal da Bahia (onde se aproximou de Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro e Caetano Veloso) e no Carnegie Institute of Technology, na cidade norte-americana de Pittsburgh. Nos Estados Unidos, travou contato pela primeira vez com o ideário beat. “Era uma coisa totalmente underground, apreciada por uma minoria. Lembro que na minha sala tinha apenas um cara, de barbichinha, que gostava dessas coisas. Acho até que ele se fantasiava de beatnik”, diverte-se.

Como grande parte dos americanos, Maciel não conheceu a geração beat a partir de seus escritores — mas, sim, por meio de um ensaio clássico do romancista e jornalista Norman Mailer, The white negro: superficial reflections of the hipster (“O negro branco: reflexões superficiais sobre o hipster”). Publicado em 1957 pela City Light Books, editora comandada pelo poeta Lawrence Ferlinghetti, o texto antecipa o boom contracultural que mexeria com os Estados Unidos (e, por tabela, com o mundo ocidental) nos anos seguintes.

Mailer começa seu artigo evidenciando a angústia da sociedade do pós-Guerra, segundo ele apavorada com a possibilidade de um holocausto nuclear e entregue à caretice do american way of life. Uma reação, no entanto, começava a se esboçar com o aparecimento dos beatniks e dos hipsters (mais tarde chamados de hippies, um diminutivo do termo), rebeldes influenciados pela cultura negra (especialmente o jazz, com seu estilo de vida boêmio e sua tendência à improvisação) e em busca de liberdade individual a todo custo.

“O hipster é um psicopata filosófico. Ele se caracteriza pelo desprezo às regras estabelecidas, pelo egoísmo individualista que não respeita o direito dos outros, pela sua entrega cega e total ao prazer do momento e pela sua negação anárquica e criminosa de todas as normas razoáveis de comportamento”, escreveu Maciel, em 1973, na Rolling Stone, citando trechos de The white negro (título que faz referência à condição de “neomarginalizados” dessa juventude branca inconformada).

Luiz Carlos Maciel conta que, por causa desse ensaio, muita gente na época acabou considerando o próprio Norman Mailer um beatnik — o que não era verdade. O escritor foi, sim, um dos maiores comentadores dos autores beats, como o brasileiro fez com o próprio Mailer e outros pensadores “avançados” do período (Herbert Marcuse, Norman Brown, Wilheim Reich, etc.).

Segundo Maciel, outra confusão que as pessoas fazem diz respeito ao fato de Mailer ter chamado os beats e hipsters de “existencialistas americanos”. “Claro que existe uma linha evolutiva que começa no existencialismo e passa pelos libertários americanos. Mas é pouquíssimo provável que eles tenham lido Sartre, por exemplo”, diz.

Entre os beats e os hipsters/hippies, o jornalista se identificava mais com os últimos. “Gostava do movimento hippie porque era massificado, com gente de todos os tipos. Não era uma coisa limitada aos escritores, como no caso dos beatniks, que, além do mais, eram reservados, discretos, com tendências místicas introspectivas”. A exceção, segundo ele, foi Allen Ginsberg, dono de uma personalidade expansiva e alegre. “Tanto que ele gostou dos hippies e os hippies gostaram dele. O Ginsbergera um agitador, um ativista. As festas que ele organizava ficaram famosas em todo o mundo”.

Questionado sobre a influência dos beats no Brasil dos anos 1960 e 1970, Maciel afirma que o movimento não tocou muita gente por aqui. E cita apenas dois nomes: Claudio Willer e Jorge Mautner. O primeiro, por ser o maior estudioso local da literatura beatnik. O segundo, pela escrita e atitude. “O Mautner foi o maior beatnik brasileiro. Tudo nele é ritmo, improviso, liberdade. Mesmo conversando ele é assim. Vai falando, falando, improvisando... Não tem quem segure”.

Atualmente interessado pelos black blocs, que considera contraculturais, Luiz Carlos Maciel pretende escrever um livro sobre esse fenômeno recente. Mas ainda tem dúvidas se é a favor ou contra os mascarados — principalmente por causa do anonimato, que incentiva saqueadores e outras pessoas mal intencionadas a se infiltrar no grupo. Sobre isso, aliás, ele lembra de uma pensata do autor irlandês George Bernard Shaw.

“O Shaw dizia que todos os movimentos que buscam subverter os valores estabelecidos atraem dois tipos de pessoas: os melhores e os piores. Os melhores criam, teorizam, deixam um legado. Já os piores tendem a criminalizar as revoluções. E isso vale tanto para os black blocks quanto para os hippies e até mesmo os beatniks”, conclui.