Entrevista | Veronica Stigger

A favor do contra

A autora gaúcha fala sobre o processo criativo de seu mais recente livro, Sul, a militância nas redes sociais e as diferentes formas literárias que aparecem em seu trabalho 


João Lucas Dusi

O mais recente livro de Veronica Stigger, Sul, é uma síntese da proposta literária da autora. Publicada originalmente na Argentina em 2013, e no Brasil em 2016, a obra reúne 3 textos que borram as fronteiras entre os gêneros literários. “É comum que minhas narrativas tomem forma de poema, de legenda jornalística, de anúncio publicitário, de palestra, de roteiro cinematográfico, de peça de teatro... e até mesmo de conto propriamente dito. Vejo, contudo, todos os textos como narrativas”, comenta a autora, que respondeu por e-mail uma entrevista ao Cândido

Veronica é uma das autoras brasileiras contemporâneas mais premiadas. O seu livro Opisanie świata (2013) conquistou o Prêmio Machado de Assis 2013, da Fundação Biblioteca Nacional, o Prêmio São Paulo de 2014, categoria melhor estreante acima de 40 anos, além do Prêmio Açorianos de narrativa longa, também em 2014. Ela diz, em tom de brincadeira, que deve ter feito alguma coisa muito errada para que o livro agradasse a tanta gente. “Até mesmo um título em polonês eu dei!”.

Gaúcha, nascida em Porto Alegre, ela vive em São Paulo e atua como professora e curadora de arte. Veronica é presente nas redes sociais e diz fazer questão de expor os seus pontos de vista — não como escritora, professora ou curadora, mas enquanto cidadã. “Enquanto homossexuais, transexuais, prostitutas continuarem sendo perseguidos, ficar em silêncio é uma forma de conivência com os agressores”, comenta a autora dos livros O trágico e outras comédias (2003), Gran cabaret demenzial (2007) e Os anões (2010). Ela anuncia estar trabalhando em, pelo menos, dois projetos — um livro de contos, chamado Sombrio Ermo Turvo, e na transformação em livro ilustrado de uma palestra-performance.

Eduardo Sterzi
Crédito: Eduardo Sterzi


O seu livro mais recente, de 2016, publicado anteriormente em 2013 na Argentina, se chama Sul. Por que você escolheu o título? O que ele significa?
O primeiro conto do livro, “2035”, se originou de um convite para participar de uma coletânea de narrativas em que cada escritor deveria inventar uma história que tivesse uma relação com uma determinada guerra. A mim, que coincidentemente sou gaúcha, coube a Guerra dos Farrapos. Já morava, na época, em São Paulo. Assim, o convite para escrever o conto foi, em certa medida, também um convite para voltar, através da imaginação, ao sul. Creio que foi este conto que serviu de ponto de partida para o livro, trazendo consigo a decisão de ambientar todos os textos nele recolhidos no sul, mais especificamente, em Porto Alegre, minha cidade natal.

O primeiro texto de Sul, o conto “2035”, apresenta uma demolição da infância, inclusive pela desintegração física da personagem Constância. O texto, que dialoga com Kafka e Melville entre outros autores, problematiza a violência. A recriação da violência é uma das características de sua ficção? Por quê? 
Não compreendo o conto “2035” como uma demolição da infância, mas, sim, como uma demolição do futuro. Não podemos perder de vista que se passa numa cidade destruída, abandonada, vazia, uma cidade que talvez tenha enfrentado uma guerra ou uma catástrofe, em que as pessoas que restam se escondem em suas casas. Ali, a violência empregada contra a menina é violência de estado, e, antes disso (ou em função disso), violência ritual, sacrificial. O sacrifício, nos diz René Girard, serve como uma forma de canalização da violência, ao transferir para uma vítima sacrificial as violências e tensões internas de uma sociedade. Assim, ritualmente, ao se sacrificar a vítima, apaziguam-se essas violências e tensões e impede-se a eclosão de novos conflitos. A violência tem aí, portanto, um caráter expiatório. O que talvez amplifique a imagem de violência, tornando tudo mais complexo e terrível, é que o conto não é narrado do ponto de vista dos sacrificadores, mas da sacrificada. Acabei falando de como recrio a violência apenas no caso específico de “2035”, porque, no fim das contas, em cada narrativa ela se dá de maneira particular, com razões próprias e consequências próprias.  

O segundo texto de Sul, “Mancha”, é uma proposta para teatro. A expectativa é de que o texto venha a ser encenado? Já existe algum movimento nesse sentido?
Adoraria que o texto viesse a ser encenado, mas não há ainda movimento neste sentido. Já tive diversos outros textos levados ao palco, e é sempre uma experiência fascinante para mim ver as figuras que imaginei ganharem corpo e, sobretudo, independência da minha própria imaginação

Já o terceiro texto de Sul, “O coração dos homens”, foi encenado. Ele está disposto como se fosse um poema, mas aparenta ser prosa. No caso deste texto, você quis borrar as fronteiras entre os gêneros?
Não somente no caso deste texto. Gosto de trabalhar com as diferentes formas literárias, sempre borrando um pouco os limites entre elas. É comum que minhas narrativas tomem forma de poema, de legenda jornalística, de anúncio publicitário, de palestra, de roteiro cinematográfico, de peça de teatro... e até mesmo de conto propriamente dito. Vejo, contudo, todos os textos como narrativas. O que você diz aparentar ser prosa em “O coração dos homens” se trata provavelmente de seu caráter narrativo, porque a sua aparência, a forma que ele assume e se dá a ver, é de um poema em tercetos. Acabamos, ao longo das últimas décadas, confinando a experiência poética ao aspecto lírico — no entanto, todos os gêneros e registros podem se valer de versos. Um poema narrativo ou um poema dramático continuam sendo poemas.

A violência envolvendo a infância, presente no texto inicial, também perpassa “Mancha” e “O coração dos homens”, o texto final de Sul (que ainda tem um quarto na edição brasileira). Sul pode ser lido como um livro sobre o fim da infância e a respeito da violência que pode marcar o final da infância?
Não creio que o final da infância seja mais violento que a própria infância, período em que a criança é inserida à força naquela que por vezes tem se revelado uma máquina de reprodução do pior que há numa sociedade, que é a escola. Há algo mais violento do que abafar as diferenças, apagar as singularidades, em busca de uma padronização? A escola não deveria ser isso, mas em alguns momentos acaba sendo, especialmente quando se vê acossada por iniciativas cada vez mais tenebrosas como o tal projeto “Escola Sem Partido” e outras parvoíces mal-intencionadas como esta. Isso talvez fique especialmente evidente nas escolas particulares, que foram as que frequentei. Veja-se aquele caso recente da escola de Novo Hamburgo que promoveu o dia do “Se nada der certo”. O horror, o horror, o horror. Como disse Eduardo Sterzi no Facebook: “Na sua imensa maioria, as escolas particulares não passam de usinas de reprodução da ideologia cleptocrática e genocida de nossa burguesia”. E voltamos novamente para a violência não da infância em si, mas do que está em torno dela: a sociedade. E não percamos de vista que a escola mencionada é do sul — o noticiário vem corroborando minha escolha de título. Felizmente, porém, nem todas escolas são deste modo. Pelo menos, assim quero crer. Isso que acabei de falar diz muito a respeito do cenário de fundo de “O coração dos homens”. Quanto a “2035”, como já observei anteriormente, parece-me estar muito mais em atuação a violência do estado do que a violência do fim da infância. E, em “Mancha”, não há crianças, nem menção a elas. Em síntese, acho que Sul pode ser lido mais como um livro sobre a violência da sociedade e, por extensão, do estado (ou vice-versa...) do que como um livro sobre a violência do fim da infância.

Sul e Opisanie świata foram publicados em 2013, o primeiro originalmente na Argentina e o segundo no Brasil. Em que período você escreveu os dois livros, um muito diferente do outro? 
Sul estava pronto desde 2010, com exceção do texto que só aparece na edição brasileira. Originalmente, queria que fosse lançado logo depois de Os anões, porque assim contraporia aos contos minúsculos do livro anterior os três textos longos do posterior. Por uma série de contingências, sua publicação no Brasil foi postergada por seis anos. As primeiras anotações para Opisanie świata remontam a 2006, 2007, ou seja, à época em que ainda estava escrevendo Sul. Daí, talvez ambos apresentarem alguns aspectos em comum, como, por exemplo, poemas em tercetos: “O coração dos homens” no volume de contos e, no romance, parte do capítulo “O caderno de Natanael”, além das vinhetas extraídas de um guia de viagem que pontuam o livro. Mas fui escrever Opisanie świata mais regularmente apenas depois de 2010, isto é, quando Sul já estava finalizado.

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Após 3 livros de contos, você publica em 2013 Opisanie świata, o seu primeiro romance. A sua primeira longa narrativa conquista o Prêmio Machado de Assis 2013, da Fundação Biblioteca Nacional, o Prêmio São Paulo de 2014, categoria melhor estreante acima de 40 anos, e o Prêmio Açorianos de narrativa longa, em 2014. Esperava que a obra viesse a ter tamanho reconhecimento? A que você atribui esses prêmios todos? Enredo inusitado? Experimentalismo na linguagem? Proposta estética ousada?  
Devo ter feito alguma coisa muito errada para que o livro agradasse a tanta gente. Até mesmo um título em polonês eu dei!

A problematização da violência e os enredos um tanto chocantes de seus contos se contrapõem à proposta de Opisanie świata, que dialoga entre outros livros com Cobra Norato, de Raul Bopp, e sugere uma narrativa de viagem. O livro é uma ruptura em sua trajetória? Já esboça um novo livro? Caso sim, pode comentar algo? 
Não vejo Opisanie świata como uma ruptura na minha trajetória. Pelo contrário, vejo muito não só de continuação, como também de resgate. A dicção do personagem Hans ao narrar uma história para seus companheiros de viagem, no capítulo intitulado “Desesperadamente verde”, por exemplo, parece recuperar a voz narrativa da maioria dos contos do meu primeiro livro, O trágico e outras comédias: há um quê de jocoso e quase infantil em seu jeito de falar. Creio que também se acentua em Opisanie świata uma atenção aos gestos dos personagens, que eu vinha desenvolvendo em textos anteriores, como “Tristeza e Isidoro”, “Caverna”, “Pat e Morg”, para citar só alguns. Quanto à austeridade da narrativa, esta já estava presente, aqui e ali, em contos publicados anteriormente, como “Quand avez-vous le plus souffert?”, de Os anões. Além disso tudo, parece-me que segue também presente em Opisanie świata o trabalho a partir de citações, a construção do texto, em larga medida, a partir da apropriação e reelaboração de vozes  alheias, uma característica que vem de livros anteriores, como Os anões, Massamorda e, principalmente, Delírio de Damasco. Quanto à violência, quer texto mais violento que o capítulo “Netuno é um bom camarada”? Acredito, portanto, que se encontra em Opisanie świata um pouquinho de cada um dos livros anteriores. Quanto a novo livro, sim, estou trabalhando em, pelo menos, dois projetos. O maior deles é o novo livro de contos, chamado Sombrio Ermo Turvo, que reúne textos que querem fazer jus ao título do livro. Outro é a transformação em livro ilustrado de uma palestra-performance que venho apresentando em vários lugares, dentro do projeto de literatura performática Em obras, organizado pela Paloma Vidal — e até, numa versão para o inglês, no Cabaret Voltaire, em Zurique, realizada no ano passado, quando se completaram cem anos do Dadá.

Os seus livros apresentam cuidado com o projeto gráfico. Você é curadora de mostras visuais. Você elabora as suas obras pensando também no livro como um objeto artístico? O suporte de sua ficção é tão importante quanto a sua ficção?
Sim. Para mim, um livro não se resume ao texto. Costumo pensá-lo como um todo. Quando o estou escrevendo, já vou imaginando a forma que darei a ele, a organização interna dos textos, o tipo de papel, a capa, se terá ilustrações, que ilustrações, etc. Por conta disso, quando entrego os originais na editora, sento-me com a equipe de design gráfico e explico toda a concepção do livro em seus mínimos detalhes. 

Você é presente nas redes sociais, principalmente no Facebook. Além de escrever e publicar livros (no seu caso ainda tem a curadoria das mostras), o artista deve apresentar os seus pontos de vista publicamente? Isso, atuar no Facebook, não tira tempo que você poderia utilizar em suas obras ou justamente atuar no Facebook também faz parte de sua obra?
Faço questão de expor meus pontos de vista — mas não o faço como escritora, como professora ou como curadora, eu o faço como cidadã. Enquanto homossexuais, transexuais, prostitutas continuarem sendo perseguidos, ficar em silêncio é uma forma de conivência com os agressores. Nunca deixarei de denunciar o massacre que há séculos os índios vem sofrendo e a violência imposta pela PM sobre a população negra. É para isso principalmente que servem as redes sociais para mim. E para me informar: porque todos nós sabemos que, com raríssimas exceções (lembro-me, por exemplo, do Caco Barcelos na Rede Globo), não dá para confiar no “jornalismo” (assim mesmo, entre aspas) da grande imprensa.

O trágico e outras comédias (2003), seu primeiro livro, foi publicado originalmente em Portugal, e seu mais recente lançado no Brasil, Sul, foi editado primeiro na Argentina. Além disso, você já teve contos traduzidos para o francês, o sueco, o inglês, o italiano e o alemão. Como é a recepção da sua obra no exterior? 
Sei que, em algumas universidades, textos meus têm sido estudados. Tenho conhecimento de casos na Argentina e nos Estados Unidos. Creio que ainda este ano sairá a edição mexicana de Opisanie świata. A tradutora do romance para o inglês, Zoë Perry, ganhou uma bolsa do PEN Club para levar a cabo sua versão. 

Escrever ficção, no seu caso, é levar em conta — necessariamente — a intertextualidade? E mais: é possível fazer ficção sem dialogar com outras obras?
Literatura é intertextualidade. Não há como fazer diferente.