Entrevista | Nei Lopes

“A invisibilidade do meu povo me incomoda muito”


Marcio Renato dos Santos

Divulgação
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Nei Lopes, 73 anos, é um autor que, por prazer e missão, tem a afrobrasilidade como tema. O seu mais recente romance — Rio Negro, 50 —, publicado pelo Grupo Editorial Record neste ano, é ambientado no Rio de Janeiro, então capital federal, na década de 1950, “período de liberação e efervescência cultural que também marca a retomada, no Brasil, de um movimento de reconhecimento da contribuição do negro à vida cultural brasileira”, explica o escritor, nascido no Irajá, subúrbio carioca, atualmente vivendo em Seropédica, município do Rio de Janeiro, localizado a 50 quilômetros da capital.

Rio Negro, 50 é, se me permite a ousadia, um romance de tese que tem por objetivo dizer coisas que até hoje só têm sido ditas nos livros científicos”, afirma o escritor com dezenas de títulos publicados, entre os quais Vinte contos e uns trocados (2006) e Poétnica (2014), também compositor e intérprete de música popular, autor de canções gravadas, entre outros, por Alcione, Beth Carvalho, Chico Buarque, Dudu Nobre, Martinho da Vila e Zeca Pagodinho.

Lopes concedeu entrevista ao Cândido respondendo, exclusivamente, perguntas sobre Rio Negro, 50. Na longa narrativa ficcional, ele inventa e batiza um bar, com o nome que dá título ao livro, onde personagens negros se encontram e discutem, entre outros assuntos, política, música, teatro, dança, religião, esporte, crime e racismo.

Pesquisador da temática africana e afro-originada, é autor de obras que são referências sobre o tema, como Dicionário da antiguidade africana (2011), Enciclopédia da diáspora africana (2011), Novo dicionário banto do Brasil (2012) e do recém-publicado, em parceria com Luiz Antonio Simas, Dicionário da história social do samba.

Ele afirma, por exemplo, que a abolição dos escravos não aconteceu como de fato se comenta: “A chamada Lei Áurea só tem um artigo. Nenhuma de suas consequências foi contemplada. Aboliu-se a escravidão e jogou-se seus ‘problemas’ no lixo.” Lopes tem pontos de vista contundentes sobre samba, religião, reveillon carioca e outros temas — são, enfim, reflexões elaboradas a partir de vasta pesquisa que compõem este batepapo realizado por e-mail.

A movimentação cultural do Rio de Janeiro da década de 1950 foi bem mais ampla do que apenas, por exemplo, a bossa nova. Levando em conta o seu romance Rio Negro, 50, o que mais aconteceu culturalmente na então capital federal durante os anos 1950?
A década de 1950 constituiu um período de liberação e efervescência cultural que também marca a retomada, no Brasil, de um movimento de reconhecimento da contribuição do negro à vida cultural brasileira. Por esse tempo, revivem organizações culturais e políticas negras, abafadas durante o Estado Novo; criam-se ou se expandem organizações importantes, como o Renascença Clube e A União dos Homens de Cor. É nesse contexto, de afirmação da escola de samba Império Serrano, que nascem as revolucionárias escolas de samba Acadêmicos do Salgueiro e Mocidade Independente; que se consolida o Teatro Experimental do Negro; que se formata a dança afro, com Mercedes Batista; que reluzem os musicais de Carlos Machado, em que o samba tem papel importante; e em que a religiosidade de base africana, pela exuberância dos rituais dos candomblés, começa a ser reavaliada.

Há a morte de Vargas, a derrota da seleção brasileira no Maracanã na final de uma Copa do Mundo, entre outros fatos que ficaram marcados no imaginário brasileiro. Então, ambientar o romance Rio Negro, 50 na década de 1950 foi um escolha decisiva, fundamental? Faltava alguém tratar literariamente do período?
Faltava quem tratasse do ponto de vista do povo negro; e é isso que eu tenho procurado fazer em toda a minha obra ficcional.

Na página 47 de Rio Negro, 50, um personagem fala: “Mas parece que preto só é bom mesmo no futebol, no salto e na corrida. Por que será?”. Em seguida, o diálogo entre as vozes promove um debate, menciona-se que na natação não tem atletas negros, até que há uma ponderação: “Então, eles são melhores nos esportes onde as barreiras econômicas são menores.” Uma das linhas de força de seu livro é justamente discutir e questionar lugares-comuns ditos e repetidos sobre os negros?
Rio Negro, 50 é, se me permite a ousadia, um romance de tese que tem por objetivo dizer coisas que até hoje só têm sido ditas nos livros científicos.

Há menção a pensadores, gente que gostava de conversar e discutir, muitos dos quais se reuniam no bar, inventado, que dá nome ao livro — possivelmente inspirado em um bar que de fato existiu. Aquele tempo foi o início de tomada de consciência pelos negros? O bar representa isso, o espaço para a reflexão sobre as questões do mundo?
Eu não vivi intelectualmente a década, pois nasci em 1942 e só tomei consciência da questão social na década de 1960, quando ingressei na Faculdade Nacional de Direito. Mas logo senti o eco do que se discutiu antes; e percebi que o bar era, sim, como foi ainda por muito tempo, o espaço dessas trocas de ideias.

O samba é um dos assuntos que ganha espaço em Rio Negro, 50. Pelas vozes dos personagens, há uma discussão a respeito do que se tornou o samba, dominado pelo comércio, o carnaval transformado em mercadoria. Desde quando o samba deixou de ser samba, deixou (deixou mesmo?) de ser expressão dos negros? Desde quando o carnaval, o desfile das escolas de samba, perdeu a essência? Houve uma essência? Qual?
Na ficção, antecipei no tempo a discussão das questões do samba. Porque as grandes transformações, no universo do samba, eclodiram, mesmo, na década de 1970, quando a música perdeu em importância para a cenografia e os figurinos. E, nesse quadro, a correlação de poder se modificou totalmente. Até, então, nas escolas, os compositores ainda tinham alguma força. Eu sempre lembro que, no início das escolas, os grande líderes eram Paulo da Portela, Cartola, Antenor Gargalhada, Mano Eloi etc, todos compositores.

Em um momento do livro, algumas personagens femininas discutem se há ou não racismo no Brasil e, pela discussão, há um contraponto. Quando te perguntam se há racismo no Brasil, o que diz? De 1950 até hoje, o que mudou?
O que mudou foi que na República Velha havia políticas públicas com o objetivo de neutralizar a influência africana e até mesmo embranquecer o Brasil, o que ainda ecoava na década de 1950, época de nossa primeira lei contra discriminação racial. E da década de 1980 pra cá criaram-se, bem ou mal, políticas de inclusão social da população negra. O que, inclusive, neste exato momento, é causa de muita tensão. Mas mudou.

Se fosse possível sintetizar uma resposta, o que dizer da contribuição negra para a cultura brasileira? E, ainda, há áreas nas quais não houve, mesmo que indiretamente, contribuição negra no Brasil?
Esta contribuição foi decisiva. Mas um fenômeno cruel começa a fazer efeito: é a apropriação de boa parte dessa contribuição, principalmente no campo da cultura, por outros segmentos. Começou na música instrumental, passou pela capoeira... E hoje chega ao exercício das artes culinárias. Quando certas atividades ganham prestigio, os afrodescendentes são excluídos de seu exercício. Por razões puramente econômicas.
No romance, fala-se de uma conspiração oficial contra os negros? Aconteceu mesmo?
É só uma brincadeirinha.

Em sua opinião, aconteceu de fato abolição no Brasil?
chamada Lei Áurea só tem um artigo. Nenhuma de suas consequências foi contemplada. Aboliu-se a escravidão e jogou-se seus “problemas” no lixo.

As religiões de origem africanas ganham espaço no livro, há reflexão sobre o impacto delas no Rio de Janeiro. A crença do carioca passa pelos ritos afros?
No atual momento, as igrejas “eletrônicas” dominam. Mas o Rio na década de 1950 via a religiosidade afro com bastante interesse. E a sofisticação dos candomblés, como eu já disse, atraía muita gente. Em Rio Negro, 50 ficcionalizo o episódio real da primeira Festa de Iemanjá na orla da zona sul. Que se tornou um evento turístico, para depois ser afastada para as praias ou deslocada para a véspera do dia 31. O “sagrado” do reveillon carioca, hoje, é a queima de fogos.
Em Rio Negro, 50, há um comentário dando a entender que o pessoal da zona norte do Rio tem inveja apenas do mar da zona sul. É isso mesmo?
Respondo a esta pergunta, tendo acabado de ler no jornal que a Prefeitura do Rio inaugurou uma praia artificial em Madureira, na zona suburbana. A questão não é exatamente inveja: o caso é que as praias fora da zona sul, como as da Ilha do Governador, de Ramos, Sepetiba etc., não recebem os cuidados necessários e aí se tornam difíceis de frequentar. Se a Baía de Guanabara, principalmente, fosse efetivamente despoluída, o Rio todo teria belas praias. E ninguém teria inveja nem precisaria brigar.

De 1950 pra cá, houve mudanças e avanços para os negros no Brasil. Racismo é crime. Mas o que ainda precisa avançar? Quais as conquistas que os negros ainda precisam ter?
O Brasil precisa dar o básico a todo mundo: saúde, educação, moradia digna, transporte eficiente. Este é o primeiro passo. Depois, criar políticas de inclusão na mídia, na propaganda... É bastante desconfortável, para nós afrodescendentes, não nos vermos representados nos veículos de comunicação, nas campanhas de publicidade... Isso é a primeira coisa que os negros estrangeiros observam quando chegam aqui: “Onde é que está a outra metade da população?”.

Toda a sua obra publicada dialoga com o legado dos negros desde o primeiro ensaio O samba, na realidade... até o Dicionário da história social do samba, parceria com o professor Luiz Antonio Simas. O senhor se considera um militante ou é um autor coerente com as origens? Como define a sua atuação intelectual?Sou um autor que tomou a afrobrasilidade como tema, por missão e por prazer. A invisibilidade do meu povo e a inferiorização dos nossos valores me incomoda muito.

Na década de 1980, o senhor trocou a carreira de advogado pela de compositor de música popular. Analisando, com a percepção de 2015, foi uma decisão complexa ou não? Que advogado o senhor poderia ter sido, se tivesse continuado, se houvesse se na História?
Foi a decisão mais acertada da minha vida. Porque deixei a advocacia para viver da minha criação intelectual, mas sem abandonar o Direito.