Entrevista | Jorge Mautner

O filho do amálgama

 

Aos 75 anos, o multiartista fala sobre inspirações, literatura brasileira, crise, nazismo e, é claro, seu assunto preferido: a riqueza cultural do Brasil


Omar Godoy
Reprodução
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Para marcar os 75 anos de Jorge Mautner, completados em janeiro, a editora Companhia das Letras lançou uma compilação que vai fundo na produção escrita do tropicalista. Com cerca de 400 páginas, Kaos total reúne, entre material conhecido e inédito, todas as suas letras de música e mais uma variedade de poemas, manifestos, trechos de prosa poética, etc. Há ainda uma seleção de pinturas do artista, nunca publicadas em livro.

A reportagem do Cândido aproveitou o lançamento para conversar com o artista sobre o novo volume e sua relação com a literatura. Mas, em se tratando do autor de “Maracatu Atômico”, qualquer bate-papo é um “revirão” — termo criado pelo psicanalista MD Magno que significa “uma escolha a cada segundo” e deu título ao seu álbum de 2006.

Ou seja: quando menos se espera, Mautner salta de um assunto para o outro, citando toneladas de referências filosóficas, históricas e científicas. O resultado, como se pode ler, é sempre a confirmação de sua visão de mundo ampla e da crença na riqueza (ou “amálgama”, como ele prefere dizer) cultural do Brasil.

Os organizadores de Kaos total são também os responsáveis pelo conteúdo do seu site/portal oficial, Panfletos da nova era — que traz, além da sua história, muitas dicas de livros de outros autores. Fale um pouco sobre essas indicações.
Em todos os meus livros, desde o Deus da chuva e da morte (1962), eu sempre indico as minhas inspirações e os grandes autores da filosofia, da literatura e de letras de música também. Isso é um hábito contínuo que tenho. Não basta escrever, nem colocar a mensagem nas minhas letras, porque muita gente não lê. Então, mesmo como artista, músico, intérprete ou palestrante, eu desenvolvi esse hábito de indicar. É uma trilha constante de pensadores, desde os pré-socráticos. E é o tempo todo isso. É o caos.

Hoje o artista também é, de certa forma, um editor. Principalmente nas redes socais, onde ele apresenta o seu trabalho e de outros artistas, numa espécie de curadoria. Você já fazia isso nos anos 1950, 1960...
Já em 1956, né? Foi nesse ano que comecei a escrever o Deus da chuva e da morte e, ao mesmo tempo, idealizar o Partido do Kaos. [Mautner costuma afirmar que o grupo chegou a ter 3 mil membros em 1962, quando encerrou suas atividades. Em seguida, o artista se filiou ao Partido Comunista] Porque sempre achei que a prática deveria acompanhar a palavra escrita. E o Kaos tinha dois objetivos principais: impedir um novo holocausto e irradiar a imensa grandeza e profundidade da cultura brasileira. Em 1823, José Bonifácio [poeta, estadista e “Patriarca da Independência”] nos definiu dizendo: “Diferentemente dos outros povos e culturas, nós somos o amálgama, esse amálgama tão difícil de ser feito”. E tudo aqui é amálgama mesmo, essa é uma das nossas riquezas.

Um dos temas do momento, em âmbito mundial, são os movimentos migratórios. Como os novos imigrantes que estão chegando ao Brasil nos últimos anos vão participar desse “amálgama”?
Eles de imediato são abraçados. Só para falar, por exemplo, de Curitiba e do Paraná: Paulo Leminski era produto de misturas, de miscigenação. Isso é o ineditismo do Brasil, o tempo todo. Eu fui exilado e passei cinco anos nos Estados Unidos, como funcionário das Nações Unidas. Também fui secretário literário do [poeta] Robert Lowell. Ele só queria ler sobre “os mistérios do Brasil”. Lia Gilberto Freyre, Câmara Cascudo. Outro amigo meu, o Paul Goodman [sociólogo, escritor e militante anarquista] sempre me perguntava: “O que você está fazendo no Village [o “bairro dos artistas” em Nova York, local do surgimento de vários movimentos culturais importantes]? Você não sabe que o único e verdadeiro Village, desde o início dos tempos, é o Brasil?”.

Em 2006, você publicou O filho do Holocausto, livro que reúne suas memórias desde a infância até 1958 [e mais tarde deu origem a um filme, dirigido por Pedro Bial e Heitor D’Alincourt]. Pensa em lançar outro volume semelhante, cobrindo um período diferente da sua trajetória?
Sim, e provavelmente vai sair no final deste ano. O título é uma frase do [filósofo português] Agostinho da Silva, Não há abismo em que o Brasil caiba. E o subtítulo é O domínio do fato. Ali eu conto histórias incríveis de toda a minha participação como ativista. Será o primeiro de uma série de dez volumes de memórias literalizadas, que também misturam História do Brasil, História do mundo e literatura. Isso sempre transparece em todos os meus cadernos.

A literatura brasileira, na sua opinião, dá conta de um país do tamanho do Brasil, com essa riqueza, esse amálgama de que você tanto fala?
Dá. Você tem Machado de Assis, Cruz e Souza, José de Alencar, Padre Antônio Vieira, Câmara Cascudo, Gilberto Freyre... Tudo isso é amálgama. O Stephen Zweig [escritor austríaco que se exilou na cidade fluminense de Petrópolis durante a Segunda Guerra Mundial, autor de Brasil, país do futuro], por exemplo, ficou abismado com o fato de que, numa época dominada pelo racismo, Carlos Gomes compôs O Guarani, uma obra em homenagem ao índio. E o Brasil é o tempo todo isso. Guimarães Rosa é amálgama, Oswald de Andrade é amálgama, Mário de Andrade é amálgama...

Você guarda todos os livros que lê, tem um grande biblioteca em casa?
Eu já tinha 10 mil livros aos 14 anos, pois meu pai sempre me incentivou a ler. Foram tantos livros lidos que eu não teria onde guardar, fui dando tudo. Conheço a literatura de cada país. Leio em alemão, leio em francês... Mas leio novidades também. Recomendo, por exemplo, A nova biografia do Brasil, que saiu pela Companhia das Letras [das autoras Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling]. Ali elas dizem que o Brasil de fato já era conhecido em 1008, 500 anos antes do descobrimento. Também comentam que os índios eram nus, atléticos, perfumados... Mas o que mais causava estranheza é que eles faziam guerra não para conquistar território, e sim apenas por vingança pessoal. Aí você tem outros livros, como os do Domenico De Masi. O último dele, O futuro chegou, tem 500 páginas. Começa lá nos sumérios e acádios, segue por todas as culturas e nas últimas 100 páginas afirma que a única civilização que poderá dar continuidade à vida no planeta é o Brasil, por tudo isso que estou dizendo. Por esse amálgama, esse tropicalismo, essas características que são totalmente inéditas e originais de um país que é um continente.

A palavra do momento no país é “crise”. Como você vê este momento, do ponto de vista simbólico?
A crise é necessaríssima. Acho que a Lava Jato deveria ser uma instituição permanente e perpétua do Estado brasileiro. A crise é ótima porque abre novas perspectivas e nos obriga a pensar em soluções. Porque o mundo não bebe água, não respira e não come sem o Brasil. Nós temos, por exemplo, 95% do nióbio mundial. Sem esse minério, o nióbio, não existe satélite, foguete, viagem à Lua, celular... Se o país tivesse estrada de ferro, o preço das mercadorias baixaria 70%. Se usássemos todo o potencial dos rios navegáveis, baixaria 85%. A nossa agroindústria pode alimentar a China inteira. A Europa toda cabe no Estado do Pará, meu amigo. A riqueza do Brasil é imensa. Essa crise só é compreensível por causa do nosso surrealismo, que é essa diferença entre a realidade do Brasil e o que se descreve como sendo o Brasil. Não leram Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Padre Antônio Vieira... Mas lá fora eles leram e sabem de tudo. Aqui, só algumas pessoas sabem.

Então você é totalmente otimista?
Sim, a crise é real, seríssima, mas tem solução e vai ser resolvida. O que levava dez anos para acontecer, agora acontece em dez segundos por causa do nosso nióbio, que possibilitou a internet e o celular. O povo brasileiro foi proibido de ler e escrever, mas agora ele sabe tudo pelo celular. Já sabia, mas agora sabe mais ainda.

As coisas estão às claras...
Totalmente. Eu vou até citar o [Martin] Heidegger, um filósofo nazista — porque o nazismo é profundo, o mal é profundo. Ele disse, em 1953: “Através da cibernética, viveremos num planeta em que todos serão controlados e controladores”. Isso está se formando agora. Só espero que esses controlados e controladores não se tornem todos descontrolados e descontroladores, como dizia o Nelson Jacobina [principal parceiro musical de Mautner, morto em 2012].

Já que você falou em nazismo, o que achou do grupo de escritores brasileiros que publicou um manifesto de repúdio ao lançamento do livro Minha luta, de Hitler? Eles também propuseram que as livrarias se recusassem a vender o volume.
Eu acompanhei. Acho que deve ser tudo transparente. Mas acontece que o Hitler não era bobinho nem nada. Bobos eram os que achavam que ele era bobo. Ele já era um artista pop, usando toda a força de Nietzsche, de Wagner. Ele sabia tudo. Mas o mal é profundo, e é sempre preciso tomar cuidado. Eu entendi que a indignação do grupo com o nazismo é tamanha, que eles acham que o livro deve ser proibido. Porque o nazismo realmente pega. Como fogo na pólvora. Para mim, é uma indignação bonita, mas acho que não é suficiente. Porque hoje em dia está tudo aí, existe a simultaneiade, aquilo que eu falei de saber em dez segundos o que antes você levaria dez anos para saber. Aliás, é um livro chatíssimo. O que interessa mais era a propaganda que ele fazia. Porque o nazismo era entretenimento absoluto, dia e noite.

Você citou o Nelson Jacobina. Como tem sido os últimos anos, sem a presença dele?Foram 40 anos de parceria intensa, absoluta. Não só fazendo show, não só fazendo palestra. Era o tempo todo lendo livro de História, o tempo todo conversando. Era uma troca permanente, total. Ele teve câncer, com uma metástase violenta de quatro anos. Quatro anos! Nem a pílula mais cara que a gente importava acabava com as dores. O Drauzio Varella disse: “Mas ele está morto, isso é um milagre”. São os neurônios. Oito anos atrás, descobriu-se que nossos neurônios são pura emoção. Deixa o romantismo no chinelo. Só quando ele tocava, ou ia ver a militância, é que paravam as dores. Em Jacareí [SP], no último show, ele deu um bis de uma hora e meia porque não queria sair do palco. Quatro dias depois, faleceu. Mas eu sempre falo com o Nelson Jacobina. Drummond escreveu: “Sempre converso com o meu pai. Ele está morto, o que importa? Sempre falo com ele”. [ri]