Entrevista: Eliane Brum

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“Há certas realidades que só a ficção suporta”


Depois de 20 anos escutando histórias reais, Eliane Brum, a jornalista mais premiado do país, dá vazão a outras vozes em seu primeiro romance, Uma Duas

Felipe Kryminice e Luiz Rebinski Junior


Em uma recente pesquisa, realizada pelo Instituto Corda, Eliane Brum foi considerada a jornalista mais premiada de todos os tempos no Brasil. Os mais de quarenta prêmios que recebeu valorizam o trabalho de uma verdadeira “escutadeira” de histórias, na definição da própria jornalista. Foi essa capacidade incrível de ouvir àqueles que geralmente não são ouvidos — característica indissociável aos grandes repórteres — que fez de Eliane um jornalista que não tem leitores, mas fãs.

Além da carreira bem-sucedida no jornalismo, Eliane Brum também ataca em outras frentes: em 2010 dirigiu, junto com Paschoal Samora, o documentário Gretchen Filme Estrada, que segue a campanha da cantora e dançarina para a prefeitura de Itamaracá, em 2008. Em 2011, Eliane fez sua estreia na literatura com Uma duas, romance que teve boa aceitação da crítica.

Nascida em Ijuí, no Rio Grande do Sul, Eliane Brum iniciou sua carreira no jornal Zero Hora, de Porto Alegre, onde se destacou fazendo reportagens pouco convencionais e descobrindo personagens interessantes nas ruas. Algumas dessas histórias foram reunidas no livro A vida que ninguém vê, vencedor do Prêmio Jabuti de 2007. Eliane também foi repórter especial da revista Época, onde hoje mantém uma coluna na internet.

Depois de uma carreira bem-sucedida no jornalismo, você estreia na ficção com Uma duas. O que a motivou a essa incursão ao romance? A ficção era um desejo antigo seu?

A ficção foi uma necessidade. Depois de mais de 20 anos escutando histórias reais, acho que fiquei povoada por vozes demais. Nos últimos anos, senti um incômodo interno, uma perturbação, mas o ápice desse processo veio com meu trabalho de reportagem com a questão da morte. Não a morte violenta, que costuma ser o tema da imprensa, mas a morte que a maioria de nós terá, de velhice e doença. E que é tão calada na nossa sociedade porque é a “nossa” morte, já que a maioria de nós não morrerá de assassinato, acidente, terremoto ou bala perdida. De 2008 a 2010, trabalhei na reportagem com esta morte. E aí soube com muita clareza que há certas realidades que só a ficção suporta. Para essas realidades, eu precisava de uma outra voz, uma voz na ficção. Então, criei essa voz.

Você costuma dizer que não é assombrada pela página em branco, pelo famoso bloqueio criativo. Mas, por outro lado, tem afirmado que foi muito difícil escrever Uma Duas? Por quê?

Acho difícil ser jornalista e ser assombrada pela página em branco. Trabalhei 11 anos em jornal diário, então montava a estrutura dos meus textos do dia no carro do jornal e escrevia às vezes duas matérias em menos de uma hora. O jornalismo nos ensina que, quando a gente precisa escrever, a gente escreve. Pelo menos essa é a minha experiência. Mas isso não significa que não seja difícil. É muito difícil. Especialmente nas reportagens especiais, maiores, quando a nossa entrega também é maior. Sempre fui possuída pelas histórias reais que contei. Fazer uma reportagem é se deixar possuir pela história que é do outro. E essa entrega tem um custo. Na ficção, o desafio é semelhante, mas o curso é inverso: temos de nos deixar possuir pelas vozes de nossos abismos interiores. Não mais pela voz do outro, como na reportagem, mas pela voz do outro — ou dos outros — de nós. E essa foi uma experiência bem brutal para mim. Durante todo o tempo em que escrevi meu romance, eu o habitei. Fazia os atos todos do meu cotidiano, cumpria meus outros compromissos, mas me tornei a mulher que não estava lá. Enquanto escrevi meu romance, vivi na ficção e encenei a vida.

A protagonista de seu livro também é jornalista. Você se policiou de alguma forma para que o leitor não fizesse nenhuma associação biográfica entre você e sua personagem?
Não. Em nenhuma das minhas escritas eu me policio. Pelo contrário, tento criar mecanismos para me desformatar, me desamarrar. Se policiar é a morte. Me deixo possuir por mim e sigo sem pensar em ninguém. Não penso no leitor quando escrevo. Ou, pelo menos, tento não pensar. Não temos controle sobre como seremos lidos. Então, nem tento ter qualquer ilusão de controle. As pessoas fazem as associações mais incríveis, que nunca me passaram pela cabeça ao escrever. Nem por isso são menos legítimas. Cada leitor é também um escritor, e não existe um Uma Duas, mas tantos romances quanto leitores. Não consigo nem controlar os meus personagens. Acho que a escrita é uma possessão muito particular. Sangramos e, enquanto sangramos, só podemos contar com uma certeza: a certeza de fracassar. A vida é para sempre indizível, nos escapa pelos cantos da letra. E escorremos com ela, mas sem poder parar de buscar.

Há mais de uma voz narrativa no romance. Como decidiu por essa estrutura? O romance teve leitores antes
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de seguir para a editora?

Eu comecei a escrever pensando em ter apenas uma narradora, a Laura, a filha. Mas um dia a mãe, Maria Lúcia, me acordou com sua voz de unha em quadro-negro. Ela falava dentro da minha cabeça, reivindicando uma versão. Dizia que o que eu escrevia estava errado. Me revoltei, no início. Afinal, o romance era meu. Mas a mãe não me deixava mais dormir e então ela entrou na história, de repente. Entrou porque decidiu entrar. E devo isso a ela. O romance ficou muito melhor porque a mãe está nele. Mesmo que eu a odeie às vezes. Agora, a resposta à pergunta dos leitores prévios. Eu nunca mostro o que escrevo para ninguém antes de terminar. Para mim, a escrita precisa ser um processo solitário. Eu gesto. No caso deste romance, uma espécie de “bebê de Rosemary”. Depois que termino minhas reportagens, tenho alguns leitores cativos, que leem primeiro e comentam. Basicamente, meu marido e minha filha. No caso do romance, mostrei para eles depois que terminei, mas eu sabia que não mudaria nada. Era o que eu tinha para dizer. Era a forma que eu tinha para dizer. Era assim que era. Era meu, não importava o que os outros pensassem.

Os críticos costumam dizer que uma das coisas mais difíceis para um escritor, é encontrar sua voz literária. Ou seja, àquilo que de forma mais rasa chamamos de “estilo”. Acha que com o seu primeiro romance conseguiu encontrar a sua voz — ou pelo menos chegar perto dela?
Não sei se acredito em uma voz apenas. Acho que a grande tarefa de uma vida é a busca da própria voz. E este movimento vai muito além de estilo. Mas a busca da própria voz é uma tarefa para a vida inteira. Quando encontramos algo é apenas para perdê-lo. É paradoxal, mas a voz será mais nossa na medida em que nos escapa. Por isso, acredito mais em uma voz mutante, acredito no percurso. Meu romance é a voz de um ponto do meu percurso. Tento percorrê-lo com o máximo de entrega e de verdade.

No jornalismo e na literatura, quais foram as suas leituras seminais. Quais os livros e autores que te influenciaram nessas duas áreas? Especificamente em seu livro, vê marcas de algum escritor?
Não. Sou marcada por muitos. E sou tão marcada pelos escritores do cânone quanto pelos analfabetos que faziam literatura pela boca em todas as geografias do Brasil. É difícil identificar o que fez marca em mim. Eu sou um tipo de leitora obsessiva. Quando me apaixono por um autor, leio tudo dele. Foi assim com escritores tão diferentes quanto Balzac, Poe, Chandler, Jack London, Thomas Mann, Tanizaki, Steinbeck, Tolstói e, por incrível que pareça, José de Alencar, cuja obra li inteira aos 10 anos, até hoje não sei bem por quê. Leio todos os dias — e leio de tudo. Ultimamente, não perco nenhum livro de quatro caras: Philip Roth, Ian McEwan, Kazuo Ishiguro e Coetzee. Com alguns autores, sinto dor física ao ler seus livros e só consigo ler aos poucos, porque fico transtornada. É gente como Guimarães Rosa e Mia Couto, que reinventam a língua. Mas acho importante dizer que também sou gratíssima a J.K. Rowling por ter inventado Harry Potter. E não perdoo Stieg Larsson por ter morrido antes de terminar o quarto livro da série Millenium. Lisbeth Salander, a hacker “detetive” da série, é uma das melhores personagens das últimas décadas. Sou também uma “vampiróloga” e é preciso que um livro de vampiros seja muito falcatrua para que eu não o leia. Há um livro que dou para todas as crianças da família e da vizinhança: A Fada que tinha ideias. E um livro que dou para todos os adolescentes: Demian, de Hermann Hesse.

Humberto Werneck, grande jornalista e grande cronista, costuma dizer que procura ser claro quando jornalista e ser pouco jornalista quando escreve crônica. De que modo o seu trabalho como repórter influenciou na criação do seu primeiro romance?
Ser repórter não é o que faço, mas o que sou. Logo, acho que influenciou muito. Mas, ainda que seja o que sou, e isso é mais profundo do que consigo explicar, não é tudo o que sou. Hoje em dia ando com muita dificuldade com identidades. Não consigo saber direito a separação das coisas, ando meio fluida, meio indefinida. Acho que a internet, especialmente, tem mudado minha relação com o corpo, com o tempo e também com a percepção da escrita. Mas, se tiver de identificar uma influência da reportagem no meu primeiro romance, foi o caminho percorrido até poder viver, também no corpo, a percepção de que há partes da realidade que a reportagem não pode dar conta. Há verdades que só podem ser vividas como ficção. Eu não alcancei essa percepção pelos caminhos filosóficos, mas pela experiência do vivido. O jornalismo me deu as tripas. E eu acho que é muito importante compreender que a escrita tem de passar pelas tripas.

Você tem uma longa trajetória no jornalismo e conquistou um espaço privilegiado, que poucos jornalistas têm. Hoje você pode se dedicar a um texto sem se preocupar com a urgência da notícia “quente”, diária. Mas como um jovem repórter consegue se desvencilhar das amarras do jornalismo diário, quando sua matéria-prima é o fato?

Eu não vejo o jornalismo diário como “amarras”. Descobri a extraordinária vida comum fazendo jornalismo diário. E talvez por achar o jornalismo diário fascinante é que tenha, depois de muito tempo, conquistado um espaço para fazer reportagens mais longas e de maior entrega. Acho que não há muito mistério. Você tem de ter um projeto seu — porque, se não tiver, não só no jornalismo, mas em qualquer área, vai fazer o projeto dos outros. O que, convenhamos, é uma pena para uma vida. E você tem de não só ir para a rua, coisa que muita gente tem preguiça de fazer, mas ralar muito para trazer algo que valha a pena da rua. Fazer bom jornalismo dá muito trabalho, é uma entrega profunda. Tem de querer muito isso — ou não rola. Eu nunca tive a ideia de que a vida era fácil e de que eu teria alguma coisa de forma fácil. Então, nunca me assustei muito com a dificuldade que é ser repórter. Mas acho que tudo começa e termina pelo respeito que você tem por si mesmo e pelo respeito que você tem pela história que é do outro. Eu nunca admiti ser preguiçosa porque sempre soube que a minha preguiça era criminosa por três razões bem básicas: 1) nós, jornalistas, nos propomos a documentar a história cotidiana do país, portanto assumimos essa responsabilidade e temos de dar um jeito de dar conta dela ou temos de ter a honestidade de cair fora; 2) contar a vida de alguém é algo grande, transformador, precisamos respeitar este pacto e estar à altura dele; 3) eu tenho muito respeito por mim mesma para ser medíocre, se eventualmente for, não vai ser porque faltou esforço.

Além de sua bem-sucedida trajetória como jornalista e sua nova carreira de romancista, você também é documentarista. Consegue perceber pontos em comum nessas três atividades? Ou seja, é possível estabelecer conexões entre a Eliane romancista e a documentarista, por exemplo?

Eu sou uma contadora de histórias. Esta é a conexão. Sou, principalmente, uma “escutadeira”. Seja da história do outro, seja da história dos outros de mim.

Depois de tantos anos no jornalismo, você saiu da redação. Coincidentemente, essa saída casa com o lançamento de seus primeiro romance. A literatura passará a ser mais presente em sua vida? Ou seja, pretende virar escritora full time?
Acho que ser jornalista é ser escritor. Neste sentido, acho que sou uma escritora “full time” por toda a minha vida adulta. O que aconteceu é que decidi me reapropriar do meu tempo, depois de trabalhar com a questão da morte. Senti essa urgência de ser dona do meu tempo, inclusive para não fazer nada com ele. E também para fazer literatura com ele. Mas, desde que me alfabetizei, eu nunca consegui imaginar uma vida fora da palavra escrita. Eu não vivo para escrever — eu só vivo porque escrevo. É uma diferença profunda.

Em uma pesquisa recente, desenvolvida pelo Instituto Corda, você foi considerada a jornalista brasileira mais premiada de todos os tempos. Esses prêmios ainda lhe emocionam?
Eu sabia, claro, que tinha ganhado muitos prêmios, mas jamais imaginaria esse resultado. Os prêmios sempre me dão frio na barriga. Lá em casa a gente tem um sentido de urgência com a vida. Então, comemoramos tudo. Cada prêmio que eu ganho é muito comemorado, a gente abre um vinho, faz uma comidinha melhor, coisas assim. Ganho flores e uns chocolates caros que eu adoro do meu marido, para comer na minha banheira. E minha família lá em Ijuí corre a botar no jornal da cidade. Acho que meus pais ainda se recuperam do tempo em que eram olhados com pena por serem pais da mãe adolescente e solteira da cidade (risos). Então, a resposta é sim: eu gosto de ganhar prêmios, acho um reconhecimento importante também politicamente, para continuar tendo espaço para contar as histórias que conto, e me emociono muito.

Para finalizar, qual o principal conselho que daria a um jovem repórter?

Duvidar, de tudo e de todos — duvidar das certezas dos outros e mais ainda das suas. Aprender a escutar, que é muito mais difícil do que parece. Não cair na tentação nem da vaidade, nem da arrogância. Não ser preguiçoso, nem esperar que seja fácil. E ler todos os dias.