Entrevista | Daniel Link

“A literatura argentina já é pós-borgiana”

Daniel Link, um dos mais provocativos escritores e acadêmicos argentinos, fala sobre o cruzamento de gêneros nas obras de Borges, Copi e Walsh

Ronaldo Bressane

“É melhor não fechar nenhuma janela, para que todos os ventos nos atravessem”, pede Daniel Link, perguntado sobre seu interesse no cruzamento entre gêneros na literatura. Um cruzamento que se cristalizou com os contos-ensaio de Jorge Luis Borges, nome central da literatura argentina do século XX — centralidade, para Link, já abandonada em favor dos diálogos entre as obras de Borges e de César Aira (o mais prolífico autor contemporâneo), ou entre Borges e Copi (tema de muitos estudos de Link). 

Nascido em Córdoba em 1959, Daniel Link é escritor, jornalista (colunista do jornal Perfil, foi editor da Magazine Literario e do suplemento “Radar”, no jornal Página 12), crítico literário, professor na Universidade de Buenos Aires e diretor do Programa de Estudos Latinoamericanos Contemporâneos e Comparados. Dirige a revista de estudos latinoamericanos Chuy e o Dicionário Latinoamericano da Língua Espanhola. Editou na Argentina grande parte da obra de Rodolfo Walsh e de Michel Foucault e é autor, entre outros, do romance Monsterrat (2006), o volume de contos La mafia rusa e o monumental ensaio Suturas. Imágenes, escrituras, vida (que teve uma edição resumida no Brasil sob o título Suturas. Um breviário, pela editora Azougue). Seu livro mais recente é La lógica de Copi, em que pesquisa a inventiva obra do dramaturgo, ator, escritor e cartunista argentino Raúl Damonte Botana, mais conhecido por Copi, que no Brasil só teve lançado até agora o romance O Uruguaio, de 1972 (em 2015, pela Rocco).

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Para o crítico Daniel Link, a obra do escritor Copi é central na literatura argentina contemporânea porque "amplia os limites do dizível e do imaginável" 

O travestismento e o transenxualismo são marcas da obras de Copi — militante gay morto em 1987 por complicações advindas do HIV —, que aproximou o desenho do relato e o teatro do romance. Esses cruzamentos são marcas da vanguarda que, para o sintético Link, podem definir a ficção do século XXI.

No Brasil você teve lançados Como se lê e outras intervenções críticas e Suturas. Um breviário, ambos livros que buscam compreender a atitude com que um leitor se aproxima da literatura. Como se lê um livro sob a perspectiva das redes sociais e da Nefflix, que nos distraem a atenção?  
Suturas. Imágenes, escrituras, vida retoma as mesmas obsessões que já estavam em Como se lê, escrito 10 anos antes. Acho que hoje poderia ver com certa melancolia aquelas hipóteses libertárias, não porque não existe liberdade possível na internet, mas porque as forças que fazem falta para sustentá-las são muitas. Para mim, a existência das redes sociais (das quais não participo) são a afirmação do poder do controle sobre nossas vidas. Netflix: quase tudo que produzem é ruim. Por que será?

Para escrever com liberdade é necessário escapar da internet? 
Não acho que escrever tenha alguma relação com a existência ou não das redes sociais. Em seu livro Autorretrato no escritório, Giorgio Agamben parte da constatação de que a imagem do escritor se constrói a partir da solidão em seu gabinete. O mundo é outra coisa radicalmente diferente daquilo que existe nas redes.

Roland Barthes, em Grau zero da escrita, diz que a escrita é fundamentalmente um exercício da liberdade. 
A literatura inclui todos os outros saberes. Mas mais que isso, a literatura é um tipo de saber que permite enfrentar todo dogmatismo, porque o texto é, por definição, um espaço de despoder, de despossessão. Ao escrever um texto, um autor sabe que esse texto será lido de qualquer forma, não necessariamente como ele queria ou tinha previsto. Essa declinação do poder, que é o poder da lei, é o que a literatura conserva como seu maior tesouro. Nos parece razoável ensinar a ler a lei para que todos saibam a que ater-se (que penas vão lhes corresponder quando não cumprirem a lei). Muito mais útil é ensinar a ler textos, porque isso permitirá, mais cedo ou mais tarde, compreender o caráter histórico, ou seja, convencional, da lei — e, no melhor dos casos, abolir as leis que atentam contra o exercício reto da democracia e da soberania sobre nós mesmos.

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Arturo Carrera já publicou mais de 20 livros e é hoje um dos principais nomes da poesia argentina. Sua obra já foi traduzida para o inglês, francês e sueco. Em 2011 teve seu livro A inocência lançado no Brasil pela editora 7 letras.

O escritor e performer Copi é um de seus principais objetos de estudo. Conhece o trabalho de Carlos Henrique Schroeder, no livro Fantasias Eletivas, que usou Copi como personagem?
Sim, conheço. E fico feliz em saber que Copi conseguiu articular sua própria voz com outras vozes latinoamericanas, porque o latinoamericanismo (tão tênue, mas tão indubitável) de Copi necessita desses vínculos.

Falando em latinoamericanismo: por que lemos tão pouco os autores hispânicos, e vice-versa, se nossa condição de escritores vindos de ex-colônias nos deixam mais próximos? 
Porque existem as políticas metropolitanas, que se beneficiam da fragmentação de seus súditos.

Por que a obra de Copi é tão central na literatura argentina hoje?
É uma obra de grande liberdade, que amplia os limites do dizível e do imaginável. Sobretudo, penso que estabelece um umbral de transformação daquilo que é vivo, bem contrário à mutação antropológica, essa catástrofe que tanto preocupava Pasolini. Em Copi, há indicações de que outro mundo e outro universo são possíveis, para além dos existentes. Pouco a pouco, vamos nos aproximando disso. 

Você já disse que Beatriz Sarlo o ensinou a ler. Como se pode ensinar alguém a ler em 2018, com tantas distrações? 
Com rigor, claro. E com amor. E com humildade. Nunca se deixa de aprender, e escutar a voz daqueles a quem alguém está destinado a lhes ensinar é uma maneira de fazer funcionar o circuito (a leitura é um circuito).

Tendo em perspectiva Copi, se pode pensar em uma literatura trans, que transicione entre gêneros? Por exemplo, entre a ficção e o ensaio? 
Claro, isso já estava em Proust e por isso eu relacionei um par de vezes a Procura proustiana com as buscas de Copi. Copi desdenha o ensaio, mas ainda assim sua obra deve ser lida como um passo do pensamento.

Você também alterna em sua obra gê neros como ensaio, romance, conto, crítica. 
É melhor não fechar nenhuma janela para que todos os ventos nos atravessem.

Passados alguns anos desde a morte de Borges, é possível afirmar que ele ainda é o centro magnético da literatura argentina? Ou podemos pensar em Cesar Aira como o grande escritor argentino contemporâneo? 
Me parece que nosso universo literário já é pós-borgiano. E isso implica que Borges sempre funcionará como um substrato, mas os caminhos começam a ser muito divergentes. Existe um diálogo Borges-Aira, naturalmente, mas também há uma relação Borges-Copi (por exemplo, na Internacional Argentina se convoca a Raúla Borges, uma “filha natural de Borges”, e a trama da novela avança segundo o desejo de um magnata negro: isso não é borgiano, já é pós-borgiano).

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Como a literatura argentina contemporânea dialoga com a tradição? Rodolfo Walsh e Roberto Arlt são mais lidos agora do que quando vivos? Ricardo Piglia terá sucessores?
É difícil pensar em termos de sucessores e heranças. Creio que Martín Kohan, em todo caso, se inscreve em uma linha pós-pigliana. María Moreno, não só porque leu muito lúcidamente sua obra, escreve pensando em Walsh, tenho certeza.

Talvez o autor hispânico mais influente dos anos 2000 para cá seja Roberto Bolaño. Como vê a sombra de Bolaño sobre a literatura argentina?
Incide muito pouco. O que Bolaño faz tem um horizonte de leitura, creio, mais europeu.

Há muitos argentinos contemporâneos que têm chegado ao Brasil, como Mariana Enríquez, Samanta Schweblin, Selva Almada, Patricio Pron. Que outros nomes poderia citar, na prosa?  
María Moreno e Edgardo Cozarinsky são autores cuja leitura me enriquece muito.

E na poesia? Alejandra Pizarnik só agora foi finalmente traduzida ao português. Que poetas apontaria?
Arturo Carrrera (que foi amigo de Alejandra) é provavelmente o poeta vivo mais importante dos nossos dias. Meus amigos Diego Bentivegna e Ariel Schettini publicam livros sempre assombrosos. Bárbara Belloc e Terasa Arijón têm um perfil quase secreto, mas seus poemas são extraordinários.

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Autor de grande prestígio hoje, Rodolfo Walsh (1927-1977) teve dois livros lançados no Brasil, Operação massacre e Essa mulher e outros contos

De que trata sua pesquisa atual na universidade?   
Estamos trabalhando basicamente em relação às noções de arquivo, an-arquivo e contra-arquivo. Nos interessa rastrear, nos arquivos que constituem nosso campo metodológico, as linhas de força que fazem com que digamos o que dizemos e vejamos o que vemos. 

A autoficção é uma tendência forte na literatura atual. Há um confronto entre a literatura de autoficção e a literatura de imaginação?
Debate nenhum, creio. O “eu” é o mais imaginário dos conceitos. 

Como foi organizar os papéis de Rodolfo Walsh? Descobertas?  
Reconstruí dois contos inconclusos (“Adiós a La Habana” e “Ese hombre”), mas o trabalho foi sobretudo de organização. Sempre esperamos que apareçam mais coisas. Em tempos de conspiração e capitalismo selvagem, é necessário recordar sempre Rodolfo Walsh, é necessário recordar sempre a ideia de verdade e emancipação.

Poderia falar um pouco mais do seu Colectivo Quri Kancha?
Ah... é um coletivo que integro junto com Sebastián Freire (fotógrafo) e Albertina Carri (artista de imagem e performance). Nos interessa, como coletivo, investigar as articulações entre corpo e arquivo. Os dispositivos que nos disciplinam, mas também as avenidas da emancipação. Até agora, a primeira apresentação que fizemos foi Archivos del Goce, del Amor y del Deseo (O el incendio de los lugares comunes). Enfim: o pensamento pode aparecer por qualquer parte, e a escrita também.

Que está escrevendo agora?  
Dois romances, ou um. Enfim: algo sem notas de rodapé... Não me coloco prazos para terminar. Deixo que as coisas avancem segundo seu ritmo próprio. Me custa encontrar o momento da coagulação justa dos prazos e das ideias porque não tenho muito tempo... ou vivo o tempo de uma forma desordenada.