Ensaio | Wander Melo Miranda

Nas fronteiras da invenção

O professor e escritor Wander Melo Miranda analisa como Silviano Santiago conjugou teoria e imaginação para compor uma obra literária múltipla, em que a abundância de temas e gêneros — do ensaio à memória — possibilita variadas formas de leitura


Se todo texto literário é uma promessa de felicidade, “depois que se é feliz o que acontece?”, pergunta o narrador de Mil rosas roubadas (2014). São inúmeras as respostas que atravessam a obra — ensaio, ficção, poesia— de Silviano Santiago e fazem dela um inesgotável vir-a-ser-outro da escrita,então desdobrada numa rede de memórias,apropriações e relações de sentido da condição cultural brasileira e sua inserção internacional.

A resposta-indagação pode vir de vários entre-lugares: da carta estratégica de Caminha à dúbia palavra-semente de Vieira e ao batismo colonizador do Poti de Alencar; dos equívocos de uma cultura minada pelo bacharelismo e pela moral jesuítica, como Machado de Assis deixa às claras na segunda metade do século XIX, às contradições do escritor modernista,que atua no limite traçado pelo caráter engajado e esteticamente revolucionário da obra e a participação no quadro de empregos públicos do Estado autoritário;da perpetuação dos bens simbólicos do sangue e do clã pela memória de Drummond à robusta correspondência do poeta com Mário de Andrade ou à radiografia lúcida e sem complacência da realidade brasileira operada por Graciliano Ramos; do movimento tropicalista à literatura marginal dos anos 1970e aos relatos de vida dos jovens pós-64;das raízes e do labirinto da América Latina ao cosmopolitismo do pobre e à wilderness de Grande sertão: veredas —tudo isso pela via desconstrutora de umgai savoir inquiet, tomando de empréstimo as palavras de Didi-Huberman.

A alegria não é aqui somente uma prova dos nove, mas a “força maior” nietzscheana que abre as portas da literatura brasileira para a pós-modernidade,ao livrá-la do peso da pura negatividade e do espírito de ressentimento,como mostraram os jovens narradores pós-ditadura militar: “Otimistas e tristes ficaram as figuras do poder, contraditoriamente.Sacrificados e alegres ficaram os opositores do regime, afirmativamente”,dirá o crítico em 1988. Nada melhor para entender a eficácia e o raio de ação dessa postura do que recorrera Em liberdade (1981), transcrição fingida do pretenso diário que Graciliano Ramos teria escrito após deixara prisão em 1937.

Hoje um clássico da literatura brasileira, o livro dramatiza a experiência da leitura pelo pastiche do discurso autobiográfico. O narrador, então distanciado da experiência de vida narrada e, a um só tempo, confundido com ela e nela interferindo por vias transversais, desloca e descentra o lugar do sujeito da escrita e, ao assumir seu corpo, identifica-se com o leitor no olhar que ambos lançam ao outro. Mas um curto-circuito interrompe a relação amistosa de ambos,quando o leitor percebe que lhe é oferecido gato por lebre, já que não se pode afirmar com certeza de quem é o diário.

História e ficção a contra pelo, Em liberdade não é, como o próprio título indica,um canto de reverência fúnebre,mas a alegre afirmação do indivíduo no presente, resistência do corpo — e da escrita— a todos os desmandos da história.

A questão é retomada em diferença por Mil rosas roubadas (2014), a partir da visão do corpo em coma do amigo querido, que o relato opta por dar vida na biografia impossível que o narrador, um velho professor de História,tenta ironicamente levar adiante:“Perco meu biógrafo. Ninguém me conheceu melhor que ele”, é dito logo de início, como uma senha do que virá pela frente. O estado do corpo meio morto,meio vivo — ligado a sondas e aparelhos— traduz a compulsão biopolítica de fazer viver a todo custo. Mas a reversão de expectativas provocada pela perda do possível biógrafo, que se torna biografado,rasura a identificação dos corpos e,com isso, deixa entrever uma abdicação do sujeito (narrador) para instaurar uma experiência compartilhada do sensível,matéria do livro.

Escrita derridiana sem pai, porque intercambiáveis as figuras do biógrafo e do biografado, ela se faz por linhas de fratura e desincorporação, que reforçam o processo de auto-dissimulação biográfica como espaço de incorporação desse terceiro que é o leitor. Pode-se falar, então, de uma comunidade emancipada, uma vez que se desfazem as fronteiras do sensível, da divisão estética entre os que atuam e os que leem por meio da narração de uma história comum que, paradoxalmente, instaura a individualidade do sujeito, a liberdade da escrita e da leitura.
                                                             
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em liberdade
decocoras
O entre-lugar
Como na epígrafe de Stella Manhattan (1985) — nas palavras de Kafka:“Deus não quer que eu escreva, mas eu sei que devo escrever” —, a liberdade da escrita requer o trabalho paciente e violento de desconstruir — esquecimento e memória. Por isso, o escritor tira partido da margem de onde fala,que num texto crítico de 1978, “Vale quanto pesa”, publicado no livro homônimo,declara-se um entre-lugar, noção que já se mostrara antes como operadora de leitura em “O entre-lugar do discurso latino-americano” (1971). Em“Vale quanto pesa”, lê-se: “É nesse entre cruzar de discursos, já que é impossível apagar o discurso europeu e não é possível esquecer mais o discurso popular,que se impõe o silêncio do narrador--intelectual e que se abre a batalha da paródia e do escárnio, é aí que se faz ouvir o discurso do dominador e do dominado.É neste pouco pacífico entre-lugar que o intelectual brasileiro encontra hoje o solo vulcânico onde desrecalcar todos os valores que foram destruídos pela cultura dos conquistadores (…) É ainda neste entre-lugar que o romancista vê no espelho, não a sua imagem refletida,mas a de um antropólogo. Um antropólogo que não precisa deixar o seu próprio país.”

Inspirados pela “teoria da dependência”,os dois textos dos anos de1970 ainda guardam possibilidades teóricas e críticas bastante sugestivas. Embora as relações de dominação tenham--se tornado mais complexas no mundo globalizado e a “batalha da paródia e do escárnio” tenha mudado de armas, a noção de entre-lugar oferece um posto de observação privilegiado, na medida em que abre um espaço cultural e literário para as políticas de identidade que emergem ou se afirmam atualmente.Basta pensar no tratamento dado ao homoerotismo em contos de Keith Jarrett no Blue Note (1996) ou de Histórias mal contadas (2005), em que memória e ficção se confundem na configuração heterodoxa do sujeito da escrita pela via de seu de-facement, para usar termo de Paul de Man.

Ou se pense também no trabalho realizado por Santiago em relação a Artaud, num movimento paroxístico que confina com a loucura e, em última instância,com o silêncio. Na forma monstruosa do anfíbio — “uma só cabeça e vários tentáculos, várias pernas-tentáculos que se assentam em terras diversas e variados mares” —, Santiago superpõe o ano de seu nascimento, 1936,ao ano da partida de Antonin Artaudpara o México. Mais radical do que Em liberdade, a experiência vivida assume a forma de uma máscara ou assinatura,confunde uma e outra, até o limite da despersonalização, ou seja, da afirmação da verdade do discurso biográfico pela sua impossibilidade narrativa. Livro“monstruoso”, Viagem ao México (1995) exorbita as fronteiras da invenção e do medo — ou coragem? — da representação e seu duplo, da enorme erudição convocada para, afinal, ser negada.

Na relação com o passado, a vidas e apresenta então como obra literária,para usar a perspectiva com que Santiago lê O amanuense Belmiro, de Cyrodos Anjos, não fosse a forma com que a memória-citação toma corpo na obrado autor de O banquete (1970). Em um de seus contos, o narrador recorre a Valéry para expressar o processo da influência literária. Diz ele: “um leão é feito de carneiros digeridos”, e depois corrige a frase nos termos de Gide: “um leão é feito de sua imagem digerida, pois a imagem (…) só é criada para realçar certas virtudes do modelo original”.

Perdido o referente primeiro e descartada a submissão ao texto metropolitano,não há mais lugar para a devoração antropofágica nos termos concebidos por Oswald de Andrade. Uma imagem que engole outra imagem, ao infinito, descola o leitor da realidade e,ao fazê-lo, permite-lhe novos pontos de fuga ou de perspectiva do real. Devolve--lhe seu corpo/corpus de leitor na forma de um descompasso ou embate que engendra a experiência da leitura como experiência de vida, segundo o narrador de Em liberdade:“A verdadeira leitura é uma luta entre subjetividades que afirmam e não abrem mão do que afirmam, sem as cores da intransigência. O conflito romanesco é, em forma de intriga, uma cópia do conflito da leitura. Ficção só existe quando há conflito, quando forças diferentes digladiam-se no interior do livro e no processo da sua circulação pela sociedade. Encontrar no romance o que já se espera encontrar, o que já se sabe, é o triste caminho de uma arte fascista, onde até mesmo os meandros e os labirintos da imaginação são programados para que não haja a dissidência de pensamento. A arte fascista é‘realista’, no mau sentido da palavra. Não percebe que o seu ‘real’ é apenas a forma consentida para representar a complexidade do cotidiano”.

Leitura ficcional e leitura ensaística se conjugam, abrem caminho para o agón, para o enfrentamento de valores literários, sociais e políticos impossíveis de serem apartados na arena onde se confrontam. Os textos de Santiago — não importa a inflexão predominante que cada um possa ter — insistem na configuração de uma escrita em que as culturas se reconhecem por meio de suas projeções de alteridade, já atravessadas pelos efeitos de globalização. Nesses termos,instauram formas singulares de interlocução que, por sua vez, impulsionam a construção de novas ficções teóricas.

Ficção e ensaio aparecem, assim, investidos da autorreflexão de suas premissas até o limite de sua implosão e refuncionalização, até a destituição da transcendência que antes garantia ao texto um lugar hegemônico na ordem dos discursos. Para tanto, o gesto crítico ou ficcional vale-se da natureza intersticial da literatura — uma forma entre outras, um valor entre outros — para melhor acessar as novas conexões propiciadas pelo entre-lugar que lhe garante sobrevida na atualidade.

O deslocamento do sujeito deum texto para outro, de uma imagem para seu contrário, de uma cultura instituída para o que ela recalca, reafirmao movimento da différance, colocando em xeque o estatuto tradicional do texto literário. Artes e artimanhas da literatura:redimensionar a natureza heterogênea das práticas sociais e culturais como uma política da forma. É o que se lê no belíssimo conto “Todas as coisas à sua vez — Abecedário”, de Histórias mal contadas, monólogo alucinado de Graciliano Ramos diante da morte iminente:“Dou-me de presente todas as ideias.Só não me dou de presente a ideia do infinito. Não me acostumaram (não me acostumei) a justificar qualquer hierarquia,a pensar a desigualdade. A relação do homem com o infinito não se passa no campo do saber. O infinito é um desejo que se nutre da própria fome. Ele cresce, mais se sacia. Eu, um metafísico? De jeito nenhum. Encantam-me os paradoxos. Ou melhor: sou vítima dos paradoxos. Se levanto o punhal para assassiná-los, zombam de mim. Quanto mais zombam, mais os admiro pela inconsistência sedutora”.

Em De cócoras (1999), o tema modula-se pela intervenção da morte como horizonte próximo de uma experiência excessiva por sua própria natureza e que, no limite textual, se confunde com a alucinação. Não há ponto de retorno, a não ser a memória do menino,sob o esquife da mãe morta: memória de um impossível retorno ao passado ou projeção de um futuro fadado a não se cumprir como promessa de felicidade para Toninho/Antônio. No momento final de embate com o anjo, acentua--se a superposição de sonho, memória e desejo, mais uma vez marcados no corpo do sujeito que escreve.

A estrutura do paradoxo — ou dobradiça — permite o trânsito do sujeito através das mais distintas formas de enunciação, em busca de “um ritmo anônimo e exterior” como propõe em Stella Manhattan, para seu corpo e o corpo do texto. Talvez por essa razão o escritor tenha de passar das histórias de família àshistórias da tradição, ou ao contrário, por pressentir que, nos momentos de descontinuidade de uma passagem a outra,no instante do movimento da dobradiça,em que a outra face do objeto ainda não se mostrou por inteiro, algo novo acontece e desaparece para sempre.

Talvez esses momentos sejam momentos privilegiados da promessa de felicidade do texto. Aí, nesse intervalo, a identidade do sujeito e a da tradição se consomem, ou melhor, se desgastam e se perdem no excesso de energia desprendida,como a xícara de leite que transborda,o “líquido branco (…) escorrendo pela mesa ensopando a toalha, emporcalhando tudo”. Momento privilegiado porque o evento rememorado torna--se outro pela linguagem que contradiz a economia da falta originária, num corpo a corpo com o passado, tornado presente no corpo a corpo do texto com o escritor,enfim, no doloroso movimento de felicidade da escrita e da leitura.

Wander Melo Miranda é professor de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É autor de, entre outros livros, Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago.