Ensaio | O progressista conservador (ou vice-versa)

Luiz Ruffato analisa a trajetória de Graciliano Ramos, defendendo a tese de que o escritor se reinventou a cada novo livro publicado, além de ressaltar que o autor de Vidas secas duvidava dos modismos e cultuava os clássicos



Nunca compreendi a inserção de Graciliano Ramos na corrente regionalista da literatura brasileira, assim como ainda hoje me intriga o fato de historiadores e críticos literários situarem a obra dos romancistas nordestinos, Graciliano incluso, como continuação natural dos preceitos da Semana de Arte Moderna de 1922. Nada mais equivocado, a meu ver. 

Os romances, contos e memórias de Graciliano constituem um todo coeso e inseparável de sua formação intelectual, pouco afeito às conquistas do modernismo e às inovações técnicas das diversas vanguardas. Aliás, Graciliano demonstra verdadeira antipatia pelos modernistas. Indagado, certa feita, se acompanhou os desdobramentos do movimento paulista, responde positivamente, para emendar: “Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos”. E, quando perguntado diretamente se se considerava modernista, responde, com irritação: “Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão”. Noutro momento, o escritor é ainda mais contudente: “Tenho a impressão (...) de que as gerações novas, surgindo com o seu ímpeto revolucionário, com sua forte propaganda e também com muitas imposturas, não só fabricaram uma boa quantidade de falsos valores, como adulteraram julgamentos, fazendo com que hoje sejam ignorados e, por isso mesmo, desprezados muitos de nossos escritores do passado, superiores a esses ruidosos cabotinos que andam por aí”. 

Em diversas ocasiões, Graciliano manifestou sua preferência pelos clássicos e sua incompreensão pelos modernos. Em entrevista, em Lisboa, reproduzida no jornal carioca Correio da Manhã, o escritor faz afirmações como: “Não sou otimista em relação à literatura brasileira... (...) A verdade é que não há valores no romance brasileiro depois do romance nordestino de 1932 a 1935. (...) não entendo essa coisa que os modernos chamam poesia (...) E na Europa? Onde estão os novos valores? Os que substituíram Balzac e Tolstói e o Eça, dos Maias?” Graciliano chega a ser tão conservador em sua visão estética, que nem mesmo Machado de Assis, que considera “o maior entre os brasileiros” no gênero conto, livra-se de sua crítica: “Machado de Assis é um grande escritor, apenas não é romancista. Do ponto de vista da técnica novelística, todos os seus romances são deficientes. São misturas de crônicas, ensaios, aforismos, meditações, contos, sobretudo de contos. O Brás Cubas não é outra coisa senão uma narração incoerente, com uns contos interpolados”. Ou seja, aquilo que diferencia e singulariza Machado de Assis, a sua original concepção da arquitetura do romance, é justo isso que impacienta Graciliano. 

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Entre 1933 e 1938, Graciliano Ramos publicou os quatro volumes que compõem
toda a sua obra romanesca.


Nascido em Quebrangulo, interior de Alagoas, em 1892, o escritor teve uma formação literária autodidata. Após uma breve e quase anônima passagem pelas redações de jornais do Rio de Janeiro, entre 1914 e 1915, voltou para Palmeira dos Índios, onde sua família havia se radicado, casou-se, enviuvou. É assim, dono da loja A Sincera, cuidando sozinho de quatro filhos, que em 1926 vai ser encontrado por José Lins do Rego, em visita à cidade como membro da comitiva oficial do governador do Estado. Conta José Lins que, avisado de que ali morava “o homem que sabe mais mitologia em todo o sertão”, deparou-se com um sujeito de “olhos desconfiados” que, além de mitologia, também entendia de Balzac, Zola e Flaubert: “Soube que era comerciante, que tinha família grande, que era ateu, que estivera no Rio, que fizera sonetos, que sabia inglês, francês, que falava italiano”. Estava então com trinta e quatro anos, lia muito, assinava jornais do Rio de Janeiro e mantinha- se informado das novidades literárias por meio de encomendas às livrarias Alves e Garnier, e ao Mercure de France, de Paris. E também escrevia bastante. 

Graciliano publicou seu primeiro trabalho literário aos doze anos, o conto “O pequeno pedinte”, no jornal O Dilúculo, do Internato Alagoano, de Viçosa, onde estudava. Ao longo das décadas de 1910 e 1920, divulgou poemas, crônicas e contos sob diversos pseudônimos, em periódicos provincianos: O Indio, de Palmeira dos Índios; Jornal de Alagoas, de Maceió; Parahyba do Sul, da cidade de mesmo nome, situada no interior do Estado do Rio de Janeiro. As crônicas foram recolhidas postumamente em quatro volumes: Linhas tortas e Viventes das Alagoas, ambos de 1962, e, mais recentemnte, Garranchos, de 2012, e Cangaços, de 2014. Os poemas permanecem inéditos — a saber, versos satíricos, como os transcritos por Aurélio Buarque de Holanda, em artigo em homenagem aos 70 anos de nascimento de Graciliano, e sonetos parnasianos, como informa Otto Maria Carpeaux (“O fracasso da primeira tentativa de uma carreira literária [a passagem do escritor pelo Rio de Janeiro entre 1914 e 1915] se compreende — o próprio Graciliano me confessou ter escrito, então, sonetos parnasianos”). 

Já os textos de ficção tiveram diferentes destinos. Em carta enviada à sua irmã Leonor, datada de 10 de julho de 1915, Graciliano cita a existência de três contos prontos para publicação (“Maldição de Jeovah”, “A carta”, “e O discurso”) e de pelo menos outras três novelas (embora só nomeie uma delas, O retardatário). Em fins de 1925, o escritor resolveu dar um fim nos inéditos, como conta ao amigo A. J. Pinto da Mota Lima Filho, em carta datada de 1º de janeiro de 1926: “O mês passado, abri o compartimento inferior da estante e encontrei lá um par de tamancos imprestáveis, uma coleção de selos e algumas resmas de manuscritos. Deitei fora os tamancos, dei os selos ao meu rapaz mais velho e queimei os papéis”. Mas não queimou tudo... Na mesma carta, afirma: “(...) tive a fraqueza de poupar ao fogo umas coisas velhas que me trazem recordações agradáveis e dois contos que andei compondo ultimamente, porque tenho estado desocupado e me imaginei com força para fabricar dois tipos de criminosos”. 

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Graciliano, mesmo reconhecendo a qualidade literária de Machado de Assis, fazia restrições
em relação à obra romanesca do autor. “Machado de Assis é um grande escritor, apenas não
é romancista”, dizia.

Por essa época, Graciliano estava redigindo seu primeiro romance, Caetés, impregnado das leituras de Eça de Queirós, autor que endeusava: “Graça [apelido familiar de Graciliano] e eu líamos, por exemplo, Os Maias, infinitas vezes, quantas ocasiões houve em que eu recitava um trecho e ele emendava por linhas inteiras”, recorda Heloísa, sua mulher,em entrevista a Leo Gilson Ribeiro. Concluído em 1928, o livro, que reputava uma “narrativa idiota”, resultado de “leituras insuficientes”, e que muitos críticos, convencidos pela suposta má vontade do autor com relação a ele, consideram-no erroneamente um título menor em sua bibliografia, continuou a ser “mexido” até perto de sua publicação, em 1933 — sinal de que passou por seu rigorosíssimo crivo. A significativa importância de Caetés no conjunto de sua obra, o próprio Graciliano percebe: “Nessas páginas horríveis, onde nada se aproveita, um fato me surpreendeu: as personagens começaram a falar. Até então minhas infelizes criaturas abandonadas incompletas, tinham sido quase mudas, talvez por tentarem expressar- -se num português certo demais, absolutamente impossível no Brasil”. Aqui, talvez, possamos nos indagar, então: de onde viria a consciência de Graciliano Ramos a respeito da necessidade de usar uma língua nacional em suas narrativas? Seria uma influência dos modernistas de 22, já que abrasileirar a língua portuguesa era uma de suas mais importantes premissas? 

Em 1948, em entrevista a Homero Senna, Graciliano afirma que em sua primeira passagem pelo Rio de Janeiro não fez nenhuma camaradagem literária, já que “os escritores daquele tempo eram cidadãos que, nas livrarias e nos cafés, discutiam colocação de pronomes e discorriam sobre Taine. [Aqueles anos] assinalam, na literatura brasileira, uma época cinzenta e anódina (...)”. Portanto, o escritor já havia percebido que a língua com que se exprimiam os literatos do começo do século, vazia e pedante, não servia a seus propósitos. E a solução para esse impasse já havia sido dada pelo menos desde meados do século XIX. A preocupação em fundar uma língua literária nacional está toda ela formulada em diversos textos teóricos de José de Alencar — os posfácios a Diva, de 1865, à 2ª edição de Iracema, de 1870 e à 2ª edição de Sonhos D’Ouro, de 1872, afora cartas, artigos e crônicas, e que poderia ser resumida assim: “O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve figo, a pera, o damasco e a nêspera?”. Graciliano leu Alencar em sua infância, e conhecia e apreciava as proposições do cearense — “Tinha eu dez anos de idade, quando comecei a admirar as bonitas descrições, a linguagem atraente do autor da Iracema”. 

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O editor e amigo José Olympio, que publicou grande parte das obras de Graciliano, incluindo o clássico Vidas secas.

Em 1932, os originais de Caetés já se encontravam nas mãos do poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, e Graciliano, de volta a Palmeira dos Índios, após breve passagem por Maceió, onde exerceu o cargo de diretor da Imprensa Oficial do Estado, andava às voltas com “ideias negras”: “(...) lembrei-me então dos criminosos dos conto que havia salvado do fogo em 1926]. Um deles entrou a perseguir-me, cresceu desmedidamente, um que batizei com o nome de Paulo Honório e reproduzia alguns coronéis assassinos e ladrões meus conhecidos”. Em carta a Heloísa, datada de 1º de novembro de 1932, Graciliano afirma que São Bernardo está pronto, “mas foi escrito quase todo em português (...). Agora está sendo traduzido para brasileiro, um brasileiro encrencado, muito diferente desse que aparece nos livros da gente da cidade, um brasileiro de matuto, com uma quantidade enorme de expressões inéditas, belezas que eu mesmo nem suspeitava que existissem. (...) Sendo publicado, servirá muito para a formação, ou antes para a fixação, da língua nacional”. 

São Bernardo foi lançado em 1934, um ano após Caetés. Em 1935, diante de “novas dificuldades”, o criminoso do outro conto ressurgiu: “Localizei esse tipo na capital, fiz dele um pequeno funcionário, último galho duma família rural estragada, e dei-lhe um nome insignificante, Luís da Silva (...)”. Heloísa Ramos lembra que, como era ela quem datilografava os textos do marido, “não era raro acontecer de uma página longa manuscrita só restarem quatro, dez linhas. As outras, ele considerava imprestáveis, ele não só rasurava como passava o cigarro aceso sobre elas, para torná-las definitivamente ilegíveis”. Nada mais distante do “culto lúcido, inteligente, à correção da linguagem”, herdado de Eça de Queirós, como lembra Leo Gilson Ribeiro, do que, por exemplo, a pregação de Oswald de Andrade, em seu Manifesto da Poesia Pau Brasil: “A língua sem arcaísmo. Sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros”. Graciliano encantou-se exatamente com o potencial da língua falada no Nordeste, com seus arcaísmos e sua sintaxe: “Quando eu cometer um erro podem considerar que cometi por burrice”, afirmava, pois devia muito “aos caboclos do Nordeste, que falam bem”: “É lá que a língua se conserva mais pura. Num caso de sintaxe de regência, por exemplo, entre a linguagem de um doutor e do caboclo — não tenha dúvida, vá pelo caboclo, ele não erra”. 

Se a linguagem usada em seus livros destoa daquela preconizada pela catequese nacionalista dos modernistas, mais remota ainda é sua pretensa filiação ao regionalismo, termo já bastante problemático como conceito. Ligia Chippini explica que “historicamente (...) a tendência que se denominou regionalista em literatura vincula-se a obras que expressam regiões rurais e nelas situam suas ações e personagens, procurando expressar suas particularidades linguísticas”. E ainda: “O grande escritor regionalista é aquele que sabe nomear; que sabe o nome exato das árvores, flores, pássaros, rios e montanhas. (...) embora ficcional o espaço regional criado literariamente aponta enquanto portador de símbolos para um mundo histórico-social e uma região geográfica existente”. Características que, em definitivo, não se aplicam à obra de Graciliano, como ele mesmo frisa: “não me preocupo em pintar o meio. O que me interessa é o homem daquela região aspérrima. (...) Foi essa pesquisa psicológica que procurei fazer, pesquisa que os escritores regionalistas não fazem (…)”. 

Tomemos um a um os romances de Graciliano. A trama de Caetés transcorre numa pequena cidade, Palmeira dos Índios — e não no ambiente rural — e, embora mantenha traços de filiação naturalista (característica fundamental do regionalismo), o que importa na narrativa é a construção paulatina dos personagens mediante suas características psicológicas. O introvertido João Valério apaixona-se por Luísa, mulher de Adrião, dono da firma onde trabalha como guarda-livros. O caso vem à tona, denunciado por uma carta anônima, e o marido traído se mata. Arrependido, João Valério afasta-se de Luísa. Paralelamente, ele está tentando escrever um romance histórico, intitulado Caetés. Publicado na sequência, a história de São Bernardo se passa numa fazenda nos arredores de Viçosa, mas o que menos importa no desenvolvimento do livro é a paisagem. Aliás, o leitor entra e sai sem que ouça mugidos de vacas ou balidos de carneiros, sem se magoar em espinhos de mandacaru,  sem torrar a cabeça sob o sol intratável do sertão. Apenas acompanhamos a derrocada moral do ex-guia de cegos, Paulo Honório, homem bruto e insensível, que destrói tudo à sua volta, inclusive a única pessoa que talvez o tenha amado em toda a sua vida, Madalena, sua mulher. Com Angústia, chegamos a Maceió. Grosso modo, poderíamos dizer que essa obra continua e aprofunda a técnica empregada em São Bernardo: trata-se de um relato confessional, cujo protagonista também é um fracassado, alguém fora de seu lugar. Mas, se em São Bernardo vislumbramos com a possibilidade de recomposição do “real”, ainda que distorcido por um caráter doentio, em Angústia trata-se do total estilhaçamento da “realidade”. A motivação do personagem principal, Luís da Silva, é tentar sobreviver à própria mediocridade. 

Em 1938, é lançado Vidas secas, talvez o único de todos os seus livros que alguém mais desatento poderia encaixar nos moldes pré-fabricados do regionalismo: a trama se passa no sertão de Alagoas e há referências explícitas à paisagem... Mas, o próprio Graciliano é o primeiro a descartar qualquer subordinação a escolas: “Não se trata de um romance de ambiente, como geralmente costumam fazer os escritores nordestinos e os regionalistas em geral. Eles se preocupam apenas com a paisagem, a pintura do meio, colocando os personagens em situação muito convencional. Não estudam, propriamente, a alma do sertanejo”. De maneira curiosa, justo aqui, Graciliano ousa experimentar formalmente, fazendo mais ou menos o que o condenou em Machado de Assis, um volume que não obedece a regras canônicas, que “tanto pode ser contos como capítulos de romance”, segundo sua própria definição. “Em 1937 escrevi algumas linhas sobre a morte duma cachorra (...) Dediquei em seguida várias páginas aos donos do animal. Essas coisas foram vendidas, em retalho, a jornais e revistas. E como José Olímpio [o editor José Olympio] me pedisse um livro para o começo do ano passado, arranjei outras narrações (...). 

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Graciliano Ramos, conhecido por sua casmurrice, coloca em xeque, com sua obra, vários pré-conceitos. Filiado ao Partido Comunista — suas prisões resultaram de sua sempre explícita militância —, nunca aceitou submeter- -se aos dogmas stalinistas. Alagoano, e descrevendo o homem nordestino, nunca se deixou limitar pelas imposições do chamado “regionalismo”. Romancista consagrado, não se permitiu seduzir pela facilidade do ofício e, após uma curta carreira — de Caetés, o primeiro romance, a Vidas Secas, o último, transcorreram apenas cinco anos —, buscou outras formas de expressão: as memórias, em Infância (1945) e Memórias do Cárcere (1953); os contos, em Dois dedos (1945), Insônia (1945) e Histórias Incompletas (1946); a literatura infantil, em Histórias de Alexandre (1944) e o relato de viagem, em Viagem (1954). “Não há talento que resista à ignorância da língua”, sentenciou este moderno antimodernista. Progressista conservador, conservador progressista, Graciliano Ramos buscou reinventar-se em cada nova obra de sua não muito extensa, mas fundamental bibliografia, aceitando com fatalismo a máxima por ele mesmo cunhada: “Nunca pude sair de mim mesmo. Só posso escrever o que sou. E se as personagens se comportam de modos diferentes, é porque não sou um só”.



Luiz Ruffato é autor das narrativas de ficção Eles eram muitos cavalos (2001), De mim já nem se lembra (2007), Estive em Lisboa e lembrei de você (2009), Flores artificiais (2014) e da pentalogia Inferno provisório (2005-2011), do livro de poemas As máscaras singulares (2002) e da coletânea de crônicas Minha primeira vez (2014) e do infantil A história verdadeira do Sapo Luiz (2014). Foi escritor-residente em Berkeley. É colunista semanal do jornal El Pais – edição Brasil e consultor de literatura do Instituto Itaú Cultural. Seus livros estão publicados na França, Itália, Portugal, Alemanha, Finlândia, Macedônia, Estados Unidos, Argentina, Colômbia, México e Cuba. Acaba de receber o Prêmio Internacional de Literatura Hermann Hesse, na Alemanha.