Ensaio: No ventre do Minotauro

Autora do livro Do vampiro ao cafajeste — uma leitura da obra de Dalton Trevisan, Berta Waldman faz uma análise do percurso literário do escritor curitibano

Berta Waldman



“No teu labirinto a única saída é o ventre do Minotauro”
Dalton Trevisan

Novelas nada exemplares (1959) é o primeiro livro em circuito comercial publicado por Dalton Trevisan. Contando hoje com vasta e significativa obra, pode-se afirmar que esse autor está entre os melhores escritores vivos do país, unanimidade que poucos ousariam afrontar sem incorrer em deslize crítico. Trevisan se repete? Trata-se, a meu ver, de um escritor programático e obsessivo, que instrumentaliza a repetição, utilizando-a como matéria literária.

“Ora, direis, ele se repete. E eu vos direi, no entanto, como poderia se cada personagem é baseado numa pessoa diferente? Se alguém se repete são elas, essas pessoas iguais, sempre as mesmas. Pô, destino próprio, história única, vida original — não há mais?” (Pico na veia, 2002).

Até 1972, data de publicação de O rei da terra, a investigação da matéria literária tem peso maior na obra de Trevisan; entretanto, ela sofre redução paulatina e, com ela, vem o enxugamento da linguagem, que se depura e se inova para dar relevo estético e histórico para as coisas de seu tempo e lugar. Nesse sentido, a Curitiba que emerge dos contos, à maneira do que acontece com o nordeste de Graciliano Ramos ou o sertão de Guimarães Rosa, é o próprio mundo, porque o mundo também é Curitiba no que tem de grotesco e regressivo. Em outras palavras, a medida de um escritor, principalmente nos países periféricos como o Brasil, deriva, em grande parte, da agudeza para perceber que a complexidade do mundo contemporâneo também se expressa aqui, e que uma representação artística e eficaz do particular contribui para a construção de uma imagem do conjunto.

Ambientados na periferia da periferia, desfilam nos contos, sob um facho de luz fria, funcionários públicos,
Dalton Em busca de Curitiba Perdida
lojistas, prostitutas, donas de casa, domésticas, normalistas, trabalhadores da terra, malandros, bandidos, policiais, viciados em droga, bêbados, religiosos, machões, abusadores de menores. O autor monta uma cena ficcional presa entre quatro paredes, que objetiva, entre nós, a negatividade de uma obra construída segundo a melhor tradição literária no mapa da narrativa contemporânea.

Para alcançar a condensação, o autor subtrai, “enxuga” frases, trechos de contos, reescritos algumas vezes em novas edições. Um pouco como a gravura de Escher onde uma mão apaga o que a outra escreve; a mão que corrige e corta, não é a mesma que aquela que escreve; outras forças a guiam, outras razões a fazem apagar, substituir, polir, agregar, dando visibilidade a um processo em que as alterações indicam paradoxalmente uma vontade de narrar e de calar.

Essas “correções” de rota criam tensão entre o material publicado e o novo texto que se sobrepõe ao primeiro, forjando-se uma teia intertextual de diálogos endogâmicos, onde o outro, o novo, é estranhamente investido de atributos do mesmo. Através dessa operação em que um traço não para de fazer dobras, volta-se ao mesmo paradigma para se ressaltar uma imagem que se vai decupando.

A partir de 1974, com O pássaro de cinco asas, Trevisan radicaliza a redução da linguagem, tomando como alvo o haicai, as “ministórias”, a palavra descarnada. Ao mesmo tempo que submete a linguagem a diferentes experiências formais — verticalização do conto recortado em verso e redução do conto a “ministória” —, o autor corta a frase e cria-lhe novos ritmos, enquanto restringe as personagens à periferia, essa zona obscura que sua obra ilumina e nos obriga a ver. Nesse livro, o haicai terá lugar privilegiado e essa inclusão passa a ser tão vigorosa que se inscreve como programa estético, conforme se pode ler no único prólogo que o autor escreveu a seus livros e que também data de 1974:

“Para escrever o menor dos contos a vida inteira é curta. Nunca termino uma história. Cada vez que a releio eu a reescrevo (e, segundo os críticos, para pior). Há o preconceito de que depois do conto, você deve escrever novela e afinal romance. Meu caminho será do conto para o soneto e dele para o hai-cai.” (Ah, é?, 2002).

Dalton Dinorá
A partir de certo momento, então, as frases que já eram curtas, passam a se truncar cada vez mais. A poda é tão radical que a sintaxe sofre, tornando o texto acentuadamente hermético. Embora a redução conste do programa estético do autor, fica a questão que indaga pelo sentido da compressão estilística na obra de Dalton Trevisan, que tem nos livros Ah, é?, Dinorah (1994) e 234 (1997) exemplos bem radicais. Os haicais ou ministórias (neologismo do autor) estão longe da poesia de tradição japonesa que lhes empresta o nome. Nesta, segundo a apreciação budista, todas as coisas — humildes, grandes, triviais, excelsas — são somente parte de uma totalidade que se deve recuperar através da mera alusão. Uma folha é suficiente para identificar o bosque, atrás do qual está a natureza. Uma gota descobre o mar e, com ele, as marés, o movimento do universo. E assim por diante. Já em Dalton Trevisan os haicais são antes fragmentos deslocados de contos matriciais que, isolados, criam uma autonomia, embora continuem, paradoxalmente, inseridos nas grandes linhas associativas criadas pelas dobras da repetição. Nesse caso, a fragmentação espelhada na forma estilhaçada e reduzida das ministórias significa sempre a perda da totalidade, enquanto os haicais japoneses, através de simples esboços, apontam duas ou três realidades desconexas que, no entanto, têm um sentido mais amplo que cabe ao leitor descobrir. No texto de Trevisan, a fragmentação se dá porque um caminho narrativo se intercepta, fazendo o conto colidir com um limite que impede sua progressão. Então, ele retorna, e vai escavando um mesmo paradigma, preso que está a uma estrutura da qual só será possível escapar pelo esgarçamento da forma. Ora, esse movimento remete à estrutura poética. Por outro lado, dizer que o conto de Dalton Trevisan esconde, desde sempre, uma estrutura poética, não significa edulcorar o que nele é ácido e amargo, uma vez que seu texto caminha na contramão do lirismo tradicional e instala-se num registro antilírico, oferecendo-se ao leitor como flashes do cotidiano em estado bruto. Talvez se possa pensar que o móvel do gesto de “reescrever”, para além das obsessões do autor de retomar o mesmo e dos sentidos estéticos que a repetição acarreta, esteja amparado no desejo de levar à exaustão o exercício da produção de efeitos que a repetição propicia, o que o conduz também a reapresentar alguns de seus contos através da verticalização dos versos, acentuando ainda mais o minimalismo da forma. É o caso de "Dinorá", entre tantos outros:

“Perdida por esse negão
Dava tudo pra ele
Era sandália era cigarro
Pinga da boa um radinho
Só quer dinheiro uma nota mais uma
O que ele tem?
Um ranchinho uma guapeca um facão.”
Dalton Cemitério de Elefantes

A condensação aqui é conseguida por subtrações, mas também pelo ajuste cada vez mais calibrado do episódio narrado ao seu miolo, fazendo-o coincidir com a sua expressão verbal. Assim, Trevisan procura fazer com que o que ele diz seja presença da coisa dita e não discurso sobre a coisa. Por isso, nos seus melhores contos, o método é francamente poético, e não estranha que a literatura do autor exerça influência não só na prosa, como também na poesia brasileira contemporânea, como é o caso da poesia de Francisco Alvim.

O resultado é um híbrido tensionado entre dois gêneros, um que glosa, narra e comenta, outro que recria e re-coloca o objeto numa nova ordem. Essa situação se inverte espetacularmente quando Dalton Trevisan escreve os haicais. Aí, sua intenção é a de inscrever suas pequenas peças em rubrica poética, mas ele desconfia dessa inserção de modo absoluto, já que apõe aos haicais o subtítulo de “ministórias”. Nelas, a narratividade (é verdade que alusiva, truncada, telegráfica, hermética) mantém-se em diferentes graus, e assim também as personagens (embora sem face), fiapos de traços descritivos, diálogos feitos de falas à deriva, destituídas das travas responsáveis por sua coesão.

“Tua professora ligou. De castigo, você. Beijando na boca os meninos. Que feio, meu filho. Não é assim que se faz.
— ...
— Menino beija menina.
— Você é gozada, cara.
— ...
— Pensa que elas deixam?” (Dinorá, novos mistérios)

Assim, temos montada uma estranha ordem na obra de Trevisan, sempre assombrada dialeticamente pelo seu contrário: atrás da narrativa, a poesia; atrás da poesia, a narrativa. Nos dois casos, o texto avança para além dos limites do gênero a que se vincula, provocando sua ruptura.

Dalton Desastres do amor
Essa ambivalência é, com certeza, expressiva do modo como o autor enxerga a literatura. De um lado, “desierarquiza”— se o espaço nobre da poesia que desce da torre do prestígio literário, de outro lado, o autor frustra a expectativa ou promessa de que o futuro do conto seria a novela ou o romance, nobilizando um gênero que, em geral, tem sua complexidade de composição subestimada, talvez por ser curto e, por isso, parecer ao leitor de mais fácil execução. Na pena de Trevisan, o conto ganha um relevo excepcional porque o autor nele exercita, como poucos, o engendramento de um núcleo capaz de atrair todo um sistema de relações conexas, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até ideias que pareciam flutuar virtualmente na memória ou na sensibilidade do leitor.

Atravessando a poesia e a narrativa, um certo tipo de coloquialismo que o leitor identifica como o estilo de Dalton Trevisan dá o tom geral. E um dos procedimentos mais interessantes utilizados pelo autor para chegar a ele liga-se à prática hiper-realista de transferir para o texto linguagens prontas, ready mades, clichês, que vêm do mundo da experiência cotidiana, onde o automatismo da percepção as banaliza. Aqui elas se deslocam para a literatura, lugar em que ganham novo estatuto e sentidos diversos.

O maníaco do olho verde (2008), inscreve-se na mesma moldura. Violência, roubo, estupro, assassinato, droga, bebida, alcaguetagem, identificação entre ladrão e polícia, transitam pelos contos, homologando a falta de solidariedade entre pares, o gesto gratuito de violência, o abuso sexual de crianças, num mundo em que não existe mais vestígio do bem nem princípio moral ou lei que se sustente.

Escuta atenta e aguda, o autor registra falas de grupos sociais e as põe em circulação em seus livros. Variadas, facilmente identificadas pelo leitor, elas vão sendo atualizadas. Assim, em obras mais recentes, vão ganhando espaço o discurso do viciado em crack, do cheirador de pó, do traficante, ou a inclusão de falas relacionadas a seitas e grupos religiosos divulgados pela media, que trazem a promessa de se montar uma vida espiritual por algum prefixo telefônico, em ligação direta com Deus. Esses discursos deslocados do real para a ficção compõem com breves pinceladas uma espécie de “quadro vivo” concentrado no essencial, sem alçapões ilusionistas nem jogos de luz enganadores. Funcionando como moeda corrente, essas falas não se ligam a um corpo, correm soltas na boca da jovem, da velha, do malandro, do pivete, do bacana, da mulher, do doutor. O trânsito transforma a personagem em portador abstrato da linguagem que, desse modo, se emancipa, toma rumo próprio, alheio às intenções de qualquer subjetividade. Expressão da violência também no modo direto com que aborda sua matéria, a linguagem é incisiva, licenciosa, compacta, tem a precisão de um tiro à queima-roupa, ainda que não prescinda de alguma dose de humor. É difícil, entretanto, sustentar o riso quando o leitor se dá conta de que o que se apresenta é um mundo sem sentido e sem saída, em relação ao qual ele quer estabelecer distância, mas que é obrigado a enxergar. Esse mundo calcado no negro, sem o anteparo de qualquer idealização ou promessa de redenção, detém-se num corpo-a-corpo com o real. Para forçar a difícil identificação do leitor com as personagens em situação, uma das estratégias do autor é fazer deslizar a pessoa que fala (eu) para a pessoa com quem se fala (você), de modo a implicar também aquele que lê na matéria narrada:

“Eu tava três dias fumando horrores. Sem comer. Sem dormir. Só queimando a pedra. Nunca posso guardar umazinha só. Fumo tudo que tiver. Se você para a fissura te pega.” (O maníaco do olho verde)

“Você” tem valor indeterminado (equivale a “se se para”), mas também inclui o leitor, em quem respinga a violência dos atos, transformando a todos em coparticipantes da vida nua, feita da distribuição global de vício, miséria e morte. Catadores de papel, de latinhas, vagabundos, viciados em crack ou alcoólatras são vítimas incautas da violência policial, presos por equívoco, notadamente porque pobres e à margem, sempre identificados como assaltantes, ladrões. Todo tira abusa da autoridade, tortura, atua fora-da-lei. Mas à medida que se avança pelos contos, vai se ganhando uma estranha simpatia pelas personagens muitas vezes anônimas, mas demasiado humanas, enquanto algumas imagens em forte concentração lírica vão dotando a linguagem de um crescente vigor.
Dalton Lincha Tarado


O conto “O maníaco do olho verde” é o dilacerado depoimento em primeira pessoa de um estuprador compulsivo. O maníaco, para quem todas as mulheres são iguais, ouve o comando de um assobio interno e, ato contínuo, ataca qualquer uma, de qualquer idade, sem planejamento prévio. O mais pungente é o caso da menina:

“...De volta da escola, a mochila amarela nas costas, um macaquinho verde suspenso, pra cá, pra lá. De braço aberto, ela se equilibrava no trilho. Ali mesmo eu derrubei. Tão feinha e magrinha. Quantos anos você tem? Onze, ela disse. O assobio me azucrinava a cabeça. Escapar já não podia. Nem eu nem ela. Feche o olho, eu disse. Sim, senhor. Sem eu desconfiar. Virgem, a pobre. Até pedi desculpa por toda a sangueira.”

O autor humaniza seu personagem ao ampliar-lhe a vida: tem mãe que depende dele e não pode saber o que o filho faz; tem profissão, é eletricista; deseja namorar e casar; sabe que tem um distúrbio e que é até capaz de matar e sabe também que corre o risco, se for pego, de ser linchado, sodomizado, currado.
Ao escapar da estereotipia do vilão desenfreado, o protagonista ganha humanidade e com ela força a identificação do leitor com esse mundo que se deseja invisível:

“Bem que as pessoas não entendem: É um louco! Um assassino! Um monstro! Me diga. Que culpa tenho eu? Assim fui nascido. Simples capricho do Senhor Deus. Sei lá, o mau sangue dos pais. Uma praga do capeta desgracido. Podem me condenar, babacas e bundões. O que eu faço? Tudo o que vocês gostariam. Eu sou um de vocês.”

Assim, ao invés de confirmar o que o leitor deseja ler, o autor o obriga a olhar, partilhar e aceitar um mundo indesejado e desidealizado, sem nenhuma perspectiva de redenção. O autor lança o leitor para uma esfera demoníaca e atinge-o com uma faca no coração.

Em alguns contos de seu último livro, O anão e a ninfeta (2011), ressoa o tempo que escoa: em passadas graves, o velho e seu cão sofrem a falta da mulher (“O rosto perdido”), o poeta envelheceu — “achará na volta o caminho de casa?” (“O velho poeta”) e Curitiba não é mais a mesma. Mas Dalton Trevisan continua mestre na economia que é a riqueza de sua arte. Nela, a repetição, o menos, é sempre mais.


Berta Waldman é professora aposentada de Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professora de literatura israelense e judaica da Universidade de São Paulo (USP). É autora do livro Do vampiro ao cafajeste — uma leitura da obra de Dalton Trevisan. Vive em São Paulo (SP).