Ensaio: Catatau ressurge mais uma vez

Inspirado em Joyce e Guimarães Rosa, Catatau, o romance-ideia de Paulo Leminski volta às livrarias em nova e caprichada edição
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Luiz Rebinski Junior


Há poucas coisas mais estranhas do que um poeta fazer sua estreia na literatura pela via do romance. Ainda mais se esse livro for um monolito experimental publicado de forma independente em uma cidade como a Curitiba dos anos 1970. Mas Paulo Leminski não era um escritor convencional e sua estreia literária com Catatau foi não só uma homenagem à criação inventiva de autores como Joyce e Guimarães Rosa, mas também uma forma de revelar suas pretensões dentro da cena literária brasileira.

A ideia de Catatau surgiu ainda nos anos 1960, no meio de uma aula dada por Leminski em um curso pré-vestibular. Um insight que lhe custaria oito anos de trabalho. Leminski imaginou como seria se René Descartes desembarcasse no Nordeste brasileiro – como parte da expedição holandesa do príncipe Maurício de Nassau – e se deparasse com a realidade e o calor dos trópicos. No sol do Nordeste brasileiro, o pensamento cartesiano dá lugar a alucinações causadas por uma erva fumada pelo fundador da filosofia moderna, que, embaixo de uma árvore, embarca em um delírio. A essa sinopse psicodélica, Leminski adicionou seu conhecimento em línguas latinas, que estudou durante o período em que esteve no mosteiro São Bento, quando ainda era adolescente.

O romance teve uma longa gestação e foi inicialmente desdobrado de um conto chamado “Descartes com Lentes”, que Leminski escreveu especialmente para o Concurso Nacional de Contos do Paraná, na época o mais prestigioso prêmio literário do país.

Depois de anos de trabalho, Catatau foi publicado em 1975. Desde então, é considerado uma das obras mais estranhas e ousadas da literatura brasileira. Talvez por isso, há anos o livro entra e sai das livrarias com a rapidez de um haicai. Desde 2005, quando completou trinta anos e foi reeditado, o livro não era visto nas livrarias. A nova edição de Catatau, enriquecida por fortuna crítica, com textos assinados por Flora Sussekind, Antonio Risério e Haroldo de Campos, saiu em 2010, pela editora Iluminuras.

Influência

A reedição do livro, no entanto, é corroborada por um crescente interesse por parte de leitores e realizadores, que ainda se sentem instigados a desvendar aquilo que Haroldo de Campos chamou de “Leminskíada”, em uma referência à Iliada, de Homero.

Ainda que hermético e experimental, o livro tem sobrevivido bem ao tempo e aos constantes sumiços das estantes. Fascinado com “a grandiosidade do livro”, o cineasta mineiro Cao Guimarães se embrenhou na obra mais difícil de Leminski para produzir Ex-Isto, “adaptação” livre de Catatau.

Avesso a adaptações cinematográficas de livros e autor de um cinema pouco convencional, Guimarães e o ator João Miguel, que interpreta Renatus Cartesius no filme, exploraram, de forma muito particular, o delírio da mente cartasiana e o “derretimento” das ideias do filósofo francês nos trópicos.

“Já conhecia os poemas do Leminski, mas quando comecei a pesquisa para o projeto e li o Catatau, fiquei muito impressionado com a grandiosidade do livro”, diz Guimarães. O diretor confessa que não conseguiu ler mais do que três páginas por dia, “sempre em voz alta”.

Catatau também foi determinante para que Marcio Abreu e sua Companhia Brasileira de Teatro montassem Vida, peça inspirada na obra e na vida de Leminski. O trabalho, que ganhou o prêmio Bravo! de melhor espetáculo teatral de 2010, nasceu de um solo teatral feito a partir do texto Descartes com Lentes, o conto que deu origem a Catatau.

Na peça, quatro integrantes de uma banda ensaiam para o jubileu de uma cidade sem nome, mas que se parece muito com Curitiba. A partir desse mote aparentemente banal, Abreu estabelece o que chama de “conversa com Leminski”, utilizando-se, para isso, das diversas facetas do escritor, como a de tradutor, crítico, prosador, letrista e músico.

“Leminski antecipou o trânsito entre as linguagens, a multiplicidade na expressão artística. Foi uma espécie de farol, um devorador de referências, um inventor da língua, um criador de linguagem”, diz Abreu.