Ensaio | Carlos Eduardo de Magalhães

Num museu em San Francisco

A partir de uma visita a um espaço cultural, o escritor e editor Carlos Eduardo de Magalhães analisa como e de onde podem surgir obras de arte e a própria literatura, em meio ao cotidiano com as suas cobranças inadiáveis

Faz alguns anos, um casal amigo, antes de viajar de férias para um lugar no outro lado do mundo, apenas os dois como há muito não faziam, me disse que precisavam lembrar de onde tudo viera mesmo. 

Por que tudo veio da arte. 

Eu estava no SFMoma, em San Francisco. Você baixa um aplicativo no celular e para cada andar do belo museu a voz de alguém te guia pelas obras. Não um guiar técnico, mas pessoal. A voz de moça diz que, quando estava no começo da faculdade de filosofia, voltava para casa e viu, dentro de um café, um pôster com a figura de uma jovem loira. Enfeitiçada sem saber a razão, entrou e ficou olhando a jovem da fotografia, sentindo que se tratava uma alemã, como ela. É loira, tem os cabelos presos em rabo de cavalo e uma luz a ilumina enquanto lê concentrada um periódico, uma cena corriqueira. O dono do café lhe disse o nome do artista com uma pronuncia errada, Gerhard Richter, e ela então percebeu que era uma pintura, não uma foto, e de um artista alemão. Ela vai para casa fortemente impactada pela obra de arte Lesende (Leitura). A mulher na pintura é a artista Sabine Moritz, mulher de Richter, grávida à época em que foi retratada. 

Na legenda que ladeia o quadro a gente fica sabendo também da referência às pinturas que representam a Anunciação da religião Cristã, quando Maria sabe, pelo anjo Gabriel, que seria a mãe de Jesus Cristo. Nos quadros, é muito comum Maria ser representada segurando um livro. Lesende é de 1994, ano que publiquei meu primeiro livro. 

A voz conta sua própria história. Imigrada aos 10 anos para os Estados Unidos, teve de encarar as perguntas de seus novos colegas de escola logo que chegou, Era nazista?, Seus pais eram nazistas? Seus pais haviam nascido depois de terminada a Guerra, explicou. Mas e seus avós, eram nazistas? Ela não sabia dizer, e na busca das obras do artista alemão, e de outros artistas alemães, ela vai confrontando a história de seus antepassados. Em uma delas, que mostrou à madrasta de sua mãe, esta enxergou fogo em um crematório. Afastando-me do quadro, enxergo também. Gerhard Richter tem obras muito diferentes entre si, e ela explica que era proposital, não queria que sua arte fosse limitada num modelo único que lhe lembrava os regimes autoritários em que viveu, não era um artista numa linha de produção. É claro que posso ter entendido tudo errado, tão absorto que eu estava no museu, e línguas estrangeiras sempre me complicam. 

Um ou dois andares acima, tendo me despedido da voz da moça que me guiava, dou de cara com uma fotografia magnética e extraordinária que vai de parede a parede. São pessoas à frente de uma casa noturna. O nome do fotógrafo é Jeff Wall, a obra se chama In Front of a Nightclub e é de 2006. Lembra aqueles painéis renascentistas, uma diversidade de personagens e expressões. No áudio, a voz de Jeff Wall diz que ele tira fotografias não tirando fotografias. Eu ouço outra vez, e outra vez, é isso mesmo que diz, para tirar uma foto ele não tira a foto, e eu confirmo minha pouca disposição de ouvir artistas falarem ou explicarem as próprias obras. Passado um tempo, reflito sobre o que disse. Pode ser que se referisse à invisibilidade de todo grande fotógrafo. Ou pode ser que se refira a algo maior, o manufaturar da arte sem propriamente fazer um estudo ou um planejamento prévio, sem pensar em fórmulas que funcionem, em manuais, em técnicas já conhecidas, deixar que ela apenas aconteça, e nela estará tudo o que se estudou e se viveu e se aprendeu e se pensou. Apenas aquela faísca de arte que incendia a alma do artista e os espectadores da arte, como se a arte tivesse vida própria. Ou pode ser apenas um jogo de palavras, como feito por tantos de tantos artistas, que não querem dizer nada. 

Quando saímos do museu, à tarde, a frase que se formou na minha cabeça enquanto andávamos para um gramado ali perto foi Porque tudo veio da arte. Minha filha mais velha, Manu, estudante de economia, disse que aquele museu a fez se reconciliar com a arte, e aquilo ecoou em mim. Porque tudo veio da arte. Meu impulso para escrever a primeira história, meu impulso para escrever a mais recente, para transformar em concreto, em um rearranjo de letras, as imagens que se formavam na frente do computador, na fila do supermercado, no caminhar pelas esquinas. E naquele estado de torpor e entusiasmo que tão bem conhecia e que fazia algum tempo não vivenciava, eu ia, qual minha filha, me reconciliando com cada palavra escrita ou lida por mim, com cada obra de arte que vivi, porque arte se vive. E fui me reconciliando com aquela decisão secreta e sólida de 1990 pela arte, decisão interna e inviolável, da qual me envergonhava um pouco e que muitas vezes achei ser uma maldição, por esse fazer expresso nesta palavra tão desgastada de que tantos se apropriam com violência. Palavra banalizada pelo império da comunicação. Palavra que perde sua alma quando vira propriedade de quem quer que seja, estudiosos, ditadores, animadores, gênios, trogloditas, jurados, escritores, jornalistas, críticos. Arte que se digladia com o cotidiano, que passa por tempestades e calmaria. Que vai se definindo pelos acontecidos e não acontecidos. Que tem seu tempo, em regra um tempo lento da arte que se bate nas paredes dos tempos rápidos dos dias atuais e nas concepções utilitárias preponderantes em que tudo deve ter uma função, em que tudo deve gerar um valor imediato. E aí tem o lavar de pratos, o arrumar a cama, o equilibrar nas contas que vencem, e sempre vencem, e tem as chuteiras sujas largadas no chão da cozinha, os gostos e as certezas que se afastam no andar irreconciliável das horas, tem os gritos, os silêncios dos restaurantes mal disfarçados pelos pratos insossos e caros que se come sem apetite, as divergências sobre as crianças, o olhar para trás e o duvidar das escolhas, as culpas, os fracassos e os sucessos os rancores e os erros de todos os dias, e tem o amor e não tem mais o amor, e tem a arte e não tem mais a arte, e tem arte outra vez que andou distâncias e séculos até dar comigo num museu em San Francisco. Porque tudo veio da arte. As ruas da cidade de São Paulo que posso ver da janela do escritório estão estranhamente calmas para um por do sol de uma segunda-feira, será que a multidão se adiantou ou está atrasada? Todo dia é dia de lembrar de onde tudo veio. E para poder ir, todo dia é dia de esquecer de onde tudo veio, para que tudo possa renascer, a arte, o impulso da arte, o sorver da arte, o amor.

Meus queridos amigos se separaram pouco tempo depois de voltarem da viagem.

Carlos Eduardo de Magalhães nasceu em São Paulo, em 1967. Editor na Grua Livros, é autor, entre outros, dos romances Pitanga (2008), Trova (2013) e Super-homem, não-homem, Carol e Os invisíveis (2015) — semifinalista do Prêmio Oceanos 2016. Algumas de suas narrativas foram publicadas no Uruguai, nos Estado Unidos e na Índia. Esteve como escritor convidado na The Ledig House (EUA) e na The Sangam House (Índia). Vive em São Paulo (SP).