Ensaio | Anos curitibanos

Como voltar a Curitiba

Entre 1944 e 1948, José Paulo Paes viveu na capital paranaense, onde manteve interlocução com os escritores Dalton Trevisan e Glauco Flores de Sá Brito, entre outros artistas. A presença fundadora da cidade na vida e obra do poeta e tradutor é tema de ensaio do escritor Miguel Sanches Neto


Guilherme Pupo
Guilherme Pupo


Cidade de funcionários públicos, militares e estudantes, a Curitiba dos anos 1940 sofreu um abalo com a entrada em cena de uma geração que negava o romantismo meio simbolizante e meio parnasiano da cultura oficial, acadêmica e, portanto, desatualizada. Dois grupos se formaram na cidade no segundo pós-guerra: o da livraria Ghignone e da revista Joaquim (Dalton Trevisan, Poty, Guido Viaro, Temístocles Linhares, Wilson Martins e Erasmo Piloto) e o do Café Belas-Artes, onde se reuniam José Paulo Paes, Glauco Flores de Sá Brito, Armando Ribeiro Pinto e Samuel Guimarães da Costa, intelectuais que editavam a revista Ideia e os suplementos de O Dia, Diário popular e O Livro

Esta força antiacadêmica se uniu para participar do Segundo Congresso Brasileiro de Escritores, em 1947, em Belo Horizonte, passando a perna nos autores consagrados da província e tendo a oportunidade de criar uma rede de relações com os novos do país todo e com os mestres contemporâneos. A partir de então, o segundo grupo começou a publicar na legendária revista Joaquim (1946-1948), fortalecendo a cruzada jovem que reinventou o Estado.

Atraído pelas escolas locais, depois de ter sido reprovado na seleção em São Paulo, o adolescente José Paulo Paes (1926-1998) trocou a Taquaritinga natal por Curitiba com o objetivo de fazer o curso técnico no Instituto de Química do Paraná. Aqui morou entre 1944 e 1948, tendo se formado poeta no convívio com os artistas da terra. Sua estreia se deu com o livro O Aluno (1947), título em que o eu lírico se colocava no papel de aprendiz de poesia e que tinha tudo a ver com a identidade secundarista do autor naquele momento. Por conta disso, Zé Paulo entendia a cidade como local de seu renascimento.

Seus relatos memorialísticos sobre este período destacam o clima de camaradagem de um grupo festivo unido em prol do saneamento da vida artística. Há, na sua avaliação, um José Paulo Paes paranaense, que se manifesta editorialmente na primeira coletânea.

Contra o Pinheiro
Mas a leitura de sua Poesia completa (Companhia das Letras, 2008) revela que ele fará a viagem de volta à cidade em outros momentos de sua obra, agora pela reminiscência lírica, reforçando seus vínculos a um espaço e a um tempo.

O primeiro retorno ocorre em A poesia está morta mas juro que não fui eu (1988), na seção “Geografia pessoal”. A capital paranaense figura aqui ao lado de outras urbes internacionais, o que confirma o seu depoimento sobre a importância destes anos, criando uma continuidade entre a província e o “mundo vasto mundo” drummondiano.

CURITIBA
o interventor do estado
era um pinheiro inabalável
inabaláveis pinheiros igualmente
o secretário de segurança pública
o presidente de academia de letras
o dono do jornal
o bispo o arcebispo o magnífico reitor
ah se naqueles tempos
a gente tivesse
(armando glauco dalton)
um bom machado!

Seguindo o tom irônico do título da coletânea, o poema ataca pelo humor o símbolo da cultura paranista. O pinheiro é a temática chavão, clichê das artes plásticas e da identidade provinciana. Foi contra uma cultura de culto excludente do local que se uniram os jovens, e isso aparece também na obra de Dalton Trevisan, como no conto “Em busca de Curitiba perdida”, de Mistérios de Curitiba (1968): “Curitiba, que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo”. A viagem do contista é pela urbe com conexões universais, não por suas particularidades restritivas.

No poema, Paes enumera as autoridades, os poderes constituídos, para se ressentir de não terem conseguido derrubar estes pinheiros antigos. O discurso poético coloca no mesmo nível das autoridades militares, civis e eclesiásticas as literárias. Idêntica crítica a esta Curitiba das Academias aparece no conto-manifesto de Dalton, que recusa as letras oficiais: “Curitiba, não a da Academia Paranaense de Letras, com seus trezentos milhões de imortais”.

É no verso parentético que Zé Paulo junta os amigos de luta de um outrora que volta, pelo verbo, a ser hoje. O entusiasmo da juventude se manifesta neste momento de recordações, impondo a interjeição em um poeta que tende para o não-enfático.

Curitiba assim figura como o lugar das grandes emoções juvenis, das discussões políticas e estéticas, quando o então aluno do curso técnico de química se faz iconoclasta, desejoso de usar a palavra afiada para derrubar as autoridades. A sua visão de mundo e de linguagem nasce nesta horizontalidade social e não da verticalização de temas e recursos.

Nos demais poemas, Paes viaja por outros países em busca desta mundialização vivida como projeto em sua Curitiba matinal, espaço de comunicação, pela arte, com a produção do ocidente.

No volume seguinte — em que ele opera uma grande guinada estética pela prosa memorialística (Prosas seguidas de Odes Mínimas, 1992), superando a fase política e a fase concretista e epigramática — os dias curitibanos reaparecem. Em meio aos poemas prosaicos, que corroem o verso convencional, e que tendem para uma “cronicalização” da matéria poética, surge um momento altamente lírico em “Balada do Belas-Artes”. A própria definição da forma (balada) remete a um tempo festivo, a uma alegria que o congraça com aqueles anos irreverentes. O café (que ficava na Rua XV, centro de Curitiba) funciona como uma Pasárgada pretérita, que o poeta visita em sonho, e no qual tudo se realiza:

Sobre o mármore das mesas
do Café Belas-Artes
os problemas se resolviam
como em passe de mágica.

A influência de Glauco
Esta percepção de uma realidade sem obstáculos vem da amizade fulcral deste momento — com o poeta-vidente Glauco Flores de Sá Brito (1919-1970), um dos três mosqueteiros-lenhadores convocados no poema “Curitiba”. Em suas memórias (Quem, eu? — Um poeta como outro qualquer, Atual, 1996), Zé Paulo recorda este encontro determinante: “Para um poeta em embrião como eu, o encontro em Curitiba com alguém do talento de Glauco Flores de Sá Brito foi decisivo. Cordial e bem-humorado, ele me ensinou, pelo exemplo de sua artesania, não por via de explicações teóricas, o que fosse escrever poemas dignos do nome. Poemas que nele brotavam por assim dizer espontaneamente, frutos da intuição mais do que da erudição”. Esta realidade em que tudo se resolvia em um passe de mágica é a herança desta amizade maior. E o poema continua:

Não que as leis do real
se abolissem de todo
mas ali dentro Curitiba
era quase Paris:

O verso vinha fácil
o conto tinha graça
a música se compunha
o quadro se pintava.

No interior deste café, a província era quase Paris, obedecendo assim ao desejo destes jovens de habitar a cidade de forma cosmopolita, principal item do programa da geração Joaquim. Isso não significava ignorar a realidade circundante, antes denunciava o desejo de criar uma continuidade atualizadora entre os grandes centros e a geografia pessoal de cada autor/artista empenhando em transformar sua urbe em umbigo do mundo — referência ao umbilicus urbis Romae (umbigo da cidade de Roma) — eixo a partir do qual devem ser medidas todas as distâncias. 

O umbigo da Curitiba de José Paulo Paes era este endereço do Café Belas-Artes, conexão direta com Paris, ainda a capital do mundo para esta geração, a última que a viveu assim. Este espaço mágico está, portanto, ligado diretamente a um poeta prestidigitador que expôs ao jovem a máquina do mundo, fazendo surgir nele uma linguagem irmanada com a vida, em que uma fosse extensão da outra.

José Paulo Paes


Um das raras imagens de José Paulo Paes, que nos anos 1940 se juntou a Dalton Trevisan para fazer a iconoclasta revista Joaquim.

Foto: Reprodução.

Na coletânea publicada postumamente — Socráticas (2001) —, aparecerá um poema que retoma depoimentos sobre o amigo morto, centro desta sua geografia juvenil. O título se resume ao primeiro nome do poeta (“Glauco”), dando este ar de intimidade afetiva. A primeira estrofe é a condensação do que o poeta já havia dito em uma crônica, o que revela o transporte de linguagem de um suporte para outro e o próprio trânsito de sua poesia, que vem da prosa, tal como declara no título de um de seus livros mais importantes — Prosas seguidas de Odes Mínimas. Aqui, o poeta justapõe dois registros (prosa e ode), fixando um valor equânime entre eles. 

Na página de reminiscência que escreveu para o Nicolau (nº 12, junho de 1988), “Nós num começo de vida”, Zé Paulo declara-se frequentador ocasional da cidade:

“Desde então, voltei umas poucas vezes a Curitiba. [...] E os azares do tempo haviam se encarregado de dispersar o nosso grupo. Senti sobretudo nunca mais ter podido ver Glauco de Sá Brito. Da primeira vez que voltei a Curitiba, ele andava pelo Rio. Da segunda, já estava estupidamente morto, ele que tanto gostava da vida.”

Esta crônica marca o início de fase lírica e memorialística do poeta, que remoeria em prosa e verso essas experiências fundadoras nos dez anos seguintes. No poema publicado postumamente, o amigo é retomado nos mesmos parâmetros:

Nas duas vezes que voltei a Curitiba
não o encontrei.
Numa tinha viajado para o Rio
na outra tinha viajado para a morte.

A maior concentração de linguagem e o uso da metáfora da viagem — um recurso bem comum — dão ao texto uma carga trágica, encenando, nas estrofes sequentes, a ausência do amigo a quem ele busca em uma temporalidade errada. Mas como estamos nos domínios da poesia, é por uma metonímia que ele o recupera, numa eternidade que faz coincidir o ontem e o hoje:

Só a caminho do aeroporto tive
um relance dos seus óculos kavafianos
mas sem os olhos risonhos
por detrás das lentes:

livres embora da miopia do corpo
seus olhos continuavam no encalço
da eterna
fugaz
inatingível
Beleza Adolescente

A obra do amigo que incorporava o destino do poeta grego Konstantínos Kaváfis já havia sido tema de um estudo intitulado justamente “Sob o estigma da beleza adolescente” — Os perigos da poesia (Topbook, 1997). E estas recuperações de sua figura e obra se fazem agora linguagem concentrada.

Se Zé Paulo voltou apenas duas vezes a Curitiba, para contabilizar ausências, Curitiba nunca deixou de povoar sua obra.


Miguel Sanches Neto nasceu em 1965 em Bela Vista do Paraíso, cidade da região Norte do Paraná. Em 1969, mudou-se para Peabiru, onde passou a infância. Professor na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), é autor de mais de 30 livros, entre os quais os romances Chove sobre minha infância (2000), A segunda pátria (2015) e A bíblia do Che (2016). Sanches Neto vive em Ponta Grossa (PR).