Ensaio | Alcir Pécora

Uma análise da respiração dos organismos mínimos

Para o crítico Alcir Pécora, Sérgio Sant’Anna é o contista que “alcança maior amplitude e variedade de registros discursivos” entre os escritores da geração surgida nos anos 1970 no Brasil

De todos os grandes contistas dos anos 60 e 70, período áureo do gênero no Brasil, Sérgio Sant’Anna talvez seja o menos especializado num único tema ou estilo, e o que alcança maior amplitude ou variedade de registros discursivos e situações narradas — a despeito do ecletismo experimentalista de Osman Lins. No entanto, se tivesse de apontar um único traço distintivo dessa sua obra decisiva inicial, assinalaria a acuidade e o fôlego analítico que, por vezes, tomam forma deliberadamente ensaística, narrativamente fragmentária e desestruturada. O diapasão analítico afina tanto narrativas mais confessionais, centradas na memória pessoal, quanto aquelas mais próximas de situações típicas, ou de costume. E, em ambas, usualmente se aplica com bastante êxito.

Assim, em O albergue [conto do livro de estreia de Sant’Anna, O sobrevivente], a lógica analítica se exerce sobre as personagens de um quarto de cortiço, cujo fechamento, absolutizado pela narrativa, suscita uma interpretação alegórica, extensiva à sociedade e à vida humana, nos termos absurdos de sua matriz kafkiana. O enclausuramento, aí, também significa o isolamento de um campo experimental mínimo, que é examinado pelo narrador de maneira minuciosa e mórbida, uma vez que as situações isoladas revelam, em geral, um movimento de acentuada decadência — que surge também, com diferentes nuanças, em Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, João Antônio e Samuel Rawet. O extraordinário é que a análise, no caso, não implica em perda de tensão ou desinteresse pela narrativa, ao contrário: é a análise a principal linha de força a tensionar o enunciado dos fatos, que, de outro modo, à distância, seguramente passariam desapercebidos no caos urbano habitual das grandes cidades ou na desordem afetiva, igualmente habitual, de seus habitantes.

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A operação analítica cerrada que conduz a narração, entretanto, não tende a reforçar — desta vez, ao contrário de Kafka —, a potência alegórica ou hermenêutica das situações, mas o próprio caminho, errático, casual, e, muitas vezes dispersivo, tomado pela análise. Ao fim do caminho não se tem bem estabelecida uma lógica, nem mesmo uma lógica do absurdo, ainda que o raciocínio não se afrouxe. Fica-se com uma lembrança viva da ocorrência de certo caminho particular, apenas isso, cujas peças nem se ajustam bem, nem se contradizem de modo definitivo. Fica-se, para usar uma imagem especialmente elucidativa de O submarino alemão, com um mapa flutuante em meio a um monte de cadáveres trazidos pela memória. Mas para que serve um mapa flutuante, ou seja, um mapa inseguro ou incerto sobre as suas direções? A que pode levar a sua interpretação, quando não se está seguro a respeito de seus próprios paradigmas de leitura? Leva exatamente à constatação de sua própria flutuação insólita, e eventualmente dos picos afetivos e eróticos que a balizam. 

O desfecho a que levam os contos é, por isso mesmo, invariavelmente deceptivo, de tom menor, de acomodação à perda de significação do particular, mais do que à compreensão da falta de sentido do universal. Quer dizer, não atinge o trágico, e mesmo raramente o dramático. Quando se chega ao fim, o fim já havia sido pouco a pouco destrinçado e estava lá, apenas esperando para se declarar, sem peripécia: são rasteiros os limites daquela existência, conquanto única. A sua forma de vida estreita, no melhor dos casos, alcança avivar uma lembrança aparentemente perdida do tempo de menino, ou de momentos intensamente afetivos, que parecem romper com o fechamento da vida banal. 

Uma tal literatura não se pensa como capaz de produzir iluminação ou consciência do verdadeiro estado das coisas; ela é mais um gesto de consequência, ou de reação, isto é, um movimento a mais de adaptação — talvez deva dizer animal, ou vital, mais que humana — às mais estreitas limitações, que condicionam e estruturam a existência. Nesse aspecto, nos contos de Sérgio Sant´Anna, o seu próprio espaço raciocinado de composição se entende como parte de um continuum de vida — não apenas da vida prosaica ou baixa, mas da vida menor do que qualquer valor: trata-se de vida orgânica, mínima, simples, a respirar não um projeto, não um propósito, mas o seu imperativo orgânico de adaptação à sobrevivência e ao vazio que se condensa progressivamente nela. 


Alcir Pécora é crítico literário e professor titular de literatura na Unicamp. Publicou, entre outros, Teatro do sacramento (1994), Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2003). O texto publicado pelo Cândido faz parte de Lembranças do presente: o conto contemporâneo (2006), 15º volume da coleção “Curso Breve de Literatura Brasileira”, organizada pelo crítico português Abel Barros Baptista para a editora Cotovia, de Lisboa.