Ensaio

Cão romântico

Mais conhecido por seus romances, o escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) foi essencialmente um poeta e encabeçou o movimento de vanguarda infrarrealista

João Lucas Dusi

O escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) foi essencialmente um poeta. Apesar de reconhecido e premiado por seus dois maiores romances, Os Detetives Selvagens (1998) e 2666 (lançado postumamente em 2004), o autor teve uma relação muito próxima com os versos. No Brasil, apenas traduções independentes de seus poemas foram publicadas, mas a Companhia das Letras — casa editorial do autor no país — planeja lançar seu trabalho poético no ano que vem.

Aos 26 anos de idade, em 1979, Bolaño organizou a antologia Muchachos Desnudos Bajo El Arcoiris de Fuego, reunindo 11 jovens poetas latino-americanos. Essa manobra iniciática sugere que explorar o potencial simbólico do conglomerado de países miseráveis e violentos que chamam de América Latina foi desde sempre uma das preocupações do autor. Em entrevista concedida no mesmo ano de sua morte, por exemplo, ele foi questionado sobre sua nacionalidade e cravou: “Sou latino-americano”.

Mesmo que já se dedicasse às letras há bastante tempo, foi somente aos 43 anos de idade que enveredou de vez por esse caminho. A essa altura, morava na Espanha desde 1977 e exerceu inúmeras atividades aleatórias a fim de sobreviver — de garçom a vendedor de bijuterias. Mas seu ofício preferido foi o de vigilante noturno de um camping próximo de Barcelona. Este também foi o trabalho que melhor exerceu, já que ninguém nunca roubou nada enquanto Bolaño esteve por lá.

     Ilustrações: Beatriz Cajé
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Com a publicação de A Literatura Nazista na América, em 1996, o escritor chamou a atenção da crítica e pôde deixar para trás os subempregos. O livro, o terceiro de sua carreira, traz biografias fictícias de romancistas, ensaístas e sobretudo poetas que nutriram alguma simpatia pelo nazismo e outras barbáries afins. Como é o caso da abastada argentina Edelmira Thompson de Mendiluce (1894-1993), que estreou na poesia aos 15 anos de idade, com Para Papai, ou da mexicana Irma Carrasco (1910-1966), autora dos versos de A Voz Por Ti Murcha.

A primeira obra de Bolaño a cair nas graças dos críticos, como se pode perceber, é fortemente pautada pela poesia — e já traz o tom crítico e destemido que caracterizaria toda sua produção futura. Em entrevista de 2001, quando questionado sobre o motivo de escolher trabalhar com o controverso tema do nazismo, disparou: “Como disse Nicanor Parra, para foder a paciência. Basicamente para foder a paciência. Para rir muito”. Essa irreverência de Parra, um poeta que praticou a “antipoesia”, e que para Bolaño “estava acima de todos”, parece ter sido decisiva no imaginário do autor chileno. Em conversas com a imprensa, não era raro soltar frases do tipo “Não escuto conselhos de ninguém, nem sequer de meu médico” (ele morreu aos 50 anos de idade, em 2003, em decorrência de complicações hepáticas) ou “Gostaria de ter sido detetive de homicídios, muito mais que escritor”.

Ainda sobre a relevância da poesia na prosa de Bolaño, James Wood comenta sobre Noturno do Chile (2000), em resenha publicada em abril de 2007 no New York Times: “O romance inteiro é uma espécie de poema. Você não vai se surpreender ao descobrir que Roberto Bolaño escreveu poesia antes de prosa”. O crítico inglês também relembra a utilização de períodos curtos e discretos ao se referir à estrutura do monumental Os Detetives Selvagens.

Neste livro de mais de 600 páginas, vencedor do Prêmio Rómulo Gallegos, os integrantes do movimento poético de vanguarda Realismo Visceral (encabeçado pelos poetas que não versam Arturo Belano e Ulises Lima) estão atrás da desaparecida Cesárea Tinajero. São os “detetives selvagens” que dão título à obra. E nenhuma semelhança com a vida real do autor é mera coincidência.

Infrarrealismo
Na abertura do “Primeiro Manifesto Infrarrealista”, redigido por Bolaño na década de 1970 e publicado na Infra — Revistal Menstrual del Movimiento Infrarrealista, lê-se: “LARGUEM TUDO, NOVAMENTE” — assim mesmo, em maiúsculas, como um brado. O pontapé inicial do infrarrealismo se deu na Cidade do México, onde Bolaño morou por alguns anos. O grupo contou com a participação de nomes como Mario Santiago Papasquiaro (1953-1998), que morreu atropelado ao atravessar a rua sem olhar para os lados (era uma prática recorrente em seus passeios), e os ainda vivos Rubén Medina e Bruno Montané — este último, em entrevista de 2016, publicada no portal LuchaLibro, disse: “Caminhar, escrever, recitar poemas e namorar eram coisas que desejávamos e devíamos fazer”, referindo-se às atividades do movimento poético.

Dentre as reivindicações do grupo, que em alguma medida guardam semelhanças com as reformas estilísticas sugeridas pelos artistas brasileiros a partir da Semana de Arte Moderna (1922), estava “fazer surgir novas sensações — subverter o cotidiano”. A recusa à mesmice, típica dos movimentos de vanguarda jovens e disruptivos, aparece em outro trecho do manifesto: “Sonhávamos com utopia e acordamos gritando”. A partir do momento em que se assimila o golpe aplicado pela realidade, a única saída é se rebelar. Não à toa, Bolaño admirava Arthur Rimbaud (1854-1891), o poeta francês que, aos 19 anos de idade, queimou centenas de cópias de seu livro de estreia, Uma Temporada no Inferno.

Essa postura combativa se evidencia no trabalho poético de Bolaño. No poema “A poesia latino-americana”, por exemplo, publicado na seção Manifestos y Posiciones da coletânea La Universidad Desconocida (2007), o alerta vem já no primeiro verso (em tradução de Mitsuo Florentino, assim como os versos de “O Burro” que serão citados adiante): “Algo horrível, cavalheiros. A vacuidade e o espanto”. O poema segue investigando a condição dos poetas “mexicanos e argentinos, peruanos e colombianos, chilenos, brasileiros e bolivianos”, todos “empenhados em suas parcelas de poder”, “pateticamente orgulhosos e pateticamente cultos”, “vaidosos e lamentáveis” — nota-se que não faltam elogios. Esse ataque aos seus pares indica que, ao mesmo tempo em que a poesia lhe é cara, a figura mítica do poeta, isto é, aquele sujeito empolado, arrogante e beletrista — caso dos parnasianos brasileiros, como Olavo Bilac e suas polainas, para usar um exemplo que nos é próximo —, causa-lhe repugnância. Para Bolaño, a poesia se assemelha a um gesto de valentia que não pode fugir à realidade em nome de uma pretensa elevação.

Sobre sua própria produção, comentou: “Como poeta não sou nada lírico. Sou totalmente prosaico, cotidiano”. Ironicamente, o autor tinha um vasto conhecimento do fazer poético. Em entrevista ao jornal chileno Las Últimas Noticias, concedida em 2003 a Mónica Maristain, afirmou: “Num país como o Chile, onde nem os especialistas em poesia sabem o que é um dímetro coriâmbico, é perigoso se definir como poeta”. Outros exibicionismos do autor, que trazem uma verve humorística, são encontrados em Os Detetives Selvagens, por meio do personagem Juan García Madero. Ao longo da obra, o jovem aspirante a poeta de 17 anos, que mais parece uma enciclopédia ambulante, destila conhecimento técnico sobre poesia. Nem só de combatividade se sustentavam os versos ou a pessoa de Bolaño.

Sonho inominável
Em “O burro”, poema que também integra La Universidad Desconocida, o amigo Mario Santiago Papasquiaro, transformado em personagem, busca o próprio autor, Bolaño, em uma moto preta, roubada, e eles partem atrás de “um sonho inominável, / Inclassificável, o sonho da nossa juventude, / Digo, o mais valente sonho de todos / Os sonhos”. Trata-se da valentia que exige o movimento de contrariedade, longe da estagnação e a favor da pulsão. Por mais que às vezes o poeta chileno soe dúbio, como quando comenta sobre “o sonho inominável e inútil / da valentia”, esse conflito interno parece ser justamente o que o move. Insistir nessa causa perdida, a poesia, é sua força motriz, e o único “palco concebível” para essa inutilidade é uma “rota miserável, de caminhos apagados pela chuva e pelo pó, terra de moscas e lagartixas, matos ressecados e ventanias de areia”. É como se não houvesse espaço para seus versos em ambientes civilizados e esterilizados, isto é, longe da maneira que ele concebia a realidade.

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Outros versos que trabalham com essa dubiedade estão no poema “Os cães românticos”, aqui em tradução de André Caramuru Aubert: “Naquele tempo eu tinha vinte anos / e estava louco. / Havia perdido um país / mas havia ganhado um sonho. / E se tinha esse sonho / o resto não importava”. A aparente fortuna do jovem poeta, que viu o Chile tomado pela ditadura, mas encontrou forças no sonho lírico, se desdobra: “E o pesadelo me dizia: crescerás. / Deixarás para trás as imagens da dor e do labirinto / e esquecerás”. Quem lhe comunica a nova sorte é o pesadelo, e aí está mais um par de opostos recorrentes no versejar do autor: sonho e pesadelo de mãos dadas.

Mas é possível que o maior exemplo desse conflito interior de Bolaño, que parecia ver na poesia algo tão repulsivo quanto essencial, esteja no romance Amuleto (1999). Desdobramento de um acontecimento narrado em Os Detetives Selvagens, o livro é um relato da uruguaia Auxilio Lacouture — uma mulher “sem documentos, sem trabalho, sem casa onde descansar a cabeça”. Depois de passar alguns dias confinada num banheiro da Universidade Nacional Autônoma do México, enquanto os granadeiros e o exército invadiam a instituição, ela retorna à “realidade” e vê se abrir um abismo insondável em um vale, com fantasmas que marcham, “caminham para o abismo”.

Apesar de não constituírem uma unidade hegemônica, esses caminhantes fantasmagóricos estão unidos pela generosidade e a coragem. Sobre a cena, a “mãe de todos os poetas do México” comenta: “E os ouvi cantar, ainda os ouço cantar, agora que não estou no vale, bem baixinho, apenas um murmúrio quase inaudível, os meninos mais lindos da América Latina, os meninos mal alimentados e os bem alimentados, os que tiveram tudo e os que não tiveram nada, que canto mais lindo o que sai de seus lábios, que bonitos eles eram, que beleza, apesar de estarem marchando ombro a ombro rumo à morte”.