Ensaio

O mundo em negativo de Franz Kafka 

O poeta e ensaísta João Manuel Simões analisa como o autor tcheco se valeu do silêncio e da solidão para criar sua monumental obra

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Como escrever um romance, um grande romance, capaz de resistir ao influxo corrosivo do tempo? Como concebê-lo, nas suas coordenadas estruturais, nos seus parâmetros definidores? Como arquitetá-lo, no tempo e no espaço, injetando-lhe sangue, impregnando-o de nervos, infundindo-lhe vida autêntica? 

Para isso, “não é necessário que saias de casa. Fica à tua mesa e conta. Não contes, sequer — espera somente. Nem esperes, apenas — fica absolutamente silencioso e só”. Eis aí uma receita de um judeu tcheco, quase ignorado em vida, mas que, alguns anos após a sua morte, ocorrida em 1924, viria a ser reconhecido universalmente (obrigado, Max Brod), como a mais extraordinária revelação, como o mais espantoso revolucionário da arte do romance ocidental no primeiro quartel do século XX e, mais do que isso, como um dos seus grandes e singulares arquétipos, da estatura de um Balzac ou de um Dostoiévski, de Joyce ou de Proust: Franz Kafka. 

Nessas palavras densas, proteicas, que parecem murmuradas em surdina, de dentes cerrados e punhos contraídos, encontra-se talvez, em toda a plenitude, a explicação límpida, a chave racional para a compreensão do enigmático e sibilino universo ficcional do autor de O processo. (Dentro de certos limites, é evidente: compreender nem sempre representa a apreensão plena ou a posse integral de um objeto, o que só os amantes ingênuos de utopias podem pretender.) 

Kafka, contudo, não se limitou a fornecer uma receita: seguiu-a ao pé da letra. É realmente nos limites exí- guos da sua sala — mais ainda: é nos limites estreitos do seu cérebro — que se desenrola e equaciona a mais estranha aventura existencial já vivida por um ser humano debaixo do mesmo sol do Eclesiastes. Por um homem que, às inalienáveis contingências da condition humaine, tão superiormente dissecada por Malraux, alia e conjuga as vicissitudes da condição artística, de um criador de vida, de um instaurador de realidade através da palavra poderosamente mimética. Numa simbiose maldita, duas condições igualmente trágicas: se uma não perdoa nunca, a outra jamais deixa ficar impune esse “bicho da terra vil e tão pequeno”, para usar a expressão do Épico. Dentro das fronteiras da sua sala (sem metáfora), no silêncio e na solidão, germina a obra mais profunda da literatura do século passado, a que mais espanta, se não pela sua monumentalidade, pelo menos pela sua tessitura, pela sua temática, pela sua dialética de abordagem de uma problemática específica. O silêncio e a solidão agem, de fato, como grandes forças catalizadoras (e catárticas). É no silêncio, pavoroso mas fecundo, é na solidão, aterradora mas fértil, que se ergue e alteia pateticamente (e ao mesmo tempo num indizível e incomparável sortilégio encantatório), o edifício disforme, descomunal, do “tempo e modo” kafkiano. Edifício cuja porta poderia ostentar o dístico que o Florentino colocou no pórtico do seu Inferno: Lasciate ogni speranza voi ch’entrate. 

Sinfonias inacabadas 

Obra verdadeiramente única. Repleta de páginas noturnas, crepusculares, onde se sucedem murais quase apocalípticos, painéis grotescos, iluminuras desvairadas, telas que são orgasmos de desespero e pus, prenhe de vida, de vida transfigurada (e desfigurada), de vida que parece brotar da mente de um demiurgo de torvas intenções demoníacas. Obra onde os relâmpagos do gênio fulguram lividamente na meia-noite imemorial do pesadelo e onde as palavras, mais do que emblemas hieráticos ou insígnias ardentes de um tempo de delírio e tempestade e febre, são antes estigmas ácidos, causticantes, tatuados na epiderme sensível de uma sociedade (de uma humanidade) em crise visceral, a viver um processo irremediável de desintegração (ou de autodestruição?). Obra onde as alegorias e as hipérboles e as transfigurações oníricas (todo o instrumental do fantástico) substituem a realidade discursiva, linear, pois tudo são simulacros vacilantes, espectros fantasmagóricos, máscaras vazias. Obra dominada irresistivelmente por uma ambiguidade semântica dialeticamente insuperável, de signos arbitrários, polissêmicos (ou insignificantes?) e por isso mesmo irredutível a uma só fórmula, a um só esquema estrutural, a uma interpretação unívoca que o seu caráter multímodo, poliédrico, só pode exorcizar. Obra onde Deus, ausente, é substituído pela presença obsessiva do nada transcendental. Obra que, antes e acima de tudo, faz do absurdo o seu sustentáculo, a sua força motriz, o seu leit motiv. Franz Kafka é, por excelência, o épico do absurdo: as suas narrativas, por vezes incompletas, imperfeitas — “sinfonias inacabadas” — são a odisseia do sem- -sentido, a ilíada da absurdidade. 

Mas não há nada de fácil nem de gratuito nesse absurdo: ele é a resultante direta da dissolução, da fragmentação da realidade ante o impacto avassalador do desespero ontológico (ou da solidão antropológica?) que nenhum dique consegue deter, que nenhuma força hipnótica consegue domar. O seu absurdo, em síntese, nada mais é do que uma nova ordenação, uma nova estruturação da realidade no seu conjunto orgânico, já que os detalhes, os personagens integrantes permanecem inalterados, no seu realismo original. 

A novelística kafkiana desenrola-se, pois, sob o signo candente do sem-sentido, da absurdidade onipresente, que chega a beirar as raias da histeria. Estranhamente, porém, Kafka, misto de artesão e de prestidigitador, vai entretecendo a teia mágica do seu absurdo com fios de lógica sutil, de racionalidade incólume. 
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Cena do filme O castelo, adaptação do clássico de Franz Kafka feita pelo cineasta Michael Haneken.
 
O mundo em equação (melhor dizendo: o submundo) que ele revela e patenteia é um mundo inverossí- mil de tragédia, é um mundo em negativo — quando não às avessas — onde se multiplicam interminavelmente os labirintos e as encruzilhadas, na qual a comunicação entre os homens não existe, pois os diálogos, quando se verificam (o que raramente ocorre), parecem desenvolver-se em compartimentos estanques, como se os interlocutores falassem línguas “diferentes”. (Mas não será isso precisamente que ocorre? Acaso não pertencem essas línguas a contextos ideológicos distintos?) 

Como considerar Kafka, em última análise? Profeta do caos original? Apóstolo iluminado de uma decadência tangível? Intérprete fidedigno da crise existencial de uma época de valores espirituais em derrocada, de princípios éticos em colapso? Ou simples sismó- grafo das convulsões abissais que sacudiam as entranhas de uma sociedade doente, num momento histórico decisivo, quando começava a surda gestação de hecatombes inimagináveis? 

O autor de A metamorfose é isso e muito mais: ele é a personificação do homem atormentado, dilacerado pela consciência do absurdo da vida em face da inexorável finitude, em face do império implacável das Parcas. Daí serem tão certeiras estas palavras de Camus, outro dos grandes prosélitos da problemática existencial: “Viver é dar vida ao absurdo. Fazer viver o absurdo, antes de mais nada, é encará-lo de frente”. Se a vida, a realidade máxima, é essencialmente absurda, então todos os absurdos são razoáveis. Esta parece ser a premissa básica de Kafka, no silogismo que tem por conclusão a instauração de um mundo sem sentido aparente. 

Mas será realmente sem sentido o seu mundo? Preferimos supor, como o autor de La Nausée, que há nele um sentido oculto, misterioso, subterrâ- neo, apenas denunciado por leves sinais: o sentido que lhe é outorgado pela sua própria existência, pelos signos verbais que o elaboram, pelas palavras-estandartes que o nomeiam, pela sinalética em transe que o veste. O que chega a beirar a própria concepção de [ Johann Christian Friedrich] Hölderlin acerca do “mistério” da poesia: “A poesia é a instauração do ser através da palavra”. (E, de certo modo, não será poesia — grande poesia — toda a obra do arquiteto de O castelo? Não será ele, também, um grande poeta em prosa, da linhagem de um Nietzsche, para nos situarmos apenas dentro da língua alemã?) 

Se nomear é criar, é fazer existir, poderemos afirmar que o absurdo kafkiano nada mais é do que a instaura- ção de uma realidade subjetiva através do verbo demiúrgico. 

Distorção total 

Se, como pretende Lukács, o romance é a forma dialética do épico, a forma da solidão na comunidade, da esperança sem futuro, da presença na ausência, a que melhor condensa o choque entre o homem e o mundo, entre o indivíduo e a sociedade, entre o ser e o existir, é evidente que poucas obras poderão enquadrar-se com tanta facilidade dentro do esquema do grande crítico húngaro como a de Kafka. Tal esquema, com efeito, lhe assenta como uma luva. 

Situando-se no polo oposto de Zola, que tenta desvendar (e desventrar) a realidade como uma exatidão minuciosa, com um ostinato rigore quase científico (naturalista, portanto), Kafka procura antes apresentar a distorção total, a desfiguração plena da realidade objetiva, que apenas funciona como trampolim para uma espécie de suprarrelidade fantástica, povoada de esfinges, de enunciado sibilino, uma suprarrealidade de tensões nucleares, de espasmos surdos, de tremores clandestinos. 

Grito estrídulo de protesto contra as engrenagens metálicas que trituram e violentam e desumanizam o homem, a obra de Kafka desejaria ser antes o epitáfio solene ou o réquiem derradeiro para um organismo (e para um sistema) irremediavelmente putrefato. E constitui, nesse aspecto, um de profundis doloroso, um “exercício espiritual” mórbido (e mordaz). 

Os seus personagens míticos, simbólicos, hieróglifos esquálidos movimentando-se em alegorias transparentes, translúcidas (distantes do esquema balzaquiano do personagem típico) escondem por vezes a própria personalidade do autor, que chega a delinear uma autêntica autobiografia mental: a letra K é a máscara que encobre, o disfarce que resguarda — querendo mostrar. 

Como assinala com lucidez Natalie Sarraute, vestal exemplar do nouveau roman (também tributário — por que não? — da obra torturada do mestre tcheco), as narrativas de Kafka mergulham as suas raízes nas Memórias do subterrâneo, de Dostoiévski, observa- ção crítica que me parece incontestá- vel. Não é menos verdade, contudo, que o universo do autor de Cartas a Milena constitui também o filão, a matriz, o ponto de partida das obras de alguns dos mais altos e significativos expoentes da literatura contemporânea. De Camus a Ionesco. De Arrabal a Jorge Luis Borges. De Beckett a Dürrenmatt. De Faulkner a Lawrence Durrel. Com efeito, os traços, as marcas, as cicatrizes são demasiado evidentes, já que muitas vezes nem sempre houve a preocupação (e o pudor) de escondê-las. 

Mensageiro sem mensagem 

Kafka é o grande intérprete de uma inadaptação radical do homem ao mundo. Ou melhor, do homem à praxis social circundante (e asfixiante), com os seus mecanismos convencionais (e hipócritas), com suas articulações mecâ- nicas, formais, com as suas ameaças de “excomunhão” sempre latentes a todos quantos se recusem a enquadrar-se nos seus “cânones” rígidos, nos seus “padrões” estereotipados, nas suas “leis”, na sua “tradição” milenar. Estruturas sempre veladas pelos inefáveis “guardiões do templo”, pelos impolutos arautos do statu quo, pelas múmias veneráveis do establishment muitas vezes fossilizado e arcaico. 

Na realidade, desde muito cedo o mestre de Praga teve o pressentimento e a consciência de um destino singular a cumprir, de uma estrada espinhosa a percorrer. Rudes, poderosas mãos invisí- veis pareciam orientar o seu rumo. Tentou ainda resistir: America, o sonho distante, a imagem longínqua, da mesma forma que Betractung, a contemplação ainda alienada, são as provas cristalinas de uma tentativa — malograda — de evasão, de escapismo, de fuga ao império da sorte inelutável. Mas em vão. Maktub — estava escrito. A “normalidade” existencial de um ser humano mais uma vez sacrificada, em puro holocausto, no altar da criação artística: é sobre as ruínas de um espírito que se levanta o monumento de uma obra imperecível.

A província romanesca de Kafka — místico das alucinadas visões dionisíacas, profeta de um “tempo de fezes e traição” — é uma floresta tropical de símbolos feéricos. Sartre define-a como um universo de cifras intraduzíveis. Mas não será antes, com razão maior, um reino fantástico de signos contaminados pelo vírus mortal da polissemia? 

Plenamente consciente da sua missão de “mensageiro sem mensagem”, Kafka, impressionista, com a sua paleta de cores sombrias, realiza aquilo que poderia talvez considerar-se uma espécie de fenomenologia do invisível. Um invisível que vai da solidão ao tédio, da angústia ao desespero, mas que nem por isso deixa de ser menos real que a carne e o sangue e os ossos que percorrem os caminhos ásperos do quotidiano e que, afinal, são o suporte concreto para uma realidade abstrata. Radiografia em rubro de uma época espiritualmente esclerosada, a obra de Kafka é também a história dolorosa, pungente, de uma peregrinação em demanda do Santo Graal de uma verdade impossível. Mais do que isso: é o documento tangível da lenta agonia de um espírito sem o bálsamo da fé redentora, de um espírito despojado de toda a esperança. De uma agonia sem êxtase.

João Manuel Simões nasceu em Mortágua, Portugal, e vive em Curitiba (PR) desde 1954. É autor de mais de 50 livros, entre crítica, contos e ensaios. Em 2015 foi editado o primeiro dos quatro volumes que vão reunir toda sua obra poética produzida entre o período de 1960 e 2010.