Ensaio

A literatura no Paraná: algumas linhas

Organizador da antologia 48 contos paranaenses, Luiz Ruffato fala sobre as características da literatura do Estado e de como selecionou o autores e textos presentes no livro


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Umas palavras devem ser ditas para explicar e justificar a publicação destes 48 contos paranaenses.

Talvez um leitor mais exigente pergunte que sentido faz pensar em nacionalidade em pleno século XXI — mais ainda: pensar em “regionalidade”, ou seja, a circunscrição de uma cultura a um determinado espaço geográfico. Porque a antologia 48 contos paranaenses objetiva justamente reunir autores que, por um acaso, nasceram nos limites do Paraná ou que vivam ou viveram no Estado, e tentar traçar um panorama histórico desta produção ficcional. Então, antes que nos alonguemos, respondemos: não acreditamos que haja uma especificidade na literatura produzida regionalmente, nem temática, nem formal, que possa caracterizá-la como autônoma, mas ao mesmo tempo entendemos que a visão de mundo de um autor se faz a partir de elementos vários, cujo principal é a língua na qual ele escreve, mas que certamente passa por sua experiência pessoal — e aqui, evidentemente, entra a paisagem, real ou imaginária, que nele habita. Não o determina como escritor certamente, mas o contamina.

Tentemos, pois, um pouco de história.

A província do Paraná, desmembrada da de São Paulo em 1853, teve, em seus primórdios, uma acanhada vida cultural. Embora Marilda Binder Samways defenda o nome de Fernando Amaro de Miranda (1831-1857) como pioneiro da literatura paranaense, Wilson Martins, citando Salvador Correia Coelho (1820-?), com seus Passeios à minha terra, de 1860, e Julia da Costa (1844-1911), com Flores dispersas, de 1867, descarta-os em prol de Domingos Nascimento (1863-1905), que lançou em 1883 Revoadas, que “já se inscreve no processo de um momento histórico a partir daí ininterrupto”.

Isto porque, segundo Martins, somente no lustro final do século XIX encontramos em Curitiba uma comunidade literária “suficientemente madura” que justificava até mesmo a criação de uma revista, O Cenáculo, “marco ritual da vida intelectual de cada momento”. Fundada por Dario Veloso, Silveira Neto, Julio Perneta e Antonio Braga, teve editados quatro volumes, entre 1895 e 1897, e é considerada por Andrade Muricy, fruto do “mais importante movimento literário paranaense”, tendo sido a primeira produção local a projetar-se nacionalmente.

É nesta quadra que aparece ainda a primeira manifestação da prosa de ficção do Paraná, o romance A honra do Barão, publicado por Rocha Pombo (1857- 1933) em 1881. O autor, que se tornaria um dos mais famosos historiadores de sua época, radicou-se no Rio de Janeiro, onde cerraria fileiras entre os simbolistas, lançando o singularíssimo romance No hospício, em 1905. Nestes primórdios, a poesia se estabelece quase hegemonicamente e são raros os ficcionistas como Lucio Pereira (1860-1933), autor de Contos paranaenses, de 1896, Nestor Victor (1868-1932), que se consagraria como crítico e ensaísta, autor de Signos, de 1897, ou Julio Perneta (1869-1921), que, com Amor bucólico, de 1898, introduz a literatura regionalista no Estado.

Após este primeiro surto produtivo, ocorre um longo hiato. Curiosamente, embora entre os fundadores, em 1927, da revista modernista Festa, do Rio de Janeiro, estivessem três paranaenses, Andrade Muricy, Tasso da Silveira e Brasílio Itiberê, as ideias novas passaram ao largo do Paraná. Otávio de Sá Barreto fala de uma festa literária ocorrida no dia 15 de outubro de 1926, no Clube Curitibano, liderada por Jurandir Manfredini, como uma espécie de marco da introdução do modernismo no Estado, mas Martins rechaça como “deprimente e constrangedor” os “tocantes esforços para provar que, apesar de tudo, houve um movimento modernista no Paraná, ou, pelo menos, alguns escritores modernistas”.

Fato é que nos primeiros quarenta anos do século XX, uma única personalidade se destacou: Newton Sampaio (1913-1938). “Nos meus tempos de estudante em Curitiba”, relembra Martins, “Newton Sampaio era uma espécie de herói cultural para os escritores em botão das novas gerações”. E continua: “Ele era visto como a primeira voz ‘modernista’ ou, pelo menos, moderna, no ambiente literariamente anacrônico do Paraná. O que nele admirávamos, antes de mais nada, era a irreverência com relação aos nomes consagrados, o estilo nervoso e ágil, a inteligência aguda e a integração nas correntes vivas do pensamento”.

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Este espírito irreverente, de alguma maneira, emularia a criação, em 1940, de um jornal, O Tingui, “órgão dos ginasistas” de Curitiba, embrião da revista Joaquim, que, essa sim, transformaria o panorama da cidade e lançaria o nome de um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos, Dalton Trevisan (1925). Impresso pelo Centro Literário Humberto de Campos, tinha como inspirador Rodrigo Junior, e como diretores, além do jovem Trevisan — que, então com 15 anos, surge escrevendo contos e crônicas sob os pseudônimos de Dom Nada e Faminto —, Antonio Teolindo e Antonio Walger. O jornal, que chegou a alcançar alguma projeção fora do Estado, durou até dezembro de 1943.

Três anos depois, agora com 21 anos, Dalton Trevisan se sente suficientemente seguro para lançar a revista Joaquim, que causaria furor na sociedade curitibana, e chamaria a atenção dos intelectuais brasileiros para a produção artística do Paraná em geral, e para sua originalíssima literatura, em particular. Publicada entre abril de 1946 e dezembro de 1948, tendo como diretores Trevisan, Antonio Walger (antigo companheiro de O Tingui) e Erasmo Pilotto, Joaquim era bancada com recursos advindos dos vários anúncios espalhados pelas páginas da revista, mas principalmente com o auxílio financeiro da família Trevisan.

Com sua capacidade de articulação, e tendo claro seu papel didático de tornar o Paraná contemporâneo do mundo, Trevisan conseguiu reunir, ao longo da existência da revista, os mais importantes nomes da literatura brasileira. Vinícius de Morais, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, José Lins do Rego, Aníbal Machado comparecem com poemas, trechos de romances, depoimentos. Antonio Candido, Otto Maria Carpeaux, Mario Pedrosa e Sérgio Milliet colaboram com textos críticos. E são publicadas traduções de autores como Eugene O’Neill, Garcia Lorca, T.S. Elliot, Rainer Maria Rilke, Jean-Paul Sartre, Franz Kafka, André Gide, Arthur Koestler, Virginia Woolf...

Um capítulo à parte é o apuro gráfico da revista. Suas capas sempre contavam com gravuras inéditas assinadas por nomes como Poty, Yllen Kerr, Renina Katz, Di Cavalcanti, Fayga Ostrower, Portinari e Heitor dos Prazeres... Com diagramação limpa e moderna, as ilustrações ocupavam um espaço generoso — o número 19, de julho de 1948, por exemplo, todo dedicado aos artistas plásticos, exibe trabalhos de Poty, Kerr, Renina Katz, Guido Viaro, Leonor Botteri, Bakun, Gianfranco Bonfanti, Nilo Previdi, Esmeraldo Blasi Jr., apresentados uns pelos outros.

Trevisan encontra-se em cada centímetro de Joaquim, criada “em homenagem a todos os Joaquins do Brasil”. Além de publicar contos, que enfeixaria, alguns deles, em seu segundo livro, Sete anos de pastor, de 1948, escreve notas, faz entrevistas, provoca — ora a província, como no artigo “Emiliano, poeta medíocre” (número 2, de junho de 1946), ora o status quo literário nacional, como em “O terceiro indianismo’, em que critica duramente Monteiro Lobato (número 12, de agosto de 1947). Mas também sabe valorizar antecessores — como Newton Sampaio, “o maior contista do Paraná”, segundo suas próprias palavras, de quem publicou um conto, “Irmandade”, no número 2, de junho de 1946, e uma crônica inédita no número 12 — e seus contemporâneos, como os jovens ensaístas paranaenses Wilson Martins e Temístocles Linhares, que logo se tornariam conhecidos nacionalmente. Além, claro, dos artistas plásticos que iam surgindo em Curitiba, como Poty Lazzarotto, Guido Viaro, Leonor Botteri e Miguel Bakun.

Trevisan tinha plena consciência da estrada larga que abria com a publicação de Joaquim. No número 9, de março de 1947, escreve: “Primeiro cumpria derrubar os muros e esboroou-se ao eco de nossa grita a muralha da China. Segundo, por em dia a arte, no Paraná, com seu tempo. (...) Soará a hora, então, de lançar o navio ao mar aventuroso”. E continua: “Nossa geração, com trabalho humilde, se propõe a participar de seu tempo, empenhada em salvar o homem com a sua arte, como puder. (...) Não será vã ou inconsequente, que almeje como um sol espargir os seus raios fúlgidos pela terra. Nem é para tanto, o trabalho de uma só geração. O importante foi a decisão de romper com o passado, nas suas tradições estéreis. (...) O mundo é um só: os nossos problemas estéticos ou vitais, são já os mesmos dos moços de Paris ou dos moços de Moscou. (...) Nossa geração, que reclama o seu direito de influir no destino do mundo, jamais fará arte paranista, no mau sentido da palavra. Ela fará simplesmente arte”. E termina com uma predição: “A literatura paranaense inicia agora”.

Na verdade, embora conhecido desde então, Trevisan continuaria a publicar seus livros por conta própria em Curitiba, em pequenas edições que emulavam a forma dos folhetos de cordel, até 1959, quando, saindo Novelas nada exemplares pela José Olympio, suas histórias passam a ter circulação nacional, iniciando sua consagração não só junto à crítica, mas e principalmente junto aos leitores do Brasil e do exterior.

Fenômeno isolado é Wilson Rio Apa (1925), autor de peças teatrais, romances e contos, que publica seu primeiro livro em 1957, Um menino contemplava o rio. Em seguida, mudase para Antonina, litoral do Paraná, onde se torna líder de uma cooperativa de pescadores e agricultores, e de uma comunidade artística, da qual fez parte o escritor Cristovão Tezza. No final dos anos 1960, Apa passa a se dedicar exclusivamente ao teatro, liderando o grupo de amadores Capela de formação popular, cujas peças eram apresentadas em locais públicos, bares e restaurantes em Curitiba e em São Paulo. Em 1986, muda-se para a praia da Pinheira, em Santa Catarina, onde passa a viver.

Em fins de 1967, a Fundação Educacional do Estado do Paraná lança aquela que se tornaria a mais emblemática vitrine dos autores nacionais ao longo da década de 1970, o famoso concurso de contos do Paraná. Ganhá- lo ou mesmo ser distinguido entre os cinco primeiros colocados, era ser alçado à fama quase instantaneamente. Neste período, começa a surgir uma nova geração de ficcionistas, que tem nomes como Regina Benitez (1934- 2006), de A moça do corpo indiferente, de 1965; Nelson Padrella (1938), também artista plástico, de O fascismo é um estado de espírito, de 1969; Sérgio Rubens Sossélla (1942-2003), autor de mais de 400 títulos, de gêneros variados e híbridos e Walmor Marcelino (1930-2009), ficcionista, dramaturgo e poeta.

A década de 1970 abre-se em novas perspectivas. O combate à ditadura insufla alento à literatura e a circulação das ideias se faz por meio de edições não convencionais — é o primado da chamada geração mimeógrafo e da literatura dita marginal. Em Curitiba é fundada a Editora Cooperativa de Escritores, pelos poetas Reinoldo Atem e Hamilton Faria, entre outros, cujos livros ganham espaço para além do Estado. É quando surgirão alguns dos mais importantes nomes da literatura de ficção paranaense: Paulo Leminski (1944- 1989), também poeta e ensaísta, lança o romance Catatau, em 1975; Roberto Gomes (1944) estreia com as Alegres memórias de um cadáver, em 1979; Domingos Pellegrini (1949) inicia, em 1977, uma longa e exitosa carreira com Homem vermelho; Fábio Campana (1947) lança- se em 1978 com os contos de Restos mortais e David Gonçalves em 1979 com as histórias curtas de Geração viva.

O surgimento, em 1987, do jornal Nicolau, sob coordenação de Wilson Bueno, que se tornou, em pouco tempo, o mais importante veículo de discussão da cultura entre o final da década de 1980 e início da década seguinte, veio coroar o aparecimento de uma das mais brilhantes gerações de autores paranaenses. Corroborando uma curiosa característica — a de que, ao contrário dos de outros Estados, os escritores locais não se mudam para São Paulo e Rio de Janeiro para obter notoriedade — Curitiba reunia, neste momento, alguns dos nomes mais expressivos da literatura brasileira.

Estreiam naquela década: Valêncio Xavier (1933-2008) com O mês da grippe, em 1981; Manoel Carlos Karam (1947-2007) com Fontes murmurantes, em 1985; Wilson Bueno (1949-2010) com Bolero’s Bar, em 1986; Cristovão Tezza (1952) com Trapo, em 1988, e Jamil Snege (1939-2003) com O jardim, a tempestade, em 1989. Jair Ferreira dos Santos (1946), que publica Kafka na cama em 1980 é o único a viver fora do Estado, no caso, no Rio de Janeiro. O fim do jornal Nicolau, em 1996, coincide com o início de um período de estagnação cultural, não no Paraná, mas no Brasil. É um momento de instabilidade política e econômica e parece que a literatura se inflete, buscando reelaborar seus caminhos.

A fundação, em abril de 2000, do jornal Rascunho, pelo escritor Rogério Pereira, coincide com o começo de um novo período de efervescência da vida cultural paranaense. Editoras grandes e pequenas surgem ou se consolidam — Positivo, Travessa dos Editores, Arte & Letra, Kafka e pequenos selos independentes —, revistas como a Coyote, publicada em Londrina, ou jornais como Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná, conseguem manter uma periodicidade regular, órgãos públicos e privados patrocinam eventos que atualizam constantemente o repertório dos escritores, não só na capital como também no interior do Estado. Curitiba, enfim, é hoje sem dúvida alguma, ao lado de São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, um dos mais importantes polos de produção da literatura brasileira.

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Eu sou um leitor que me fiz por antologias. Creio que as coletâneas, quando norteadas por princípios estéticos, temáticos e/ou históricos claros, cumprem bastante bem o papel de aproximar do leitor comum as várias tendências de dada literatura. Portanto, para além de oferecermos, neste livro, um conjunto de contos que têm em comum o fato de os autores terem nascido no Paraná ou para o Paraná terem migrado, colocamos à disposição, na verdade, uma gama de escritores, quarenta e um no total, que, cada um à sua maneira, ajudam a construir o imaginário brasileiro dos últimos cento e poucos anos. Cabe ao leitor escolher, entre tantos, aqueles que melhor dialogam com suas próprias experiências.

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Ainda uma explicação sobre os critérios utilizados para a escolha dos nomes que constam desta antologia. Procurei trazer para as páginas que se seguem o mais amplo espectro da produção contística paranaense, desde o primeiro texto em prosa em ficção, presente no livro de Lucio Pereira, Contos Paranaenses, de 1896, até um conto inédito em livro do jovem Thiago Tizzot. Para os autores contemporâneos, incluí apenas os que já houvessem publicado pelo menos um título, de qualquer gênero, e que tivessem nascido até 1980.

Alguém notará a ausência de alguns autores e, creia, não é lapso ou implicância. Simplesmente, nos deparamos com alguns obstáculos intransponíveis, ora a impossibilidade de encontrar os herdeiros de determinado escritor, ora a irredutibilidade na negociação dos direitos com os herdeiros ou com o próprio autor.


Luiz Ruffato é escritor, autor de Eles eram muitos cavalos (2001, Prêmio APCA e Prêmio Machado de Assis), De mim já nem se lembra (2006), Estive em Lisboa e lembrei de você (2009) e do projeto Inferno Provisório, composto por cinco volumes: Mamma, son tanto felice (2005, Prêmio APCA), O mundo inimigo (2005, Prêmio APCA), Vista parcial da noite (2006, Prêmio Jabuti), O livro das impossibilidades (2008) e Domingos sem Deus (2011, Prêmio Casa de las Américas). Seus livros estão publicados na Alemanha, França, Itália, Portugal, Argentina, Colômbia, México e Cuba. Vive em São Paulo (SP).