Ensaio

Um menino de cem anos

O professor da Universidade Federal do Paraná Luís Bueno faz uma análise do breve, mas intenso percurso intelectual de Newton Sampaio, que escreveu crítica literária, crônica jornalística, entrevistas, diversos contos e uma novela e, em todas essas atividades, vivenciou, não sem crises, os embates e tensões do tempo em que esteve inserido

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Newton Sampaio apareceu para o público em junho de 1933, como idealizador e redator de uma coluna fixa no jornal O Dia de Curitiba, a “Crônica religiosa”, que duraria pouco mais de um ano. Seu último texto seria publicado menos de cinco anos depois, em abril de 1938, no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro.

Nesse curto período, a literatura brasileira seria varrida por um verdadeiro furacão, causado por aquela que provavelmente foi a mais rica geração de prosadores que jamais surgiu no país. De saída, o que marcou essa geração foi a polarização política daqueles anos, que levou a uma literatura engajada proposta a discutir os grandes problemas da época, fossem eles políticos ou espirituais.

Embora esse furacão fosse prenunciado pelas estreias de Rachel de Queiroz, em 1930, e de José Lins do Rego e Jorge Amado, em 1932, ele se desencadeou de verdade exatamente um mês depois da estreia de Newton Sampaio, em julho de 1933, quando se publicaram os romances Cacau, de Jorge Amado, e Os Corumbas, de Amando Fontes, que alcançaram enorme repercussão e detonaram um intenso debate público. Ambos receberam uma atenção enorme da crítica e, surpreendentemente, conquistaram um grande número de leitores: basta dizer que primeira edição de Cacau se esgotou em quinze dias e que Os Corumbas teve três edições naquele mesmo ano, ou seja, em um único semestre.

Esse grande debate foi motivado pelo conteúdo político dos romances, fosse ele pretendido pelos autores ou detectado pela crítica e pelo público. A intelectualidade de esquerda se unia em torno do elogio a esses livros, que tratavam da vida de personagens pobres, seja no campo, seja na cidade. A intelectualidade de direita, por sua vez, atacou o livro de Jorge Amado, que lhe parecia propaganda política, enquanto aceitava o de Amando Fontes porque via nele um tratamento do proletariado nascente brasileiro sem partidarismo excessivo.

Que Newton Sampaio, aos 19 anos, fora do centro cultural do Brasil, inicie-se no jornalismo exatamente por uma “Crônica religiosa”, é fato que o colocaria, em princípio, à direita no espectro da intelectualidade brasileira de então, já que o forte movimento católico vindo da década anterior assumira uma posição de crítica àqueles que, em sua visão, reduziam a vida humana a seus aspectos materiais, ignorando o que lhes parecia essencial, o espírito.

A inquietude desse menino, que não chegaria a completar 25 anos de idade, não permite, entretanto, julgamentos precipitados. Afinal, ele parte de frases convencionais é verdade, como as que se veem em sua primeira crônica religiosa: “No sacrário busca-se a semente. Na sociedade encontra-se a gleba. E como resultante virá certamente, qual árvore maravilhosa, o destino feliz de um grande povo”. Mas, em seu último artigo, demonstra ter desenvolvido uma visão crítica que não poupa nem mesmo seus grandes ídolos literários, como Marques Rebelo, sobre o qual afirma que “não tem nada a dizer fora do seu gênero [o conto], precisando comumente recorrer ao expediente do 'Depoimento' para encher duas ou três laudas sem nenhum interesse”.

Entre esses dois extremos, o escritor fez crítica literária, crônica jornalística, entrevistas, diversos contos (que gerariam dois livros póstumos, Irmandade e Contos do sertão paranaense) e uma novela, Remorso. Em todas essas atividades sua inquietude o impulsionou a um processo de constante transformação.

Com sua ida para o Rio de Janeiro — transferiu seu curso de medicina da Universidade do Paraná para Niterói — aproximou-se do centro da vida cultural do país. Foi para o olho do furacão, colaborando nos principais veículos do tempo, como o Diário de Notícias e o Boletim de Ariel, além de manter constante a colaboração para O Dia, de Curitiba.

E como ninguém frequenta o olho do furacão e permanece o mesmo, Newton Sampaio passou por uma notável transformação. Essa transformação, entretanto, não se deu de forma inconsequente ou apressada: foi bastante ponderada e transpareceu tanto na ficção quanto na crítica que ele produziria.

Isso quer dizer que Newton não aderiu simplesmente ao que era o pensamento dominante no momento, ou seja, a posição política de esquerda e a escrita de uma ficção francamente social, política mesmo. Como acontece com os intelectuais honestos, diante de uma encruzilhada, tudo indica que ele passou por uma crise. Assim, manteve sua ligação com os intelectuais católicos paranaenses que já vivam no Rio, como Tasso da Silveira e Andrade Muricy. Mas aproximou-se também de alguns dos principais nomes da corrente social e regionalista. Lembre-se que, naquela altura, havia um senso comum que ligava o catolicismo ao pensamento de direita.

Em sua atividade como crítico, essa ponderação resultou numa obra importante no contexto da década de 1930. Newton Sampaio foi capaz de compreender a importância de escritores “regionalistas” como José Lins do Rego e “católicos” ou “intimistas” como Cornélio Penna e Lúcio Cardoso. Para poder avaliar sua abertura de visão, lembre-se o que aconteceu, por exemplo, no início de 1937, quando Rachel de Queiroz lançou seu terceiro romance, Caminho de pedras. A escritora foi duramente criticada, por motivos políticos, seja por intelectuais de esquerda, que não perdoavam seu rompimento com o Partido Comunista, seja pela direita, que não gostou de ver o ativismo de esquerda tema de um romance de repercussão. Os nomes que se levantariam nos jornais para analisar o livro com olhos livres foram os de Newton Sampaio e Graciliano Ramos.

Num tempo em que o modernismo não era levado a sério, e uma revista católica decidiu atacá-lo de forma violenta, o jovem crítico juntou-se a alguns nomes da esquerda, como Carlos Lacerda, não para simplesmente defender o modernismo, mas sim para discutir suas contribuições e apontar o que considerava seus limites.

Como ficcionista, manteve a preocupação com o aprofundamento psicológico, de que é exemplo o mais conhecido de seus contos, “Irmandade” — que, aliás, continua merecendo ser descoberto por novos leitores. Mas também fixou interessantes tipos sociais, como o personagem negro que vive em Curitiba do conto “Carnaval de camelô”.

O único projeto de ficção longa que levou ao fim (deixaria outros três inacabados), a novela Remorso, foi uma tentativa séria de fazer literatura social aliada à discussão psicológica ao narrar o envolvimento entre um jovem herdeiro da elite curitibana e uma filha de imigrantes poloneses. Em Remorso tanto a situação marginal do “polaco” quanto os falsos dilemas morais do rapaz rico que termina por abandonar a moça, grávida, mesmo desejando ficar com ela, dão consistência a uma narrativa que coloca Newton Sampaio no rol dos autores daquele grande momento da literatura brasileira.

Essa salutar crise, Newton Sampaio a viveria até o fim, e uma frase talvez tenha sido capaz de resumi-la, mostrando como ele permaneceu abraçado ao furacão. Ela surge tanto numa crítica sobre Jorge de Lima, quando fala em seu próprio nome, quanto, num conto, nos pensamentos de um personagem que, pobre-diabo sem dinheiro perdido na grande cidade, reflete sobre a dureza da vida enquanto espera seu sapato ser remendado: “Já não sei mais entrar em igrejas”. Nada de aceitar a solução que já vem pronta, portanto, e sim manter o exercício da consciência bem acesa, que muitas vezes leva à acidez de visão, mas por outro lado acaba assegurando a constante inquietação que conduz a novos caminhos.

Essa liberdade de pensamento, bem como a escrita direta e precisa, garantiram para Newton Sampaio uma posição de permanência na literatura brasileira, capaz de fecundar o que se fez de mais renovador em seu Estado de origem nas décadas seguintes. É isso, e não apenas a morte precoce, que faz dele agora um menino de cem anos.


Luís Bueno é professor do Departamento de Linguística, Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutor em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é autor de uma tese sobre a literatura brasileira da década de 1930, que foi publicada sob a forma de livro com o título Uma história do romance de 30. Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Osvalter Urbinatti