Em busca de Curitiba | Rômulo Zanotto

Curitiba, 23 de julho de 2013



Nicholas
Foi no dia 23 de julho de 2013. Lembro-me disso não porque fosse um destes aficionados por nomes, datas e horários, ou porque tivesse um calendário às mãos quando isso aconteceu. Mas sim porque foi um floco de neve a primeira coisa que senti bater em meu rosto depois disso, depois que Ana me deixou.

Naqueles dias, nos dias que se antecederam a este, eu andava querendo sair às ruas e encontrar inspiração para escrever alguma coisa definitiva como uma música de Caetano ou Chico Buarque. Mas como, sendo curitibano? Curitiba só oferece a cor nublada dos seus dias cinzas. Eu não tinha, como Chico e os cariocas, uma mulher a fazer tudo sempre igual, dizendo estas coisas que diz toda mulher. Depois de oito anos eu havia me tornado um estanho para ela. E ela, como curitibana, não falava com estranhos. Então passávamos a maior parte do tempo calados. O máximo que podia acontecer comigo era tropeçar nos poemas-paulo de Leminski, nas canções-ruiz de Alice, nos contos-trevisan de Dalton, nos livros-tezza de Cristovão ou nos Jabutis dessa gente toda. Mas eis que, no dia 23 de julho de 2013, é do céu e desta eterna nuvem cinza que me vêm esta história. Definitiva como eu queria. Definitiva como uma música de Caetano Veloso — ou como uma crônica de Nelson Rodrigues.

Era Curitiba, era frio e eram oito horas da manhã. Eu sabia que nosso relacionamento de oito anos estava para naufragar — embora eu não quisesse. Há alguns dias vinha me preparando para o pior — embora eu não quisesse. Era na hora de dormir e na hora de acordar o medo do abandono. Na hora de dormir, com medo que fosse abandonado. Na hora de acordar, com medo que já tivesse sido.
A previsão de neve para aquele dia era para as oito horas. Coloquei o relógio para sete e quarenta e cinco, porque não queria perder o início do espetáculo (mal sabia que o protagonista seria eu). Mesmo assim, deixei a cortina aberta para o caso de o espetáculo já haver começado. Às 7h45min, pude ver pela fresta da janela uns pingos muito finos de chuva que já se confundiam com minúsculos flocos de neve. Ainda sem olhar para o outro lado, o lado de Ana na cama, estiquei direito o braço para trás e apalpei o outro lado, o lado de lá da cama de Ana. Desde pequeno, tinha esse medo absurdo de ser abandonado por aqueles que amava durante a madrugada. Primeiro a mãe, agora Ana. E naquela manhã de 23 de julho, meu coração palpitou mais ao fazer o gesto: ela não estava lá.

Virei-me rapidamente, esqueci os flocos da neve e comecei a procurar remexidamente por entre as dobras do lençol algo, alguma coisa, alguém que desse conta daquele sumiço. Revirou, revirou e revirou. E ao revirar-se, percebeu que os lençóis estavam quentes. Fosse o que fosse que tivesse acontecido — um abandono, uma morte ou uma angústia —, ela não teria ido muito longe. “Os lençóis estão quentes”, repeti antes de sair procurando no banheiro. Não estava. Na cozinha. Não estava. Saí porta afora do meu apartamento, desci as escadas correndo e chorando, correndo e chorando, correndo e chorando, correndo e chorando. Perguntei ao porteiro: cadê a Ana? Ele disse: “Ana está nevando”. Achei de uma poesia aquilo: “Ana está nevando”... Mas não havia tempo de pensar sobre a poesia das coisas. Saí porta afora do meu prédio, subi correndo a Comendador, procurando... Ana! De repente... Ela! Na esquina da Brigadeiro Franco, pegava um punhado de flocos de neve, jogava para o alto, deixava cair no próprio rosto e ria, ria, ria. Ria com um sorriso lindo que só ela tinha. Pegava um floco, jogava, caía e ria. Eu olhei para aquilo, para a imagem daquela mulher linda brincando na neve feito criança, e meu ideal de vida perfeita novamente sorriu para mim. Me aproximei. Ela continuava me olhando e rindo. Até que, de repente, parou. Se aproximou e parou. Estávamos, a esta altura, em frente à Tabacaria. “Come chocolates, pequena, como chocolates”, pensei. Mas não falei. Antes que concluísse o poema em pensamento, a voz de Ana cortou o ar, mais fria que a neve. Parou, me olhou e disse:

— Está vendo esta neve?

(Era uma pergunta retórica, não precisava de resposta. Era claro que eu estava vendo, eu não era cego nem nada e ambos sabíamos disso.)

— Se ela for farta, contundente, robusta, como deve ser o amor, caindo tanto ao ponto de preencher de branco o preto e o branco destas pedras portuguesas, prometo que fico com você para sempre. Mas, ao contrário, se ela continuar assim parca, sofrível, miserável como anda a nossa relação, eu vou para nunca mais voltar.

Eu não podia acreditar no que meus lábios ouviam — sim, a essa altura era com os lábios que eu ouvia. Nem Dalton Trevisan seria capaz de tamanho sortilégio. Condicionar a continuidade ou não de um relacionamento a uma intempérie climática, fazendo nisso uma analogia miserável com o amor? Quanta banalidade, meu Deus!? Quanta superficialidade! Quanto desprezo por uma história! Nem Leminski seria tão vil! Sabia ela que nevaria pouco e, por querer partir, aproveitou a piada ou, ao contrário, queria poder ficar e, como não soubesse o que fazer, ligou uma roleta russa antroposférica para lançar a sua sorte?

Fosse o que fosse, eu queria matar aquela mulher, socando com gosto sua cara naqueles flocos de neve, deixando que miolos e sangue e pedaços mutilados de seu corpo escorregassem depois pelos bueiros da cidade, limpando a vida e a cidade de uma mulher tão miserável, capaz de condicionar seu amor à neve. Neste momento, uma bola de neve cresceu instantaneamente dentro de mim, me transformando de vítima em algoz: parti para cima de Ana, agarrei-a pelos cabelos e, como um louco lazarento, comecei a partir sua cabeça de encontro ao meio-fio com sucessivos golpes de ódio, manchando para sempre de vermelho o preto e o branco daquelas pedras portuguesas.

No outro dia, a manchete na Tribuna: “Homem traído mancha de vermelho a neve curitibana”. Assinado: Nelson Rodrigues Curitibano.

Rômulo Zanotto é ator e autor do livro Quero ser Fernanda Young (2012). Trabalha atualmente em agência de publicidade. Catarinense, vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Nicholas Pierre