Em Busca de Curitiba: Severo Brudzinski

Até que um dia amanheça

curitiba

Antes do primeiro homem já era noite nos Pinhais. Deus olhou para essa terra e determinou: aqui vampiros, fantasmas e licantropos. Refúgio de malditos, sugadores e anti-horários. Mas, pelo artifício maldoso do índio do Bairro Alto a vontade divina não se cumpriu e os carniceiros e faiscadores vieram se misturar aos entes mitológicos e montar seu comércio na Praça Tiradentes. Obviamente, foram todos amaldiçoados.

É noite, Severo está em pé sob o grande pinheiro central. Os eminentes de bronze o observam. Nem todos, é verdade, o mártir e o marechal dão as costas ao herói e ao nosso símbolo heráldico, enquanto Vargas e Constant o contemplam com respeito.

Severo olha para baixo, para os calabouços antigos. Recém-encontrados, mas antigos. Lugar soturno.

No subsolo os prisioneiros caminham de um lado para outro, apáticos. Guardados por uma lâmina de vidro, ficam em exposição pública como os leões do Passeio. Trajando domingueiras, aproveitam a lua.

Ao contemplar o alheio, não se observam grandes originalidades, salvo um ritual randômico. De repente fulano tira do bolso interno do paletó um pequeno caderno de notas. Escreve versos, projeta um viaduto, planeja um assalto, quem sabe? Rapidamente chega um que vigia com desinteresse, depois outro, mais outro, até que se aglomera uma multidão, onde quem está no fundo pergunta: a que horas sai o enterro?

Com a maturação do escrito, plano ou processo, formam-se três círculos de interesse em torno do sábio. No primeiro, ao alcance do cuspe, ficam os sorridentes e cumprimentadores. Como se pode imaginar, eles sorriem e congratulam, sempre e somente, o homem que rascunha. No entanto, nada mais inflamado que um “bravo!” é dito. A seguir ficam os críticos silenciosos. Nessa classe de observadores, não se diz palavra. Os olhares são duros e descomprometidos. As características mais comuns são os óculos pensos na ponta do nariz, um quase e cínico sorriso nos lábios e as mãos ocultas nas costas. Não se observa o menor aceite ou negação. Vez por outra, um bocejo, nada mais. O terceiro círculo é o dos conspiradores. O lugar do ranger de dentes. A trapaça é o método e o ódio é a lei. Pequenos grupos se formam, depurando o golpe, interdição ou solução final. 

Por mais que cada anel tenha seu atrativo, é no terceiro em que há movimento e paixão. É no terceiro que o conflito é evidente. É de onde partem as facas, as balas e as palavras de ordem. De repente, dois ou três membros somem da vista por um corredor estreito. Em instantes retornam acompanhados de um cidadão cujo uniforme lembra o dos agentes de segurança, com um “quê” de fiscal de obra. O funcionário se aproxima do grupo que abre para lhe dar passagem. Chega-se ao agitador e o repreende com veemência. Toma-lhe o livro de notas e o atira numa caixa cadeada com “biblioteca” escrito na lateral. Sai.

Outro funcionário, enorme troglodita, entra em cena e obriga o pensante a tirar as roupas e a subir na caixa. Sob pena de socos e pontapés, é levado a sorrir e segurar um cartaz onde se lê: aqui só vale o ouro.

Severo e o prisioneiro trocam olhares. Constrangido o outro reclama com seu opressor que faz sinal para que o observador se afaste. “Fora!”, lê-se em seus lábios. Severo dá de ombros e caminha para o Oriente.

igreja
Ninguém na rua gélida. Nem táxi, nem ônibus, nem nada. Um dos relógios da catedral marca três horas. O outro, sem ponteiros. Súbito as portas do templo se abrem. Do interior, uma luz solar, intensa. Curioso, Severo se aproxima, ladeia o círculo de flores, vence os seis degraus em pedra e cruza o pórtico.

Assim como a rua, o prédio está vazio. A luz que escorre para fora vem de três imensos lustres de ferro envidraçados.

O visitante mergulha a ponta dos dedos numa das pias de água benta e retorna com um líquido denso e quente como sangue venoso. Verifica a outra, vazia.

Sem benção?

Entrando pelo corredor principal, se encanta com a quantidade de pinturas, entalhes em pedra e madeira, detalhes vitrificados, estátuas e colunas. Não as lembrava assim tão suntuosas. Reconhece o rico simbolismo das cores e formas. Signos ocultos se revelam em cada lírio na mão de um santo, em cada lótus grafado nas paredes.

A nave principal é esplendorosa. A verticalidade impressiona. Inebriado, tropeça e por pouco não despenca no poço ao lado do altar. Se agarra como pode, mas uma força oculta lhe atira para a água. A salvação vem com um sussurro íntimo, distante: talita kum.

O ânimo retorna. Consegue apoio para os cotovelos e com um bom impulso está salvo. Por um instante olha em volta, procura o salvador. Nada. Grato pela ajuda lembra-se do crucificado e vai ter com ele. Surpresa. Não há estátua, velário ou ex-voto. Onde o olhar reconfortante do cordeiro imolado? Em seu lugar a lápide horizontal de um eminente dos sacramentos. Severo se aproxima para ler o epitáfio e descobre-se morto.

É estranho, pois as letras que compõem “Severo Brudzinski. 197*. 200*.” são de plástico, como as usadas
em quadros de oferta. Letras velozes, infames.

Que isso quer dizer?

Com a dúvida, uma lufada balança os lustres centenários e congela o penitente que sorri.

O vento, ao que parece, espalhou milhares de folhas secas pela igreja.

Sem demora, surgem monges armados de vassouras. São muitos. Sisudos, separam-se por alas e começam a limpeza. O primeiro inicia o cantochão e os outros repetem. O ouvinte deixa-se estar. No entanto, não demora em ser vencido pelo tédio e sai pela lateral para uma viela escura.

Se o templo, uma pomba branca, a rua, um morcego negro de asas peludas.

Segue pelo calçamento. Os passos não ecoam na madrugada fria. O chão se move. Força a vista e descobre onde pernoitam todos os ratos da cidade. Milhares. Num primeiro momento, para tocar o chão, é obrigado a chutá-los. Depois nem se dá ao trabalho: se danem! Corre esmagando os pequenos demônios.

Em frente, um farol. Sob o facho uma zona livre dos imundos. No porto, está seguro. Os roedores quando no perímetro iluminado são incinerados imediatamente até as cinzas, que logo são absorvidas pelo piso de pedras brancas e negras.

Em volta, a enxurrada ganha volume. Os ratos incham e perdem os rabos e pelos. Crescem um pouco mais e a pele se torna lisa. Os ossos esticam. Joelhos e cotovelos se pronunciam. De roedores passam a homens secos e barbudos. Seres sujos, de pele queimada e olhos profundos que vagam desesperados,
procurando pelo chão por pequenas pedras brilhantes, disputadas até a morte. São lutas sangrentas, mas não há o que temer, pois o poder do farol vale também para a mutação. Os que caem dentro do círculo têm o mesmo destino dos ratos calcinados. Sobram os crânios que Severo chuta para fora. Nojo.

Aos poucos, os ex-ratos tornam-se vivazes e audaciosos, se aglomerando em torno do poste. No olhar, fome de carne e sede de sangue.

Súbito, de um prédio em frente, a luz de uma janela acende e na sacada
surge uma menina. A pequena não deve ter mais que cinco anos. Um anjo de olhar transumano. Num mimo, ela aponta para um interruptor com instalação e barramento à mostra. O acossado segue a linha de força e a descobre alimentando o poste no qual se abriga. Antevendo o descarne, se arrepia.

Adoro esta cidade. Amo tanto que não a suporto. Diz a menina com uma voz madura e amarga.

...

Tudo é tão organizado, não acha?

...

Está com medo?

...

Vai ter sua chance. Se acerta, fica aí até que um dia amanheça. Se não...

Severo concorda.

Lá vai: por que fazer sofrer o teu pai, tua mãe e tua irmã? Por que preocupar o teu gerente? Por que abandonar um emprego tão bom e se tornar um ser abjeto e sem nome? Conte para os ratos, senhor Gregor Samsa.


rato
Não mora ninguém com esse nome.

...


...

Resposta errada.

Flashes no céu noturno antes do olho ser devorado. 

 


Severo Brudzinski é autor dos livros Os amores e mortes de Gustavo Carbel (2005) e Líricas (2008). Em 2012 lançou a coletânea de contos Passagem do aqueronte. Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Fabiano Vianna