Em Busca de Curitiba | ReNato Bittencourt

BOTINAS CAMINHEIRAS OU A BORRACHA NA PEDRA

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Tenho um nome de estrada, embora não seja tão estradeiro: meus trajetos são antes urbanos. Todavia, sou caminheiro, minhas botinas são muito caminheiras no perímetro da urbe. Dentro das botinas, com a trilha diante de mim e muitas trilhas dentro de mim, palmilho o solo de hoje e carrego comigo o mesmo torrão de outro tempo. Fui buscar um documento de antanho na mesma Reitoria de sempre, o mesmo prédio gelado e, conforme a lenda, projetado para o Nordeste do Brasil — mas levantado aqui mesmo, à margem esquerda do nosso subterrâneo rio Belém. Segui no mesmo rumo de há quase 30 anos, o mesmo petit-pavê, as mesmas pedras brancas e pretas que tanto amansei. E com botinas no mesmo modelo semirrústico, feito à mão, com sola de pneu, e este sanfonadinho semiocultando o elástico. Por aquela antiga era, estava oscilando entre o preto e alguma tonalidade do marrom, e agora já faz muitos anos que abandonei definitivamente os calçados na cor do carvão. O que não mudou foi o roteiro pela rua XV de Novembro, o frio do nosso inverno (não vamos considerar o aquecimento global) e o mesmo sol brotando dos fundos da prediaria do Alto da XV, por detrás do bairro mais acima, para me alcançar cá embaixo, batendo de chapa nos meus olhos, que apenas de uma altura em diante se valem de óculos escuros, impondo limites à luz.

Botinas caminheiras já estavam comigo na minha Telêmaco Borba natal. Eram pretas, feitas por meu primo Hélio na sua cidade, tão perto da minha. Ele as manufaturava em uma portinha na praça da matriz de Curiúva, a praça chamada Constante Borges, homenagem a um tio do sapateiro meu primo. Agora quase não piso em minha terra, minhas visitas são esporádicas e acidentais, e ainda assim uma antiga Telêmaco vem a mim amiúde, nos sonhos de avulsas madrugadas, e permanece comigo, é um substrato, abaixo do barro do chão. Na verdade, aquele menino não era muito andejo, e continuo não sendo de deslocamentos em longa distância. Faço o que preciso percorrer no meu dia a dia neste burgo, que passou a ser o meu ninho. Quais eram os meus roteiros lá por onde nasci e permaneci até um tanto? O grupo escolar (pré à 1.ª série) e o colégio (5.ª à 8.ª), o botequim (ganha-pão de meu pai) e a chamada livraria (um misto de papelaria e banca de jornal, com o acréscimo de alguns livros — talvez duas ou três dezenas). Pelos 10, 11 anos, fui além dos gibis, cheguei aos livros, repositórios de um vasto mundo muito mais fascinante que o grande mundo trazido pela televisão (Philco Ford, preto e branco, gabinete de madeira). Daí a casa já era estreita, comecei a ser um diferente no seio da família, um esquisito. Algumas vezes, arriscava uma saída depois da janta, ia bater perna nas noites de calor, roteiro fixo incluindo passar por frente da casa da professora de história, e também diante da morada do professor de português. Na vivenda da professora, janelas fechadas, não se via movimento, enquanto o professor deixava a ventana aberta sobre o verão, da calçada se entrevendo o alto de uma estante abarrotada, muito mais volumes que na livraria da cidade.

Até meus 13 anos, eu era um jeca timidinho de botinas pretas (talvez agora seja um jeca tímido de botinas marrons) e qualquer solitária marcha partia da minha rua de macadame.

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Porém, um dia minhas botinas pretas foram realmente conhecer rodovia, chegaram até a atraente capital, vieram bater pedra e asfalto nesta Curitiba em que é possível uma lógica pedestre: é a mesma borracha no solado das minhas botinas e no rodado dos nossos ônibus urbanos. Sou da infantaria blindada. De botinas e de ônibus, vinha do antigo bairro do Portão para o Centro, fazer o segundo grau (ensino médio) no Colégio Estadual do Paraná, bem defronte do Passeio Público. E ainda crescia, ficando mais e mais curioso, buscando carreiros e rotas, e mesmo antes do alistamento militar já estava ingressando na faculdade, na Reitoria (ali perto, poucas quadras), frequentando aulas escrupulosamente — mas precisei gazetear no dia do juramento à bandeira. Foi no quartel da praça Osvaldo Cruz e era 1985, o país querendo sair da égide dos militares. Hoje, a fortificação que dominava além de uma quadra abriga um shopping, dos tantos que vemos agora. Foi no seu subsolo que cumpri a relativamente breve cerimônia para receber o meu Certificado de Dispensa de Incorporação. O que houve com a imponente edificação, penso eu, é indicativo da troca da guarda, quem mandava e quem manda no país — os militares e os mercadores.

Batendo na pedra com minhas botinas caminheiras, em uma perdida noite saí da Reitoria pela rua XV até perto da Boca Maldita, para uma sessão de O nome da rosa, estreia em um dos cinemas da Fundação Cultural, o Ritz, ao lado da C&A. O romance do grande intelectual Umberto Eco tanto encantara a nós, meninos livrescos. Com minha pouca malícia, acompanhava uma amiga da faculdade e queria ver a película: pensava ser impossível filmar aquele romanção de tantas páginas, história de monges copistas, debates teológicos. Com minhas botinas, fui para a sala escura espiar aqueles homens de sandálias. O filme fez o que precisava fazer, sintetizando a trama teológica, evidenciando o que há de mais universal nesse livro, isto é, a teia de ciúmes, arrogância, altruísmo etc., embalada em um enredo policial dos bons.

E era bom ter uma botina firme no pé: não tanto como na abadia que brotava da tela, em meio à neve, mas era uma noite fria em nossa Curitiba. Era 12 de junho de 1987, ou 1988. Os ingressos vieram de uma promoção do Dia dos Namorados e eu queria que ela fosse minha namorada. Não foi, mas de certo modo foi, e para todos os efeitos não foi. Foi bom que não fosse — depois pude ver. De dentro de minhas botinas, por fim percebi que bem melhor assim. Minhas botinas me protegeram.

Aconchegado em minhas botinas, naquela noite acompanhei a moça, que trazia uma influência punk nos trajes e adereços. Não lembro da roupa propriamente, lembro do cabelo cor de palha e das sobrancelhas rapadas para serem refeitas em uma espécie de raio verde desenhado com lápis de maquiagem. Ela, uma moderninha semipunk e eu começando ser o punk franciscano que porventura sou até hoje.

Saímos da sessão para o frio da mesma rua XV batendo tacões de botina e coturno para onde, meu Deus? Fui solito à praça Rui Barbosa tomar o ônibus de volta para casa ou fomos juntos beber cerveja com nosso pouco dinheiro de estudantes?

E a bordo das botinas caminheiras voltei para a mesma rua XV em outro dia, outra estação, outra temperatura, outra luz, com outras pessoas, depois de uma digressão quase ali na praça Zacarias, por um botequim onde fomos empinar doses de Pitú em uma tarde de mormaço. Era o trote dos calouros e na disponibilidade dos 20 anos víamos a muvuca como quem apenas segue junto da procissão, sem aderir ao mar dos devotos. Depois da cachaça, voltamos ao corso e, de dentro destas cadeiras duras que Deus me deu, simulei dançar um frevo com uma das belas da história, do curso de história, em plena praça Osório, junto do chafariz. Éramos jovens e a alegria nos habitava.

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Aquietando e desesperando minhas botinas caminheiras, frequentei a Reitoria por pelo menos 12 anos. Pude fazer dois cursos regulares enquanto aprendia a frequentar os pés-sujos da nossa rive gauche do Belém e, mais ou menos sobre o rio, o café dos Estudantes, ali junto dos fundos do teatro Guaíra, rua Tibagi, defronte ao largo Bittencourt, última lembrança do que foi outrora, no tempo do imperador, o banhado do Bittencourt. Não sei quem foi ele, ainda não sei, mas posso dizer que outro homem com o mesmo nome muito circulou por essas plagas.

E assim, dentro das minhas botinas andarengas, dos meus pensamentos deambulantes, hoje sei que uma cidade é feita de evocações. A memória de si mesmo, a memória do clã, a memória da raça. Quando faço minha trajetória do dia a dia por estas vias manchadas e mesmo magoadas de história (até da minha história), batendo minhas botinas na pedra e no piche, ando nas duas dimensões, em uma direção apenas: a concreta, tão material quanto a borracha e a pedra, e também vou por essas vielas da memória, que têm a materialidade marcante de um perfume. Percorro a cidade com minhas botinas. Dentro da cidade, dentro de minhas botinas, sou um andarilho. Essa palavra não significa apenas “aquele que anda”. O dicionário registra: “Que ou aquele que anda muito, percorre muitas terras ou anda de forma erradia”. Andarilho é o errante, é o arcano zero do tarô, a criança no mundo, aquele que teatina, gira em roda buscando a própria estrada.

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É o que faço, com minhas botinas, na cidade. Busco a perdida cidade da memória na cidade real em que circulo me desincumbindo do meu dia. Minha jornada laboral nos arrabaldes do Centro, minha noite de estudos nas imediações da rodoviária, por detrás da antiga estação ferroviária, que também se tornou um shopping center. Hoje, é nos shoppings que vamos ao cinema, e não na rua. Já não tenho a pequena cidade de minha infância e também não a capital de província da minha primeira juventude. Pelo retorno de Saturno, fui além, fui viver na Corte e lá curti sete anos de pastor, a cuidar de alheio gado.

Voltei, dentro de minha botinas, voltei para continuar zelando de alheio rebanho nesta nossa Curitiba, que contudo segue mais ou menos a mesma de quando cá aportei. Ainda é possível almoçar feijoada aos sábados no Passeio Público, esbarrar em um conhecido ou amigo (e até um irmão!) no largo da Ordem, a feira hippie está cada vez mais imensa, embora com poucos ripongos. Penso que é aqui que realmente sei viver, se é que sei. Aqui há muitos dos meus e posso prosseguir pedestremente, vez por outra fazendo a ronda dos sebos, cortando o cabelo no seu Valdir, almoçando comida caseira na rua São Francisco. É assim que habito a cidade que me habita. E sim: nos finais de semana do verão, uso sandálias franciscanas.

ReNato Bittencourt Gomes nasceu em Telêmaco Borba (PR), em 1967. É autor dos livros de contos Mecânica dos fluidos, Inventário e descobrimentos e Liturgia do sangue. Vive em Curitiba (PR).

Ilustrações: El Cerdo