Em Busca de Curitiba | Marcio Reinecken

Ponto de iluminação

Márcio Reinecken

ilust
“Buceta!”, pensei sem nenhum significado literal. Mas Anabela não parava de falar sobre como as mulheres não poderiam se deixar subjugar pelos homens. Otelo aproveitava as sombras e vazios para contar sobre como tinha sido sua estada em “London”. E Eduardo acendia um baseado atrás do outro. Tudo meio óbvio demais.

Do outro lado da janela, do lado de fora, a noite produzia sons intensos, que para mim mais se assemelhavam a um bebê tendo cólicas infernais, e isso parecia, de certo modo, tentar explicar porque, cada vez mais, Curitiba tinha esse clima, atmosfera, ambiente, tão, tão...
Garoava no 4º andar.

Nos postes, como de costume, as luzes apagavam e acendiam espaçadamente quando bem entendiam, sem nenhuma linearidade aceitável. O que fazia os casacos comprados na Zara brilharem enquanto desfilavam ali pela Vicente Machado. Quem os visse de onde eu estava vendo seria levado a acreditar que havia câmeras espalhadas por toda a extensão da rua, mas que eu saiba isso só ocorria mesmo na Quinze e Riachuelo, certo?

Não importa — ou não deveria importar.

Devo ter passado pouco mais de alguns instantes assim, pensando em como me livrar disso tudo, mas a julgar pelo assunto naquela sala, poderia ser que eu até mesmo tivesse voltado no tempo. Anabela... Sim, a mesma coisa. E, como sempre quando esse papo anos 70 sem criatividade vem a tona, pensei em como seria interessante, ou ao menos curioso, comê-la de quatro. Não imagine pornografia, mas imagine algo inevitável.

“Meu deus!!!” O mundo caindo na minha cabeça e Anabela ali preocupada em estabelecer uma linha que delimitasse ações entre homens e mulheres, ou melhor, mulheres e homens... Tentando criar um padrão onde se poderia determinar quem deveria se enquadrar em conceitos ultrapassados como machismo ou feminismo enquanto não se sabe mais nem qual é mesmo o significado de homem e mulher me pareceu pura inexperiência.

Isso até seria bem aceitável se a menina fosse uma dessas amargas mulheres de trinta e poucos que proliferam em velocidade assustadora por aqui, pensei, em uma daquelas reflexões que só conseguimos ter enquanto estamos olhando diretamente para a pessoa em questão. E Anabela cruzou com meu olhar e ainda sorriu pra mim quando terminou de dizer algo que parecia ter achado genial. Vá saber.

Retribui com um novo sorriso, pois o antigo daria muito na cara. E levantei um pouco a minha taça de vinho na direção dela. Ela sorriu de volta e mexeu no cabelo. Tempo suficiente para Otelo emendar que em Londres (a tradução é por minha conta) as coisas são muito diferentes, o que é uma baita duma balela, mas ele queria mesmo era falar da feirinha de Notting Hill nos sábados, dum ensopado de grão de bico com linguiça que era maravilhoso de se sair comendo e caminhando por entre as pessoas e ouvindo aquele sotaque...

Escrevendo isso, me ocorreu o caso de uma garota que conheci tempos atrás. Na época ela tinha uns 23 anos, ainda era virgem e saímos algumas vezes em uma sequência de insucessos. Logo depois fiquei sabendo, sem muitos detalhes, que havia viajado para a Inglaterra e lá teve sua primeira vez. Sem mágoa, deixo esta historieta para uma análise posterior.

Naquela noite, contudo, pensei, de verdade, em como deveria ser bom estar lá na feirinha do bairro londrino caminhando entre as pessoas, comendo grão de bico com linguiça e protegido de todo o sofrimento e violência que aflorava por esse mundo moderno do lado de fora de Notting Hill (neste caso, por opção do tradutor, que sou eu, e até para não quebrar o encanto, decidi manter o termo no original).
Quis mesmo que houvesse algum tipo de teletransporte quando recebi mais uma chamada e estremeci ao ver aquela fotografia estampada no visor do meu celular enquanto o aparelho gritava desesperadamente parecendo querer me avisar de algo sem que eu lhe desse a atenção necessária.

Momentaneamente triste, tive exatamente este insight: a foto dela, que eu mesmo fizera, havia se voltado contra mim.

Normal.

Em situações desse tipo o desespero é algo a que não podemos, de forma alguma, nos apegar. Isso era uma das poucas coisas que meu avô havia me deixado de herança. O resto ficou para o meu pai, que vendeu tudo, nos deixando meio que por conta. Não sei se ele, o meu avô, imaginara toda essa odisseia em minha vida, mas estava sendo uma boa dica até agora.

Havia mais pessoas no apartamento, era mesmo uma reunião grande para aqueles esquentas de sexta, mas foi Eduardo quem apareceu para me oferecer o baseado. Garantido: risada arrastada de algum filme que ele havia visto, mas eu, provavelmente, não. Melhor assim.

Então, para evitar aquele vazio meio constrangedor falei logo de cara o que ele queria ouvir. “Porra, bem enrolado pra caralho!”.

Outra risada, outro filme.

“A erva é da gringa”, foi assim que ele disse.

Fiquei tentando amarrar as pontas: Da gringa... Where? Paraguay?!

Sorri de novo mais para testar aquele sorriso que inventara a pouco do que por vontade mesmo.

Dei uma bola, segurei tudo o que pude até tossir meu pulmão simplesmente para me sentir ainda mais farto. Me sentia assim, cheio de tudo, mesmo sentindo um carinho especial por boa parte daquele povo, de modo que me virei para a sala novamente e gritei bem alto assustando um bom tanto de gente.

“NADA É DIFERENTE EM LUGAR NENHUM, PORRA!”

Depois pulei uns dois ou três que estavam esparramados pelo chão da sala e sai pela porta abruptamente, fechando-a com bastante força.

E parei a espreita. Esperei em silêncio.

Deu para ouvir um “o que deu nele?!” de alguém, acho que de Anabela. “Ele sempre faz dessas, só quer aparecer”, disse a voz despreocupada de Otelo. Tudo isso com um pouco da risada de Eduardo ao fundo e mais um monte de vozes e barulhos distorcidos e irreconhecíveis.

Só quando tudo voltou ao normal lá dentro pude perceber que por toda a noite desde minha chegada esteve tocando David Bowie. Me pareceu como uma melancolia programada.

Na verdade, se não me liguei antes foi por pura desatenção, pois ali parado na frente da porta pude lembrar claramente a imagem de alguém levantando do chão cinematograficamente, com um cigarro em uma mão e a latinha de cerveja na outra, sem se apoiar em nada, e dizendo que tinha ido no show de Bowie, em sei lá quando. E de isso ter sido o estopim para outro carinha gritar, levantando uma folha qualquer, talvez um livro do Bukowski: “abaixo assinado pra Pedreira”. Eu mesmo, nostalgicamente, pensei em pedir para tocar um Pixies, mas fiquei quieto com medo que alguém mandasse um AC/DC ou então, pra piorar, Björk.

Quando sorri com as lembranças recentes já estava nas escadas, no meio do caminho a ser percorrido até a saída. Mas esse foi um sorriso antigo, já bem batido até. Daqueles que são automáticos, às vezes ensaiados horas a fio no espelho do banheiro.

Estava frio na rua. Na vitrine de uma loja verifiquei se minha echarpe estava esteticamente bem enrolada em volta do pescoço, arrumei o casaco, só depois coloquei a gola voltada pra cima e fui abotoando todos os botões com exceção dos dois últimos, mais próximos do queixo. Passei os dedos entre os cabelos, para deixá-los mais espetados. Alisei as costeletas.

Sem mudar o ritmo, olhei para cima, a lâmpada de mercúrio do poste desligou sem motivo aparente, o que evitou, ao menos momentaneamente, fazer meu casaco brilhar coberto por gotículas da garoa que continuava fraca e inalterada.

Puxei o telefone do bolso, dando sinal de que estava realmente partindo. Uma nova chamada não atendida, mas já devia ser a 25º. Na tela, a mesma foto colorida e sorridente, cheia de simpatia e promessas não cumpridas. De cabelos compridos pretos e escorridos que encobriam levemente o rosto, lábios carnudos e vermelhos de batom, os olhos fixos em mim... Mesmo há dois anos, ainda quase uma cópia fiel da que agora estava a pouco mais de dois metros à minha frente.

Também tinha o telefone na mão.

Gelei, paralisado.

Ela sorriu.

Vá saber o que significava isso.

Se aproximou na minha escuridão, pegou as duas pontas da echarpe com os dedos finos e me puxou levemente para frente, apoiando-se apenas no meu peito e no seu pé esquerdo.

Subitamente, um facho de luz foi jogado sobre nós.

Lembrei do meu avô.

Grande cara.

Marcio Reinecken é jornalista e escritor, autor do livro de contos Você está aqui ou não está em lugar nenhum. Vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Iuri de Sá