Em Busca de Curitiba - Luiz Felipe Leprevost

Dias Nublados

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Visor do celular, a mensagem do Tadeu: às 10, no meu escritório. Não existe lua quando olho pela janela do apartamento. Na rua, ao longe, alarmes disparam, o vento lambe santinhos de publicidade no asfalto. A madrugada não é generosa com nosso sono. A chuva alaga a cidade. Minha memória afogada. Passaram-se anos, tudo o que tenho são borrões de rostos que acreditei ter visto dias seguidos no café da manhã. Vó Bia vinha e antes de se servir servia a todos. Minha mãe colocava um pouco de leite na xícara dela, da tia Ruth e na do meu pai. Vô Breno já tinha se servido e no momento brigava com a manteiga, dura demais para passar no pão. Surgíamos nós vestidos com o uniforme da escola. Ao fim do café, Manoela levantava e ia rápido escovar os dentes, pegava suas coisas e tentava ajudar um pouco Elza lavar a louça enquanto nos esperava. A gente levantava e também ia escovar os dentes. Camilo era o primeiro a ficar pronto. Encostava-se na porta da cozinha e ficava assistindo a arrumação. A luz da manhã em cheio em seu rosto. Seus olhos claros ficavam ainda mais translúcidos e lhe davam o ar de um raro ser angelical. Vó Bia, uma espécie de prece, não completamente inaudível, um farelo de som, movia os lábios. A voz sibilante, o cabelo cinza, magras mãos, a pele solta do tríceps, as pernas varizes prestes a arrebentar. Os chinelos ao lado da cadeira, no quarto. Deus cuida de tudo, ela dizia e ia perdendo os dentes nos intervalos de seus porca miséria. Os ausentes são o impossível. Quando criança, eu achava que sussurrando uma canção bonita a gente podia falar com Deus. A ausência é modo mais eficaz que Deus tem para provar que não existe. Toda noite volto trazendo uma sacolinha com filmes e algum livro na mochila. Fico lendo na cama, em voz alta, a distrair a insônia. Peço uma pizza, não toco nela. Folheio revistas. Livros comprados em sebos dividem espaço com latas de suco e embalagens de comida pretensamente saudável. Quando é tarde e finalmente estou faminto, o queijo parece um chiclete salgado. Posso lavar a louça outra hora. Lá fora, escuto o ônibus madrugueiro. Buzinas, para que não esqueçamos onde estamos. Moro no oitavo andar. Nunca sei se está sendo uma noite difícil. O que tenho para hoje, dentes a escovar. Minha escova não é das mais macias. Onde os cachorros da vizinhança? Cansaram? Abro a janela. O ar é frio e no céu estão entediados anjos da guarda. Vem entrando a madrugada. Gatos miam nos becos, ninguém dá por eles. E estes gatos que ouvimos chorar de madrugada são a reencarnação de crianças mortas prematuramente. Estará Camilo entre elas? Chovia naquela manhã. Camilo inventou de adiantar um serviço para meu pai, chegou antes do restante do pessoal. A serra elétrica mastigou seu corpo. Não sei como aconteceu. Ninguém jamais saberá. A assassina serra circular cortou o braço. Entrou pelas costelas, chegando ao abdômen. Rompeu a alça intestinal. Atingiu o pâncreas. A dor e a hemorragia mataram Camilo em minutos, nada pode ser feito. Vejo ainda seu corpo destroçado sendo carregado para a caminhonete, com seu velho pulôver azul, feito por vó Bia. Foi aquele um dia nublado. Tadeu quem logo virou o braço direito de meu pai e depois passou a dirigir a fabriqueta de móveis. Depois que Camilo partiu, tia Ruth entrava naquela espécie de transe de quem está fisicamente presente mas com a cabeça a flutuar no espaço vazio. Deixo a janela aberta. Volto para o sofá, vivo nesta nave vermelha pilotando a televisão, ora roncando baixo. Tenho de ir ao banco para as contas de água, luz, gás. Não terei como fazer isso amanhã. Raspo a unha no visor do celular, a vibração da mensagem: às 10h, no meu escritório. Estou dormindo sentado, igualzinho o vô Breno nas tardes de sábado. A urgência não tem escolhas, por isso é burra. E eu? Sou como os pombos da Praça Osório tateando o chão.

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(...)
Morávamos desde que me conhecia por gente nesta chácara, sitiada na mais remota rua do bairro. Onde acabava, ali era o início da propriedade. Chegava-se pela estradinha de quinhentos metros de terra, cercada por enormes araucárias que, aos poucos, foram sumindo como se uma a uma ao longo dos anos houvessem fugido. E a casa iluminada, mais larga que comprida. Paredes espessas a conduzir aos aposentos por reentrantes corredores. O ir e vir dos familiares sobre o assoalho. A chácara, um dos últimos bens restantes do espólio de nossa família. A casa da minha infância: abacate, mimosa, mamão e outras luas apodrecendo na fruteira. Damasco e castanhas nos potes pintados à mão por minha avó. Gostaria de ficar com ela, mas coitado de mim, quase não tenho dinheiro suficiente para o aluguel do meu apartamento. Ao menos se Tadeu, o rico da família, comprasse a propriedade, mas não pode sequer ouvir falar do, como ele mesmo chama, elefante branco. Não o culpo, deve viver com a cabeça cheia. A velha chácara não interessa aos seus projetos. Estou aqui em Santa para assinar a escritura para os novos proprietários. Ando até a nossa velha rua sem saída, quase não a reconheço com seu asfalto novo, ainda molhado pelo orvalho da manhã. Eis o portão. Vô Breno teve o AVC aqui, fazendo reparos nas dobradiças. Elza o encontrou, já estava morto. Depois das missas à noite, Camilo pulava a cerca, segurava o Bona e abria este portão. O carro passava e ele voltava a fechar sem cadeado nem nada. Então, Bona e ele corriam pela estradinha atrás do carro. Minha mãe abria a porta da casa, acendia a luz, a gente entrava, a sala fria e um depois do outro ao banheiro. Só meu pai que não, ele gostava de fazer no limoeiro do quintal bem em frente à varanda. Voltávamos e tia Ruth 


lavaram as mãos? 


sim, tia. 


Mas a gente nem tinha lavado. Então ela distribuía pedaços de nega maluca para cada um. Enquanto isso vó Bia tinha colocado a água do café para ferver. E os adultos o tomavam conversando ao redor da mesa da cozinha, junto, pão com manteiga. Entro na chácara. Circulo a antiga sala de estar. Tudo tão bem cuidado, intacto. O som rangente das tábuas. E a sala ao lado. Minha mãe a me levar no embalo de cantigas de ninar. Também aqui a gente ficava de castigo por causa de alguma mal-criação. Mesmo que faça um esforço mental para rememorar e preencher os cômodos com os velhos móveis, nada me vem nitidamente à memória. Paredes lisas e brancas, tão bem pintadas, são já pré-escombros. Os quadros, onde? Nalgum antiquário, doados por tia Ruth ao longo dos últimos anos. O cuco que eles trouxeram da viagem à Buenos Aires. E vó Bia sentada à luz do abajur remendando pulôveres com enormes e coloridas agulhas, que a gente usava para a esgrima, ignorando tia Ruth com seus


parem já com a brincadeira, vão furar o olho um do outro. 


Vô Breno está deitado no sofá, a cabeça descansando sobre uma almofada encardida, dorme fundo num poço com águas pretas e paradas. Sequer parece respirar. Só agora, tanto tempo depois de sua morte, me aproximo devagar e o olho, tão bem quando um míope sem suas lentes. Nada sinto em relação a isso. Sombras e luzes descem pelas frestas das janelas, venezianas entreabertas. A voz de vó Bia 


vá vestir um agasalho que o sereno. 


Nem mesmo posso crer em almas miseráveis, vejo as coisas como sendo inanimadas. Antes as madeiras do assoalho fizessem algum tumulto, mas estarão eternamente estanques. Nem mesmo a hostilidade da casa por mim. Apenas olho um pouco para as pessoas da família. Faço um esforço para reter qualquer coisa de suas feições e gestos. Minha mãe fitando de soslaio as botas sujas de lama de meu pai à porta. Ele, cigarro aceso pendendo da boca.

E a boca, grande, sorrindo para vô Breno que dorme no sofá. E é só por aí que posso ouvir e ver os mortos. Os fantasmas se apegam aos lugares mais do que nós. Mas não há fantasmas aqui, eles não existem porque os familiares já não existem. O tempo mata os vivos e mata os mortos nos vivos. O tempo são os primos por ladeiras com seus carrinhos de rolamento. O tempo, rodas de aço a girar em torno de si mesmo. O tempo, poeira e pernilongos. A casa prestes a ser definitivamente varrida de nossa família por compradores que são só seu interesse comercial. Se não vendêssemos, acabaríamos por colher detritos. Não houve bancarrota do lugar, apenas o fomos esvaziando aos poucos. O tempo, sua ferocidade não vem à jato, inspiramos fundo e ainda não nos faltam escolhas. Podemos até ter pressa, mas não nos ultrapassaremos. De um jeito ou de outro, em certa altura a vida congestiona feito um nariz constipado, isso é que é. Primeiro, minha mãe. Depois não sei, a vó ou o vô. E aí meu pai. Nos velórios, o cheiro de Leite de Rosas. Sobraram tia Ruth e Elza. Então Tadeu colocou tia Ruth no apartamento do Champagnat e deu uma casinha aqui mesmo em Santa Felicidade para Elza viver a velhice, e foi fazer sua especialização nos EUA. Era a disposição interna dos móveis, a mesa redonda na cozinha, os armários, a cristaleira, o cuco pendurado, a biblioteca, que nos obrigavam o vínculo. Aqui está a mesma luz da manhã que invadia os quartos. E tia Ruth gesticulando nervosa, como sempre, a falar sem pausa, pedindo que meu pai apagasse aquela porcaria no cinzeiro. As vozes são vapores. Da cozinha, os barulhos de Elza ao fogão, com as panelas. No quintal, Bona a latir. Vô Breno nos mandando tomar banho, escovar os dentes, vestir o pijame para assistir na tv um farvestão com ele, e Camilo assim a descobrir o amor pelos cavalos. Enquanto os homens guerreavam, os cavalos pareciam bailar alheios a si próprios, entregues à própria sorte na ignorância do combate.



Luiz Felipe Leprevost é músico e escritor, autor dos livros Tornozelos deitados e Cecília roendo as unhas. O texto publicado aqui faz parte da novela Dias nublados, que integra a Coleção Osório, da Editora Arte & Letra, a ser lançada no segundo semestre de 2013. Leprevost vive em Curitiba (PR).

Ilustração: Benett