Editorial - Cândido 68

Um refúgio no mundo

Bibliotecas são importantes. Esta breve frase — apenas três palavras — parece ingênua e desnecessária. Sim, para quem vive o dia a dia de uma instituição que chega aos 160 anos é mais do que desnecessária. É até banal. Risível, diria Milan Kundera. Sabemos da importância e relevância da Biblioteca Pública do Paraná (BPP) para milhares de pessoas todos os dias. Mas é preciso refor- çar algo que, para nós, é óbvio e cristalino: as bibliotecas são imprescindíveis na vida cotidiana das comunidades.

Ao ler Fantasmas na biblioteca, uma apaixonada defesa dos livros e da literatura feita pelo francês Jacques Bonnet, é impossível deixar de refletir, não sobre os fantasmas propostos pelo autor — aqueles seres que habitam as milhares de histórias nas obras que compõem as bibliotecas mundo afora —, mas a respeito das assombrações que ainda rondam praticamente todas as bibliotecas públicas no Brasil. E vêm fantasiadas de pavorosos estigmas. Os mais comuns: “biblioteca é lugar só de silêncio”; “biblioteca é espaço apenas de estudo”; “bibliotecas são chatas”; “bibliotecas estão com os dias contados com tanta tecnologia à disposição”; “ninguém mais vai às bibliotecas”. A lista é longa e tristemente equivocada.

Não é nada disso. Talvez estes lugares-comuns se encaixem àquelas bibliotecas que pararam no tempo e, infelizmente, servem apenas como depósitos de livros. Estas estão condenadas à irrelevância. Não é o caso da BPP. O vigor e a criatividade sempre estiveram presentes nesta instituição que se projeta ao passado e ao futuro, num movimento constante ao lado da história sociocultural do Paraná e do Brasil.

Um olhar, por mais ligeiro que seja, comprova os caminhos possíveis para destruir estigmas e preconceitos. Uma biblioteca moderna precisa ir muito além dos livros. É claro que os livros sempre serão a alma de qualquer biblioteca. Sem eles, nada é possível. Mas é a partir deste objeto “antiquado” que construímos um projeto para o futuro. As bibliotecas são feitas de silêncio, mas também têm espaço para a mú- sica, o teatro, a contação de histórias, a dança, o cinema. Uma biblioteca é uma estrada segura rumo ao infinito.

Com esta ideia, nasceram na BPP inúmeros projetos (e esta edição do Cândido mostra alguns deles) que fazem desta biblioteca um espaço moderno e voltado à multiplicidade. Inclusive, o Cândido e suas edições mensais há mais de cinco anos são apenas uma prova concreta disso. Uma biblioteca multiplica ideias, espalha oportunidades e dilata a consciência do mundo.

Pelos quase 9 mil metros quadrados do prédio cravado no centro de Curitiba passam diariamente cerca de 3 mil pessoas. Neste movimento, similar à população de algumas pequenas cidades brasileiras, constrói-se um ambiente de afeto.

 Foi-se o tempo em que estantes, muitas vezes empoeiradas, ficavam aguardando apenas uma mão em busca de um livro. Os livros — estes seres que nos humanizam — estão lá à espera do leitor. No entanto, é a partir do contato com a leitura, seja ela lúdica ou pragmática, que as bibliotecas precisam ampliar-se na busca de atender demandas diversas. Do filme clássico ao rap, da oficina de restauro à peça de teatro, da dança aos jogos de RPG, tudo é possível neste espaço acolhedor e generoso.

Esta biblioteca, considerada umas das principais do país, prepara-se agora para novas aventuras. O processo de reforma, iniciado no final de 2016, proporcionará um espaço ainda mais agradável e possibilitará a cria- ção de projetos. Em breve, no renovado auditório, iniciaremos sessões diá- rias de cinema. E muitas novidades estão previstas. A modernização é um passo decisivo na trajetória desta instituição que preserva a memória e a história do Paraná. Acreditamos que ao reformar uma biblioteca, estamos ajudando no fortalecimento da cidadania, abrindo novas oportunidades, oferecendo um refúgio neste mundo tão agitado e apressado e, muitas vezes, arredio ao silêncio e à contemplação. Mesmo no centro de Curitiba, com a correria natural das grandes cidades, a BPP aproxima-se do paraí- so sonhado por Borges na clássica frase: “Sempre imaginei o paraíso como uma espécie de biblioteca”.

Talvez uma biblioteca não seja um paraíso (este território idílico e perfeito), mas é seguramente um refúgio a todos que buscam se interrogar sobre si mesmo e sobre o mundo que nos rodeia. Como diz a poeta polonesa Wislawa Szymborska: “O abismo não nos divide. O abismo nos cerca”. E para tentar entender este abismo, nada melhor que percorrer os corredores e estantes de uma biblioteca.


Rogério Pereira, jornalista e escritor, é diretor da Biblioteca Pública do Paraná desde janeiro de 2011.