Editorial

A literatura, costuma-se dizer, é espelho do mundo. Mais que isso, os escritores costumam antecipar ideias, tendências e concepções — das ciências e de outras áreas. Por muitos anos, os leitores encontraram nas páginas de obras literárias heróis, ou mesmo anti-heróis: de Quixote, concebido por Miguel de Cervantes no século XVII, até o século XIX, há uma galeria de personagens que praticamente se materializavam diante dos leitores: Conselheiro Acácio, de Eça de Queiroz; Capitu, de Machado de Assis e Ema Bovary, de Gustave Flaubert.

E agora, no século XXI? Quem são os personagens representativos da literatura?

A reportagem do Cândido consultou especialistas para tentar responder a questão. Mirhiane Mendes de Abreu, professora da Unifesp, afirma que na contemporaneidade não há mais espaço para “fortes personagens”. A afirmação encontra ressonância entre outros estudiosos, por exemplo, na argumentação de Ana Cláudia Viegas, professora da UERJ, para quem a ausência ou rarefação dos personagens é um sintoma das configurações contemporâneas da subjetividade.

O escritor Luiz Antonio de Assis Brasil pega carona nesse discurso e observa que, atualmente, há diversos personagens, muitos dos quais não nomeados, que executam ações aparentemente triviais: “É o gari que varre a rua, o motoboy numa fila de banco, é a professora que vara madrugadas corrigindo provas, é o soldado que tira guarda ao sol. Enfim, não há ações ‘grandiosas’, ao estilo antigo; se as houvesse, o leitor desconfiaria. Não se trata de incapacidade dos escritores, até porque os escritores não poderiam, coletivamente, perder uma habilidade conquistada há séculos”, garante Assis Brasil.

Já o professor da Universidade Federal de Pernambuco Anco Tenório Vieira chama atenção para o fato de que personagens marcantes são aqueles que se transformam em adjetivos. “Daí porque nos referimos a uma dada personagem como quixotesca, macunaímica, acaciana”, afirma Vieira, referindo-se a Dom Quixote (de Miguel de Cervantes), Macunaíma (de Mário de Andrade) e Conselheiro Acácio (de Eça de Queiroz).

E, para arrematar, o pesquisador da UFPE ainda afirma não lembrar de nenhuma obra ou personagem, de autoria de brasileiros e estrangeiros, nos últimos 20 anos, que tenha deixado de ser apenas um personagem literário para ter se transformado em um adjetivo, em um traço de caráter que defina uma pessoa ou um certo fenômeno.

O assunto é complexo e polêmico e está analisado, em detalhes, nesta edição.

Boa leitura!