Dois poemas de Mário Bortolotto

Homem parado no meio da estrada

Naquelas faixas centrais. Um incêndio que ficou pra trás. Como aquelas mesas giratórias de restaurantes que nunca saem do lugar. A verdade é que você pode em um dia ser uma espécie de “rei do mundo” ou qualquer bobagem do tipo, pode beber do melhor whisky e comer uma atriz pornô. Tanto faz. No dia seguinte você pode estar frágil e dependendo de alguém que te tire do incêndio, que coce suas costas e te consiga um cobertor numa noite fria. A fragilidade te encontra quando você menos espera e você se sente desprotegido e sozinho. Ninguém é o mesmo depois de levar três tiros no peito. Não há como bancar o fodão tempo integral. Nós apenas respiramos antes da próxima porrada que vai nos jogar no meio do asfalto. São os momentos de dor que forjam um homem. A porra dos momentos felizes são apenas paliativos para o pior que há de vir. Para toda brutalidade que há de vir. E aí você sabe que na verdade nada mesmo tem muita importância: acordos de amizade, batismos de sangue, pedidos de casamento. Ou você não sabe que no final é você solitário olhando pra um teto de um hospital ou de uma cova rasa? Tem um tempo na vida de um homem que ele deixa de acreditar. É simplesmente assim. Você acorda de manhã ainda com aquele hálito de whisky capaz de embaçar o espelho do banheiro, olha pra sua imagem maltratada e simplesmente murmura conformado: “Idiota. Pobre idiota”. Porque é o medo que controla nossas atitudes. Vivemos com medo o tempo todo. Você pode achar que é mesmo o “rei do mundo”, beber apenas cerveja importada e se gabar que comeu a última capa da Playboy. No final, você vai ser apenas um sujeito se cagando de medo, no fundo de um beco escuro ou numa cobertura com oito brutamontes muito bem pagos na sua porta. Você escapa de Alcatraz, mas não escapa do medo no seu coração. Ou você não sabe que é o medo que faz você agir de maneira despropositada?

No final de tudo você ainda vai ouvir aquele gospel tocando na sua cabeça e você vai ser babaca e pretensioso o suficiente pra imaginar que apesar de tudo você é o “rei do mundo”, porque você abastece o seu nariz com a droga mais pura e é casado com a garota mais doce. Porque vou te dizer: Não é a saudade que faz você ficar olhando fotos antigas. É o medo que te coloca na beira do abismo. É o medo que faz os seus olhos se encherem de indesejadas lágrimas. É esse piano triste que tá tocando na sua cabeça nesse momento.

Um homem parado no meio da estrada sem saber pra onde ir está sempre um passo à frente. Porque ele sabe que no momento em que decidir, ninguém poderá pará-lo.

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Chuva de peixes

“Eu só não me acostumo com sua ausência”
Eu disse pra ela com meio pedaço de pizza na boca
Ela se lambuzava de bolo de chocolate e pareceu não entender
“Eu me acostumo com os dias claros, com restaurantes japoneses e até com a ideia de que o bar que eu frequento não tem Heineken”
Ela pareceu entender menos ainda
Então fiz pra ela um desenho de um rio muito límpido
com um gato se debatendo pra não morrer afogado
“É assim que você se sente?”, ela perguntou
“Não desenho bem como você”, foi o que eu disse à ela
que me beijou de um jeito doce enquanto abria as pernas devagar
Bill “Bojangles” Robinson era o seu salto alto batendo na mesa
fazendo uma percussão maluca para o Lynyrd que tava tocando
Então eu pensei “é tarde demais pra eu voltar atrás”
“você reparou que eu cortei o meu cabelo chanell? Li em algum texto seu que você gostava”
“ficou bonito”, falei pra ela
e me senti culpado por sentir vontade de rir naquele momento
não tinha nada a ver com o que ela falou
é que eu lembrei de uma besteira que uma cartomante me disse
algo relacionado à garotas de cabelos chanell
Quando eu tava na pia do banheiro
eu a vi pelo espelho, parada na porta, nua
e então ela falou:
“Agora eu sei por que você só vai à praia em dias de chuva”
Eu fui embora e quando parei pra admirar o luminoso da luck strike
fiquei pensando que as pessoas não conhecem as outras de fato

ilustrações: Lalan Bessoni

Mário Bortolotto nasceu em Londrina (PR). É escritor, ator e vocalista das bandas Saco de Ratos, Tempo Instável e Roberto Embriagado. Além de vários livros de textos de teatro, contos e romances, publicou dois livros de poemas: Para os inocentes que ficaram em casa e Um bom lugar pra morrer. Os dois poemas publicados nesta edição do Cândido fazem parte do próximo livro de poemas de Bortolotto, que deve ser lançado ainda em 2015. Vive em São Paulo (SP).