Crônica | Lima Barreto

Academia Comercial

Esta crônica integra o livro Sátiras & outras subversões, que traz textos de Lima Barreto publicados sob pseudônimo e que permaneceram desconhecidos dos leitores por mais de um século

ilustra lima


Alguns homens de boa vontade resolveram fundar nesta cidade um alto estabelecimento de instrução comercial. É intuito deles banir do seu ensino todo o pedantismo, todo o luxo teórico; fazê-lo prático, moderno, à americana. De tal modo o querem que, ao fim de um curso de pequena duração, o aluno poderá, sem dificuldades e hesitações, colocar-se à testa em uma loja, gerindo-a com o desembaraço e a segurança de um velho negociante com vinte anos de prática.

Além de negociantes propriamente, a academia visa sobretudo formar magníficos caixeiros, caixeiros magnéticos, com virtudes de ímã, capazes de solicitar, de empolgar, de atrair a freguesia. O curso elementar, destinado ao pequeno comércio, a retalho, fixo e ambulante, foi organizado sob tais bases, com uma felicidade de pasmar.

A academia não ficará instalada num enorme edifício, grandioso e inútil para os fins a que se destina, e sobremodo favorável à criação de um espírito de escola, de camaradagem, indigno da luta comercial. As aulas funcionarão em pequenas casas situadas nas regiões da cidade em que atualmente mais florescem os gêneros de comércio que pretenderem ensinar.

Conversando com um dos iniciadores, tive ocasião de receber a confidência da metodologia própria do estabelecimento.

Na rua da Alfândega, entre Núncio e São Jorge, será estabelecido o curso de venda ambulante de fósforos. A aula ficará a cargo de um velho turco, afeito ao negócio, cujas calças curtas, rendadas nas extremidades, beijando os canos das botinas muito grandes, permitem que se veja um belo pedaço das suas canelas felpudas. Possuidor de voz roufenha e lenta, mas penetrante e persuasiva, toda a manhã o venerável catedrático, no centro dos jovens discípulos, marcando o ritmo com uma varinha auxiliar, fá-los-á repetir uma, duas, mil vezes: — Fofo barato! Fofo barato! Duas caixa um tostão!

Este curso durará seis meses, dando direito a um atestado de frequência.

A aula de jornalismo (venda de jornal) será dada em frente ao Jornal do Brasil, de madrugada, e admitirá um número restrito de alunos, portadores de atestados valiosos de que sabem tomar o bonde andando. Os cocheiros e recebedores de bonde e os baleiros são pessoas idôneas para passar o atestado.

A aula de frege, cuja sede deverá ser no largo da Sé, ficará dividida em duas partes: cantata da lista e encomenda do prato à cozinha.

Os discípulos serão obrigados a repetir, em coro e na toada de uso, todo um imaginário e pantagruélico menu: carne-seca desfiada, bacalhau à portuguesa, arroz com repolho etc, etc.

O lente, um gordo e aposentado proprietário de uma casa de pasto da rua da Misericórdia, sentado a uma mesinha, com uma toalha eloquentemente imunda, dirá subitamente:
— Traga um arroz e um bacalhau, seu Manoel!
O discípulo correrá até o fundo da sala e, com a voz clássica, gritará:
— Salta um chim e um bacalhau!
O tirocínio acadêmico durará um ano, conferindo o título de bacharel em lista cantada e dando direito a um anel simbólico.
Afora estes, haverá o curso de barbeiro, de café, de engraxate e outros; o mais difícil, porém, há de ser o armarinho, cuja aula funcionará nas proximidades da rua do Ouvidor, numa grande sala, guarnecida de assentos em anfiteatro, como nas grandes escolas.
Alguma dama facilmente adaptável figurará como freguesa atendida pelo professor, que perpetrará os lânguidos olhares de uso nesse comércio, ajudando-a na escolha das fazendas, cortando o padrão com elegância e dizendo frases amáveis e espirituosas: Em si, toda a fazenda vai bem; quem quer cassa, caça.
Durará dois anos, este curso, e conferirá o grau de doutor em artigos de armarinho e boas maneiras.
Semanalmente, ao jeito de conferências, haverá duas aulas gerais, cuja frequência será obrigatória aos alunos de todos os cursos: a de dança e a de literatura.
Desta última, dizem, vai ser encarregado o sr. João do Rio. Nas suas linhas gerais, eis aí como vai ser a nova Academia Comercial. 

 
Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu e morreu no Rio de Janeiro (1881 – 1922). É um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. Foi colaborador de diversos jornais e revistas de sua época, onde publicou grande parte de sua produção literária. É autor dos célebres romances Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) e Triste fim de Policarpo Quaresma (1911).