Contos | Sidney Rocha

O compositor

Até mesmo Palestrina o considerava um mestre. Lyon ficava em silêncio quando Goudimel iniciava os seus trabalhos de composição, nas longas manhãs de primavera. Algumas vezes, quando o músico interrompia a ciclo natural da noite para compor, era comum os pais de família abrirem as janelas e portas para Deus entrar, de dentro do cravo e do violino de Claude Goudimel, mesmo se os esgotos de granito soprassem das ruas um miasma de gordura para dentro das casas e proibisse as crianças de respirar.

Ainda assim, Goudimel pediu licença aos senhores. Era como pedir permissão para entrar na sua própria casa, mas aquilo era menor. Sua intenção era outra.

Naquela tarde, ele empurrou a porta dos aposentos do bispo de Lyon, como sempre fizera. Claude era um homem esguio, os gestos estavam o tempo inteiro abraçando o ar e a impressão era de que o vento ia carregá-lo a qualquer instante.

Já o bispo, só o convite do cozinheiro o movia. Era um compositor medíocre e ele e Goudimel eram amigos de infância. Ele o desencorajava nos seus estudos musicais avançados, não era necessário misturar tantos estilos, a música para Deus é única e simples, largue essas amizades, coisas que deixavam Goudimel irritado, sobretudo quando o bispo lhe cobrava confissões, a despeito do artista ter abandonado o catolicismo em Melt, todos sabiam.

— Escute isso — disse o compositor ao bispo, ainda deitado.

Eram seis horas quando tocou o salmo. 

Claude o havia composto na manhã daquele sábado.

— Ele dará fim às guerras religiosas na França, disse Claude.

Por isso era preciso levá-la de imediato ao papa, aos reis, a Calvino, à rainha louca.

O bispo não conseguia se mover agora por mais nada: a música provocava revoluções e variações de ânimo tão impressionantes a ponto de redefinir sua alma um tanto herege... dava para ouvir os cavalos dos vinte mil carros de Deus, depois a manada de touros de ouro, em seguida a melodia se deixava conduzir por donzelas tocando adufes até tudo carregar o espírito para o interior de cavernas onde reina a música de pequenas estalactites de silêncios construindo do acaso Davis de pedra. Ah, o bispo precisava de ar, eram tão várias as maravilhas, a terra se abalando, os céus se destilando...

Então, o bispo de Lyon agarrou o braço do Claude com força, porém a mão foi perdendo a firmeza para enlanguescer num gesto de abandono e frigidez.

Claude só notou o velho ferido de morte quando o ouviu murmurar:

— Ironia das ironias, Senhor. Morro ao lado de um calvinista. Mas agora já é tarde. Fuja, Claude, meu filho.

Não daria tempo, no pátio os homens acertariam um tiro de arcabuz no compositor. O atirador saiu da nuvem de pólvora, retirou o pequeno punhal e marcou um traço no cabo da arma. Seriam setenta mil marcas naquela noite de São Bartolomeu.

Aquela música, se Deus a ouviu, guardou-a no fundo da alma do bispo moribundo de Lyon.

   Ilustrações: Felipe Rodrigues
o compositor



O secretário

O quarto tem o piso de mármore. As pedras são enormes placas brancas e pretas, espelhos que não permitiriam a uma senhora andar sobre ele sem anáguas e longos, e mesmo assim a passos muito curtos. O piso é um tabuleiro onde são comuns os enxadrismos do bem contra o mal. Não se pode permanecer nele sem a sensação de, a qualquer momento, sermos esmagados pelo L final de um cavalo gigante, a varredura transversa de um bispo, ou soterrados por uma das torres.

Estamos falando de um ambiente de cento e doze metros quadrados, as medidas foram inspiradas nas escalas da própria Jerusalém, muito embora estejamos agora no Vaticano, no quarto mais elevado da Catedral de São Pedro.

As cortinas deixam passar alguma luz, mas não se pode dizer que qualquer coisa ali seja natural. Ora, o sol é natural, você dirá, mas há um plano ali, um plano muito bem esquadrinhado e seguro, seguido das Matinas às Completas, para se iniciar com a troca de guardas no dia seguinte.

O sol. Ele aninhou-se ali numa poça, ao canto esquerdo da cama onde o homem dormia e sonhava em várias línguas. O sol preferiu permanecer ali, o silêncio de Roma, o sol aquecendo com sua bondade o cão empalhado ao lado da cama, o longo pálio serpenteando sobre os sapatos vermelhos, esperando o fim dos tempos.

O homem deixou o peito fugir do camisolão branco e dourado e as peles formam uma grande bolsa arreada sobre o ventre, mas essa teta não podem vê-la, nem à outra, claro, quando ele sai sob a proteção dos trinta e três botões da bata, sob a estola cor de vinho resplendendo também dourada, e ainda mais a mozeta sobre os ombros miúdos.

Está deitado e não se move. O secretário polonês tinha servido como médico na guerra, e o considerava um irmão. Entrou no quarto e, como autômato, retirou a pistola dourada da mão esquerda do velho amigo pela última vez. Em tentativas anteriores, tinham rolado pelo tabuleiro do quarto derrubando as peças, sob o perigo de se ferirem de morte, com direito a todo o ridículo de uma luta de duas crianças. Mas ao fim o secretário vencia sempre, e depois, ainda extenuados, ainda no chão espelhado da Jerusalém particular, sorriam daquilo como dois velhinhos.

Mas naquela derradeira vez, via como o demônio entrou pelo furinho minúsculo e não admitiria que ele causasse ali dentro prejuízos maiores aqui fora.

Depois cuidou dele como legista devoto e tratou de vestir o amigo com uma estola branca. Contemplou ali as doze pedras preciosas engastadas em ouro, retirou debaixo da cama o báculo, confortou-o ao lado do dono, retirou algumas fotos para chorar sobre elas depois e, usando todas as prerrogativas de secretário-geral, resolveu chamar os outros e ordenar a inviolabilidade do corpo para exames. Depois, anunciou que ali vencera o câncer, a falência da carne, como era de se esperar.

A outra vez que viu o amigo foi para colocar a mitra costurada a pontos de ouro sobre o ataúde de carvalho e bdélio, à cruz de ônix. Depois sentou-se e com todos os outros orou vários dias ao lado do caixão. Foi quando notou as pontas da mitra insistirem em se dobrar, recusando o céu da catedral, mas ficou calado quanto a este detalhe também.


Sidney Rocha nasceu em 1965, em Juazeiro do Norte (CE), e mora no Recife (PE). É autor dos livros de contos Matriuska (2009), O destino das metáforas (2011, vendedor do Prêmio Jabuti) e Guerra de ninguém (2015). Também escreveu os romances Sofia (2014, vencedor do Prêmio Osman Lins) e Fernanflor (2015).