Contos | Marco Polo Guimarães

BALA DOIDA


Foi um, foi dois. Não sei de onde veio o tiro, os sons. Me enfiei por debaixo do asfalto. Na esquina, o sol brilhou vermelho no peito da moça. Quando caiu foi um silêncio.
Não senhor, não sei o que vi. Havia muita silhueta correndo.
Depois de um tempo, não sei que tempo meu senhor, me levantei. Devagarinho: meu olhar estava torto. Nem sabia se estava de pé ou mei de banda.
O povo, o povo gosta de ver gente morta, o povo cercava a moça. Os carros paravam para olhar, lá atrás subiu um barulho de buzina.
Logo na frente tinha um bar. Pedi alguma coisa pra acordar por dentro. Só aí que comecei a me lembrar. A moça vinha andando. Do outro lado da rua. Toda de branco, feito na música.
O homem vinha pelo lado de cá, todo de terno cinza. De repente o cara pulou na frente. Gorro de tricô vermelho, bermudão, três oitão na mão. O homem nem deixou ele falar e se atracou. Os dois executaram uns passos de balé, pra cá e pra lá, tão rápido que parecia em câmara lenta. De repente o pipoco. Um, dois? Não sei senhor, na verdade nem vi.
O homem, que estava de pé, deu meia volta e sumiu correndo. O magrela, que tinha caído no chão, saltou de mola e sumiu pro outro lado.
Não vi nada não senhor. Não ouvi nada não senhor. Não sei de nada não senhor. A moça está lá. Por que o senhor não vai cuidar dela?

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VOCAÇÃO


Com três giletes eu posso matar três. Não. Basta uma gilete. Eu posso matar três e até quatro: dois pra cada lado. Com quatro cadáveres eu cego uma gilete? O problema nem é esse. O problema é onde encontrar uma gilete. Será que ainda fabricam gilete?
A gilete era azul e o sangue era vermelho. Com uma gilete na mão, se a pessoa é destra no uso da gilete, dá pra dar um talho no pescoço. Ao contrário do pescoço da galinha, o pescoço do cara é mole. É mole. Com uma gilete é fácil ver se o cara tem sangue azul ou vermelho.
O difícil é encontrar uma gilete. Não uma gilete velha, cega, enferrujada. Uma gilete azul. Azul da cor do mar, como na música.
Eu já tive giletes. Bons tempos. Todo barbeador usava gilete. De repente, sumiram. As giletes e os barbeadores que usavam giletes.
Adaptação. Esta é a palavra.
Se não posso mais usar gilete vou usar o quê? Navalha? A-ha! Essa sumiu antes da gilete, nem vou dizer como era boa, a gente se cortava e era tão fino que a gente só ia saber depois quando tomava banho e o corte ardia. Bons tempos.
Bisturi? Taí! É uma ideia! Basta eu largar esse emprego de manicure e voltar a ser enfermeira. Soluções existem.

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TRÁFEGO


De cima deste ônibus cinquenta e dois anos vos contemplam, retardatários. Vocês perderam o bonde e eu perdi minha jaqueta. É isso que me dá raiva. É isso que enche minha boca dessa gosma nojenta. A insensível injustiça da história.
Essas baratas que atravessam na frente do ônibus quando o sinal está fechado para elas; essas baratas que se aglomeram e se empurram para entrar no ônibus como se a salvação, de quê, meu deus!, dependesse disso; essas baratas que enchem o ônibus com seu fedor de baratas, suas conversas de baratas, seus...
Melhor me conter. Melhor guardar na alma o chinelo cósmico com que eu as espragataria, fazendo com que suas carapaças marrons e brilhantes estourassem para deixar sair a gosma branca nojenta de que é feita suas existências.
Não. Parar. Enxugar esse suor que pinga sem cessar e arde nos olhos. Milhões e milhões de baratas atravessando na frente do ônibus enquanto o sinal está fechado. Onde porra que eu perdi minha jaqueta?

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Marco Polo Guimarães
nasceu e vive no Recife. É jornalista, músico e escritor. Trabalhou em diversos jornais do Recife e no Jornal da Tarde de São Paulo. Foi editor da revista Continente. Como poeta publicou oito livros e duas coletâneas. Como prosador lançou três livros, o mais recente sendo o Autópsia do Bípede, contos, pela Confraria do Vento, do Rio de Janeiro. Gravou o disco Ave Sangria, proibido pela censura da ditadura militar. Tem músicas gravadas por Ney Matogrosso, Elba Ramalho, Zezé Motta, Teca Calazans e outros.

Ilustrações: Guilherme Caldas