Contos | Edyr Augusto

Recorte

Kelly. Diz que veio lá de Ourém mas pra mim é maranhense. Vai ver já é até foló, disse a Irene. Péra lá, Irene, não força. A menina é jeitosa. Periguete, mas aqui vai fazer sucesso. Te mete! O macho dela vive rondando de moto. Distribui crack na João Alfredo. Eu, hein? Tenho mais o que fazer. E eu lá vou me meter!

E lá estava a Kelly. Morena de corpo bem feito. O que fazia na Primeiro de Março? Seus atributos poderiam levá-la a clubes noturnos com público de maior poder aquisitivo. Ali, em breve o corpo estragaria, a mente explodiria e puf, desapareceria. Andava de top e shortinho, mostrando tatuagens, pra lá e pra cá, rebolando. Andava rebolando, mas rápido, parecendo resolver vários assuntos importantes ao mesmo tempo. Batonzinho básico e esse frescor da juventude que ilumina por onde passa. Quantas kellys já passaram por ali? Que o digam a Raimunda, a Maria, Irene, coroas, algumas com casa montada e tudo e clientela seleta. Amor? Amor? Vem cá. Tudo bem? Vamos fazer um amorzinho gostoso? Não, obrigado. Eu sou aí do teatro. Ah, do teatro. Do pessoal que faz cultura, né? E não tem uma vaga pra mim? Não, acho que não, mas de repente, quem sabe, eu te chamo, tá bom? Eu sou a Kelly. Tem certeza que não quer ir ali comigo? Também tenho umas coisas pra vender. Não, obrigado. Tchau. Tchau, amorzinho. 

Riachuelo e Primeiro de Março. A primeira liga duas avenidas importantes, Presidente Vargas à Padre Eutíquio. Mas ali, naquela meiuca da Campina, funcionou uma lendária zona de prostituição. Hoje, acabou. Restam dois ou três bares. Quartinhos imundos. Putas velhas com alguns velhinhos que recebem a aposentadoria e vão pra lá. E de repente, algumas meninas novas, cada vez mais novas, atiradas, ousadas, desafiadoras. Rápido se tornam as donas do pedaço. A Primeiro de Março é a lata de lixo da Presidente Vargas. E há consumo de crack. A Polícia passa, faz revista, mas nunca acha. O Teatro e sua gente são respeitados. Muito. Relação ótima. O público nunca vai correr perigo. Isso é certo. Mas nem sempre a turma se comporta.

                                        Allan Sieber Ilustrações
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Domingo. Tarde da noite. A sessão terminara. Pela Primeiro de Março, uma birosca havia começado vendendo pipoca, Cheetos, refrigerante, sabão, coisas básicas. Agora vendia bebida. Agora tinha som alto. A galera estava mamada. A festa começou desde que o Bento passou no final da manhã, pela Praça da República, tocando merengue. A algazarra perturbou os atores. Fomos lá, na boa e nada. Veio a baratinha, conversou e seguiu na ronda. Kelly dava um show de tecnomelody. O namorado, jogado num canto, apreciava. Apareceu a Rotam. Moradores ligaram. Correria. O motoqueiro se mandou. A birosca não tinha alvará pra nada. Lá vai o dono. A Kelly rebarbou. Encarou. Tu queres me dá-lhe tu me dá-lhe. Agora tu vai pagar se me encostar um dedo. Vamos, me dá-lhe que eu quero ver. Me dá-lhe. O guarda tentou pegar o braço. Levou na cara. Mão aberta. Foi demais. Devolveu. Rolou na calçada suja. Levantou com uma pedra. Veio o Peito de Pombo, de gestos largos quando está bêbado. O perneta, que pede esmola pra fumar crack. Puxaram pelo cabelo. Ela agatanhou. Jogaram na viatura. A Rotam foi e ficou o silêncio. Um olha pro outro. Cada um pro seu canto.

Passaram três, quatro dias. Vejo Kelly botando quente no Bom Paladar, na esquina com a Riachuelo. Rosto inchado. Murros. Na barriga. O namorado libertou. Não contou como. Nem eu sei. Agora tinha uma colega. Deusa. Uma moleca de 14 anos se tanto. Kelly sua heroína. Olhos esgazeados de crack. Top, shortinho e topando todas. Chegou o namorado. Montou na garupa. A moleca também. Saíram rindo e felizes. Poderosos. Fiquei com vontade de ligar pro Ismael. Ele faria uma bela reportagem. Foi bom não ligar. Acabei ganhando a matéria.

A Érica está se desfazendo aos poucos. Foi mais uma Kelly. Branquinha, bonitinha, olhos espertos. Pegou a coisa. Não tem mais cabelo. Um ou dois dentes. Corpo cheio de feridas. O que resta é um humor ácido e inteligente. Fez dois canudos de papel e botava na cabeça, dizendo que a Kelly já era e a dona do pedaço agora era a Deusa. A Deusa? A molequinha de peitinhos salientes, bundinha assanhada e que era aprendiz da Kelly? Essa não. O Ricardão veio e crau! E a risada da Érica? Tinha uma mordacidade feroz. E todo mundo rindo. O perneta se divertia. O Peito de Pombo, também.

Lá vêm as duas. A Kelly arrastava pelo cabelo a Deusa. Tinha uma faca de cozinha em uma das mãos. Havia sangue nas mãos da moleca. Parava onde tinha galera. Agora diz quem é a dona do pedaço. Diz. Quem é dona do homem. Do motoqueiro. Terminou? Pede perdão. Pede. Vamos adiante. Vai nada. O Peito de Pombo se meteu. Tu vais parar com isso agora mesmo. Aqui mesmo. Acabou. Tá doida? Dás ouvido pra qualquer uma? Isso não é contigo, velho. Sai que vai sobrar pra ti. Comigo não. Tu me respeita. Levou facada, mas foi de raspão. Não continuou. A Luana, mulher do Peito de Pombo, se rebarbou. Eles moram na rua. Na esquina. O Peito de Pombo lê jornal, despacha, conversa, trafica também. Ela até atende telefonemas. Mas agora Luana deu-lhe no pé do ouvido. O que é que tu tens com essa piva? Se ela está apanhando é porque merece. Me incomoda a violência. Ah, te incomoda? Tu pensas que eu não ouvi que tu andaste te engraçando pro lado dela? Hein? O Perneta me disse que pediu pra ela o xibiu mas ela deu foi pra ti. E foi esse o pagamento do crack. Cadê o dinheiro? Agora confessa se tu és homem. Diz aí se tu és homem, agora, na frente de todo mundo. Mulher, tu me respeita que eu não sou macho de ser peitado assim na frente da galera. Tu me respeita. Então diz aí, macho de merda. O Peito de Pombo se atacou. Saiu catando colchonete, roupa, sapato, fazendo um monte. A Luana tentou impedir mas levou safanão. Ficou de longe, xingando. O Peito de Pombo tocou fogo. Doido. Tocou fogo, o sacana. E virou pra ela e disse. Tu me respeita. Tu não mexes comigo. Agora tu vais ver. A fogueira cresceu. A Luana se mandou. O Peito de Pombo ficou com os braços parecendo aqueles bonecos de posto de gasolina. Vieram os bombeiros. Risco do fogo atingir a fiação elétrica. Mas não sobrou nada.

A Deusa ficou sem as duas orelhas. Alguém contou. Foi parar na Casa de Transição, depois foi pro... de Menores. E o vício de crack? Sei lá. Naquela noite, o motoqueiro ficou girando por todos os quarteirões entre a Padre Eutíquio e Presidente Vargas, procurando, procurando. De manhã cedo os programas policiais de rádio, o Barra Pesada e a turma do Diário do Pará trabalhando ali perto daquele prédio grande da Importadora, na Carlos Gomes. O perneta contou. Tava na fissura por crack e nessa, o cara faz qualquer coisa. Nem raciocina. Quase não dava pra reconhecer a Kelly. Talvez pela tatuagem de um anjo, no calcanhar. O motoqueiro passava de moto sobre seu corpo quando a Rotam chegou. Eles se atrasaram um pouco. Kelly era a isca da armadilha, mas não deu. TRAFICANTE MATA NAMORADA PASSANDO COM A MOTO SOBRE SEU CORPO. Os repórteres vieram checar algumas informações. O único que quis falar foi o Kiko. Mas o Kiko não tem condições. Não diz coisa com coisa. 

Noélia é o nome, a Irene disse. Aposto que esse cabelo dela é pintado e alisado. Irene, dá um tempo. Tu não dispensas nenhuma? E eu vou lá gostar de concorrência? Irene, tu já passaste dos 60, tens tua clientela, poxa. Mas sabe lá, de repente um boyzinho desses se engraça. E olha que eu sou foló.


Anjo

Eu era moleque e passava todos os dias, pela 3 de Maio, na baixada da Matinha, subindo para as aulas no Vilhena Alves. Ela ficava sentada, esparramada em uma cadeira velha, na calçada, em frente à casa, dona do lugar. Uma imperatriz ciente de seu poder. Os cabelos revoltos, tinham sempre uma ajudante a pentear. O pente deslizava longamente e ela às vezes fechava os olhos, deliciada. Aparecia alguém, ela encarava, ouvia, a ajudante ia lá dentro, voltava, entregava, recebia alguma coisa e retornava à delícia do pente. Delzuite, a rainha da Matinha. Perguntei para a mãe que desconversou. Não te mete por lá ou levas uma surra. Aumentou a curiosidade. Uma vez, Delzuite não estava na porta. Dentro da casa, escura, havia um pequeno caixão. Sei lá. Um ano depois, talvez, outro caixão. A mãe disse que era da fazedora de anjos. Como assim? Passa o tempo. Já tinha 15 anos e saía pela noite, com amigos. Claro que fumávamos maconha, vendida pela Delzuite. Agora eu sabia as restrições da mãe. Não tínhamos dinheiro, fazíamos uma coleta e o fumo passava por todos. Só uma animação, mistério, coisa de rapazes. Uma noite, vinha sozinho. Foi então que a vi. Pele negra, cabelos lisos, até a cintura, encostada na mureta do canal. Fumava e soltava a fumaça em longos sopros. Era Yemanjá, filha de Delzuite, figura lendária na Matinha. Passava as noites por ali, fumando. Os colegas falavam dela como algo inalcançável. O mistério era maior porque ela era a tal “fazedora de anjos”. Engravidava e perdia, todos os anos. Por isso a sua tristeza, melancolia, noite adentro. Fui passando perto, como quem não quer nada, querendo. Ela chamou. Ei, branco. Vem cá. Eu? Hum, pensas que eu já não te vi te abicorando e me olhando? Desculpe, Dona Yemanjá. Que dona, que nada. Para com isso. Tédoidé? Queres me fazer velha? Conversamos a noite inteira. Nunca toquei no assunto dos anjos. Me apaixonei de primeira. Desejo. Sonhava com ela. Vinha andando e ela surgia, nua, negra, os cabelos em brasa e quando tentava ir, aparecia um homem branco, todo de branco e me dizia não vai. Perigo. Acordava excitado, assustado. E passava à noite. Estávamos lá, fumando e chega um homem. Quem é esse? Ela disse que eu era o branco dela. Só pra conversar. Ela fez um sinal, deu um tchau rápido e foi com ele. Fiquei naquela mureta de canal arrasado. Ainda era um moleque. Foi isso o que ela me mostrou. Mas na noite seguinte, voltei. Os colegas faziam graça, invejosos. E eu fazia com que pensassem que me dava bem. Havia até um respeito. Eles tinham namoradas e até nem eram mais virgens. Eu tinha a minha. Yemanjá. Meus sonhos preferidos eram com ela. Não me disse nada sobre o que aconteceu. A barriga começou a crescer. Entendi. Me afastei. Fiquei pelos cantos. Calado. Agredido. Evitava passar por lá. Disse que haví- amos brigado. Estudava para as provas. A mãe comentou achando graça. A fazedora de anjos entregou mais um. Saí correndo. Lá estava o caixão. Não tive coragem de entrar. Vigiei e ela não aparecia na mureta. Apareceu. Fui chegando. Meu branco sumiu?

sieber

É. Estava estudando. Eu sei, eu sei. Estás com quantos anos? Dezesseis em dois meses. Não deu certo? Não. Mais uma vez. Aspirou fundo e soltou a fumaça. Parece uma pssica. Na noite seguinte, cheguei cheio de ideia. Yemanjá, balbuciei, a gente podia casar. Te tirar daqui. Tenho o estágio e logo faço vestibular, tenho emprego. A gente morava no meu quarto, lá com minha mãe. Ela riu amarelo. Casar? Eu e tu, meu branco? Só me faltava mais essa. Eu sonho contigo todas as noites. Muita gente sonha. O meu sonho, ninguém realiza. Quem sabe, comigo? Tu és ainda um moleque, meu branco. Se bem, que... Me olhou de cima a baixo. Tu já estás bem grandinho. Bonitão. Mas deixa pra lá, meu branco. Vai atrás dessas periquitinhas que vivem olhando pra ti. Vamos ficar amigos, como sempre. Engoli. Mas voltei e voltei e voltei. Me aproximei. Ela deixou. Beijei seu pescoço. Seu cangote. Senti aquele cheiro almíscar fortíssimo. Ela amoleceu. Meu branco. Tu sabes onde estás te metendo? Sei. Eu quero. Vem cá. Me levou pela mão até a casa, de madeira, toda torta. Pediu silêncio. Delzuite dormia. Um quartinho. Cheiro de mofo. Suor. Atulhado de roupas. Cama desarrumada. Sentei. Ela tirou a roupa e eu perdi a virgindade. Aquela pele negra, os cabelos, o cheiro do sexo. Mergulhei naquela mulher Amazônia sem passagem de volta. Ela me ensinou, orientou. Suas pernas longas fechavam meu corpo, apertavam como uma boiuna. Sua boca sugava a minha, e seus olhos desvendavam meus pensamentos. Agora, todas as noites, assim. A mãe cobrou. O pai preocupou. As notas caíram. Ela me esperava na mureta. Uma noite Delzuite apareceu. Quem é esse pivete? Meu branco, mãe, não se meta. Me olhou e atravessou minha alma, como quem vê passado, presente e futuro. Deu de ombros e foi. Tu ainda queres casar? To grávida. Eu sentia orgulho de macho, medo do futuro. Meus pais não sabiam. E eu não parei de estar com ela. Estava no cursinho pré-vestibular e vieram me chamar. Ouvia de longe os gritos. Chegou a ambulância. Quem é o pai. Me olhavam assustados. Ela era um mulherão, adulta. Eu era um adolescente metido a adulto. Esperei até que veio a notícia. Um menino. Mas a mãe não suportou. Fez um silêncio estrondoso no meu peito. O amadurecimento de uma vez. O menino ficou com meus pais. Eu no velório. Escuro. O cheiro. As orações, diferentes. Clientes indo e vindo. Quando voltei do enterro, Delzuite me chamou. Ela queria tanto um neném! Me trazes ele, de vez em quando, só pra eu ver? Não conta pra ele, nada dela. Essa vizinhança é muito fofoqueira. Vai viver a tua vida, tu e o meu neto. Mas não esquece dela. Linda ela, não era, ela? Lá se foi, enorme, lenta, atender seus clientes. O menino cresceu, joga futebol com os amigos, moleque de rua. Seu nome é Anjo.


Edyr Augusto nasceu em Belém (PA), em 1954, onde vive. É jornalista, radialista e autor de teatro. Publicou, entre outros livros, as coletâneas de poesia Navio dos cabeludos (1985) e Ávida vida (2011), o livro de contos Um sol para cada um (2008) e os romances Os éguas (1998), Moscow (2001) e Pssica (2015). Sua obra está traduzida na França e nos Estados Unidos.