Contos | Diego Moraes

Pragas do Egito

Tava de bobeira comendo um x-salada e um maluco cola na minha mesa: “paga um lanche aí, irmão”. Rosto todo fodido. Cabelo caindo. Zoadão. Aí puxei 3 contos do bolso e pedi um salgado e um suco pra ele. Ele disse que era missionário. Que rodou a áfrica pregando a palavra de deus e tal. E que traiu a mulher com uma feiticeira no congo. E que essa feiticeira fez um trabalho intitulado “sete pragas do amante ingrato”. E que ainda estava pagando a segunda praga. A primeira fez com que ele andasse feito cachorro por seis meses. “eu latia e mijava como vira-lata em postes. Meus joelhos ficavam todo tempo em carne viva”. Aí ele apontou pra boca e disse assim: “a terceira praga é a dos gafanhotos. Vai sair gafanhotos da minha boca quando eu usar o nome de deus em vão”. Dei minha última dentada no sanduba e disse “melhoras, bicho. Que o senhor tenha misericórdia da tua alma. Que sare tuas feridas”. Atravessei a rua. Entrei no ônibus e vi uma nuvem de gafanhotos em cima do telhado da lanchonete.


Cenas do cotidiano

Eu: Você trouxe Dorflex?
Ela: Não.
Eu: Trouxe sorvete?
Ela: Não.
Eu: Trouxe Playboy?
Ela: Tá em falta. Serve Sexy?
Eu: Quem tá na capa?
Ela: Uma mulher fruta.
Eu: Quem?
Ela: Acho que a Melancia.
Eu: Estão todos lá no bar?
Ela: Estão.
Eu: Todo mundo mesmo?
Ela: O Vasco não vai subir pra série A.
Eu: Não?
Ela: O Palmeiras vai ser campeão.
Ela tira a calcinha. Põe na mesa junto com as compras. Balança os cabelos como se estivesse num comercial de absorvente. Tira a blusa e liga a torneira da pia. Começa a ensaboar a louça cantando Chico.
Eu: Pode cantar outra música?
Ela: Não vou fazer isso.
Eu: PQ?
Ela: Você me contratou para ser sua empregada sexual, não para ser sua mulher. 
Ela rebola pela casa. Lambe os mamilos e diz: “acho bom você parar com essa fixação por ditadura.”
Eu: Cê acha mesmo?
Ela: A vida tá bombando. Todo mundo lutando por um mundo melhor.
Eu: Onde?
Ela: No Facebook.
Levanto do chão, acendo um cigarro e sento na cadeira da escrivaninha. Ligo o computador e escrevo um textão. Fogos soltam lá fora.
Eu: Feliz Ano Novo.
Ela: Feliz Ano Novo, Diego Moraes.
Eu: Posso te falar uma coisa...
Ela: Já sei... Eu sou linda.
Eu: É.


Então tá

Então você escaneia o corpo dela esparramado na cama. Os seios rosados. A buceta lilás. O abajur que ilumina mal as páginas viradas de Borges. A boca com hálito de lagoa Rodrigo de Freitas amanhecida. “Não deu. Às vezes não dá.” E a blusa do flamengo molhada de chuva lá fora e passarinhos que descansam no telhado antes de partirem rumo a frutos em árvores distantes. “Já viu como estão às coisas lá de cima? Viu quando cê foi pra Curitiba? Estão desmatando tudo pra criação de gado.” Então você se ajeita na beira da cama e pensa em outra coisa. No livro foda que terá pra lançar. Fica com medo de sofrer um infarto do nada com as veias entupidas de bistecas gordurosas fritas com margarina com sal e também nas declarações precipitadas que fez pra outra. As lágrimas que derrubou para uma decepção inesperada. Não. Precaução. Não posso enfiar os pés no lugar das mãos. Ainda é cedo. Lembro-me da música chata da Legião Urbana. E de como todas essas incertezas e desejos confusos parecem com as coisas que Renato Russo cantava. É tesão, mal-estar e poesia escrita sem ninguém entender nada em interface cibernética. Um corpo branco. Bege. Um pulmão que fez natação. Braços que nunca seguraram ferro de ônibus e pés que poucas vezes sentiram a umidade da terra ou da cerâmica da casa dos pais. E eu só queria esquecer que já me fodi tantas vezes quando botei nome de mulheres na minha literatura. Que tudo fica mais prático quando acaba em sexo, pó e batidas de portas sem números anotados em agendas de celulares Nokias e Samsungs. Seria melhor mentir. Dizer que gosto de uma atriz drogada da Praça Roosevelt. Que nunca entendi a tabela periódica e acabei virando gay. Não. Ela gosta de rir de coisas sem graça. Eu só quero tirar esse engasgo. Essa ressaca de paixão nova. Esse cheiro de anal, latinhas de Budweiser e perfume francês com fumaça de mentolados. Então acorda. O braço buscando por mim no lençol bordado com florzinhas “cadê você?”, “estou aqui”. Então fico mais perto. Ela sorri de olhos fechados e diz “eu sei que você quer dizer pra mim, mas sente medo”, “o quê?”, “deita aqui do ladinho. Eu já sei que você está apaixonado por mim”.

Balas

— Você acabou comigo.
— Tive que acabar.
— Pq?
— Você me sufoca. Sua presença me angustia. Parece que estou sendo torturada pelo Bope. Sabe quando o Capitão Nascimento pega um favelado e enfia a cabeça do infeliz num saco e fica dando tapas falando um monte de merda? Esse cara é você. 
— Quem? 
— O Capitão Nascimento. Aquele troglodita idolatrado do filme Tropa de elite. Você é uma espécie de Capitão Nascimento sentimental. Você é um coronel inseguro com complexo de corno. 
— Ciúme é demonstração de amor. 
— Não, ciúme é idiotice. Ciúme só é legal nos pagodes do Belo. Dá pra me deixar em paz, por favor? 
— Me dá mais uma chance? 
— Chance de quê? De transformar minha vida num tedioso filme iraniano? 
— Vou ficar aqui. 
— Sai daqui! Vou chamar a polícia. 
— Pode chamar. Falo que você é bipolar. Que sou seu terapeuta. Que sou seu guarda-costas. Que você não pode ficar sozinha. Que você é um perigo para sociedade. 
Alessandra abre um sorriso molhado de lágrimas. Abraça Joca. Pombos debandam da cabeça do único mendigo que fala russo na praça sé. Abraçam-se e caminham em direção ao metrô. Brigariam mais seis vezes antes de chegar à periferia atravessando a madrugada com beijos de zoadas de balas.


Bruxaria

Sou mestre da autoficção. Manjo dos paranauês de misturar autobiografia com ficção, mas juro que o lance que rolou foi real. Minha namorada é mística. Judia. Especialista em cabala, filosofia oculta e o caralho de asas. E ontem bebi com uma figura e iria traí-la. Aí antes de ir pra casa de outra pra cheirar e foder, parei num matagal próximo de um igarapé pra dar uma mijada e um jacaré quase levou minha perna. Ali pertinho do parque do Mindu. Aí fiquei mal pra caralho e minha mina ligou: “Di, vai pra casa! Sonhei que você estava sem uma perna!” Puta que pariu! Estou com medo. Ela desvenda as coisas. Parece vidente. Se isso não for amor, é bruxaria.


Diego Moraes é poeta, autor dos livros A fotografia do meu antigo amor dançando tango (2012), A solidão é um deus bêbado dando ré num trator (2013) e Eu já fui aquele cara que comprava vinte fichas e falava ‘eu te amo’ no orelhão (2015). Este ano lança seu primeiro romance, pela editora Record. Moraes vive em Manaus (AM).