Contos

O mundo de um homem só

Marco Cremasco


Onde está o João? Saiu e volta daqui a pouco. O jornal. Lê que atearam fogo em dez ônibus. Atravessa a rua e entra em uma padaria com o jornal aberto na face. Joaquim, o de sempre. Quem é o Joaquim? Ora, ele trabalha aqui há tempo. Sou novo... o que deseja? Café curto, pão na chapa. Atentado fere mil e mata cem. Terremoto divide a Terra e lança a metade da população para um abismo sem fim. Aqui estão o café e o pão. Fecha o jornal e não encontra Alice, a caixa. Foi ao banheiro — diz uma menina, de uns quinze anos que, pela compleição, é escarrada a Alice na juventude. Toma a calçada na direção do ponto de táxi. Conhece aquela região como ninguém. As pichações quais mensagens rupestres para o futuro, as árvores desde que as plantaram, as pessoas e suas histórias. Tenta abrir a porta do táxi. Ei, Juvenal, não quer me deixar entrar?
Cecília
O motorista vira-se. Juvenal tirou o dia de folga e pediu para substituí-lo. Ele está bem? Dor boba de cabeça. Por favor, leve-me ao Banco. Espere-me. Aquele Banco. Conhecia funcionário por funcionário. Dirigiu- se à gerente. Alcione... sei, foi ao banheiro? A moça sorriu. Não, senhor, ela está em reunião. Quem é você? Sou a nova gerente. Demorará? Possivelmente sim. Passamos por uma reestruturação e temo que a Alcione não possa atendê-lo. Sem o que fazer deixou o Banco e mais indignado ficou ao ver que o taxista partira. Todavia, em cinco minutos apanha o metrô e em meia hora está no seu escritório na faculdade. Olha o esquema do Large Hadron Collider. Toma o telefone e liga à secretária. Angelina, contate o Jean-Luc. Professor, a Angelina levou o filho ao médico; o senhor poderia me passar o número do telefone do... De fato, professor, sou a nova estagiária. Rabiscou um corolário sobre o bóson de Higgs para confirmar o modelo padrão de novas partículas elementares. Partícula de Deus!? Foi inevitável a comparação entre a ficção e a realidade em que se pretende recriar um ambiente parecido com as condições existentes instantes após o Big Bang. O castelo do início do séc. XIX edificado sobre o cume de uma montanha para Victor Frankenstein desafiar Deus. No início do séc. XXI outro castelo, submerso a cem metros na fronteira entre a França e a Suíça, construído para, agora, desafiar Satã. E quanto ao novo monstro de Frankenstein?, pergunta- se. Ignorou a estagiária, ligou para Jean-Luc e não o localizou. Passou o restante do dia imerso em cálculos. Retornou para o apartamento no anoitecer. Na entrada do edifício percebeu que José, o porteiro, não estava; em seu lugar, um terceirizado. Alimentou- se com frutas no jantar e foi para a cama, ignorando as últimas do Jornal Oficial. Cansado, desabou e acordou sem noção do que sonhara ou em que mundo estivera. Levantou e quase não se reconheceu diante do espelho. Sentia-se, certa forma, envelhecido. Nunca se testemunhara dessa maneira O mundo de um homem só ou jamais se importara. Passou a mão pela face e a teve, como o resto do corpo, flácida. Retomou a rotina, porém na saída do edifício não estavam José nem o porteiro terceirizado, entretanto outra pessoa para a qual desejou bom dia. Na banca do João não o encontrou, da mesma maneira não viu aquele que lhe vendera o jornal no dia anterior. Atravessou a rua e na padaria sequer estavam o Joaquim e o sujeito que o servira pão tostado, a Alice e a menina com a cara de Alice. Não tomou café e saiu... defrontou-se com as mesmas pichações. Sentiu-se aliviado e caminhou ao ponto de táxi, mas lá não estavam nem o Juvenal nem o taxista que deveria apanhá-lo na porta do Banco e no Banco não soube de Alcione e da nova gerente, ambas transferidas sem explicação, bem como não teve explicação ao chegar na faculdade e não ter notícia de Angelina e da estagiária que a substituíra. Contudo, as anotações sobre a partícula de Deus permaneciam sobre a mesa de trabalho. Assim foram os dias. As coisas continuavam exatamente no lugar em que estavam. A cidade funcionava como de costume, exceto as pessoas conhecidas que, por algum motivo e o mais banal, ele não as via. Ninguém morrera. Por mero acaso não as encontrava, simplesmente. E com o tempo, as que passara a conhecer, no momento seguinte eram lembranças, inclusive os amores pagos, pois não conseguia repeti-los com aquelas que lhe haviam prestado favores. Será que o tal Large Hadron Collider destruiu tudo? É possível que, finalmente, Satã tenha triunfado e o mundo virado do avesso? Como?, se a corrupção é a mesma. Sem contar que o campeonato corre naturalmente e as flores exalam os seus odores. Continuava com a conta no Banco e dívidas enviadas para o seu endereço. Decidiu visitar a cidade em que nascera para, quem sabe, encontrar alguma face conhecida. Foi à rodoviária. Comprou uma revista que, por ser final de ano, apresentava uma retrospectiva: o apagão generalizado no país, a família morta após cair do oitavo andar, suicídio do romancista estreante, o ataque fortuito de um médico contra pacientes. Durante a viagem trouxe à tona reminiscências da infância na qual idealizava o futuro e quando este apareceu, foi tomado de espanto, encantamento, aprendizado e desilusão. Um vazio o envolveu e, ao tempo de uma lágrima furtiva brotar-lhe, procurou recompor-se diante de imagens escondidas nos recônditos da memória, de onde nasce a incessante busca de um lugar confortável para a alma. Procurou reconstruir-se ao saber que ninguém que ele conhecia, não mais ali residia. Percorreu as ruas da meninice, a escola em que estudara e a casa em que nascera. Imaginara- a imensa, contudo a saudade a fez maior do que realmente era. Andou pela vila em câmara lenta. Olhou a face das pessoas e buscou detalhes que poderiam trazer alguma identificação. Detalhes importantes, contudo para os outros, pois a ele restava o vazio de quem se busca preencher. Estava só, terrivelmente só. Não ficou mais do que um dia e, em vez de voltar à metrópole, decidiu-se pelo litoral. Teve-se como o senhor absoluto do universo diante da imensidão do mar e do céu que se acasalavam no horizonte. A vastidão era dele, enquanto nas suas costas a vida corria ordinária, revelando-lhe o mundo de um homem só. Depois de vagar anos a fio, transformando-se em andarilho, vestindo as mortalhas da memória para encontrar sentido na solidão dos anjos, retornou à cidade natal. Seguiu ao cemitério. Passeou entre túmulos, tocando-os como fossem teclas. O cemitério é o piano de Deus —– pensou. Fechou as pálpebras. Não ouviu o som do passado. O réquiem substituiu a sinfonia da existência regada pela indiferença e pelo descarte. Restavam-lhe ossadas e as almas dos velhos perambulando pela lembrança, recolhendo, de cócoras, gravetos de saudade.

A face de Dante

Não posso impedir que anoiteça e que a noite de hoje amanheça, contudo tenho mãos que amordaçam e dedos que cegam. E, dessa maneira, percorro sendas nebul
Cecília
osas. Ouço lamúrias e não as distingo. São pesares desconexos, dos quais diviso deixe aqui toda a esperança. Que esperança é essa? — pergunto. Esbarram-me em silêncio. Vagam simplesmente, trombando- se em movimento aleatório que descreve um abismo no qual mergulho. Sou lançado de lado a outro. Sou enlaçado por membros despedaçados que me trazem o gozo, que me lançam ao cérebro uma correnteza de porra. Não tenho sangue nas veias; tenho porra. O que penso e a que me guio é para satisfazer este apetite furioso. Posso sentir nádegas roçarem-me o peito e vulvas envolverem- me a boca. Tanta porra que me faz escorregar e afundar-me mais. Uma chuva fina lava-me. Chuva fria e impura a trazer-me esta fome incomensurável. Brotam sombras da lama e alimento- me de seus lamentos, potencializando a gula. Urram, ao passo que me delicio com carne humana, para nela adentrar- -me. Como ousa? — ouço. Tateio vísceras e descubro ouro. Manuseio artérias e o que encontro? A riqueza aprisionada em um corpo que definha? Riqueza que faz o pulmão engessar para economizar o ar enquanto expila. Avareza prodigiosa em defecar muito mais do que retém e em merda sou expulso do próprio corpo. Revolvo-me em tanto excremento. Revolto por eu ser o elemento básico desse excremento. Eu, que tinha toda a atenção do mundo, sou repelido e então me percebo aos gritos cheguei ao fim como bosta e não como gente! Em vez da boceta, fui parido pelo cu? Herege! — escuto. —Quem imagina ser? Nasce feto e morre merda. Não interessa o que construiu ou que festa deu. Quantos não comeram em sua mesa e brindaram a deuses fugazes? Comeu e cagou. É esgoto de si próprio. Odor fétido envolve-me e a voz soturna aporrinha olhe profundo e escolha qual das portas enveredar-se-á. A mesóclise pedante incomoda mais do que a carniça, pois é cuspida por um espírito empedernido de um escroto, que me aguarda na primeira porta e aponta uma arma na minha direção para, a seguir, engatilhá-la contra a própria bunda. Ignoro-o e elejo a segunda porta. Rodopio em dez valas para encontrar, seguidamente, parasitas, puxadores de saco, enganadores, embusteiros, corruptos, hipócritas, ladrões, interesseiros, desagregadores, falsários. A cada vala atravessada, atravessa-me um cheiro insuportável, entretanto em vez de eu perder os sentidos, mais me aguçam e fazem-me compreender que os abismos em que caí e as valas em que enveredei foram cidades onde morei, becos que visitei, restaurantes em que comi e botecos em que me piquei, lojas em que comprei, bancos de onde emprestei, delegacias em que adormeci, cortes em que fui julgado (ora absolvido ora condenado), templos em que ajoelhei, acreditei e blasfemei, a casa de poder do qual fiz parte, pois também fui vereador, prefeito, deputado, governador e sei muito, exceto sobre esta sala sem ventilação e monocolor. Avisto apenas um trono e quanto mais dele me aproximo tanto mais um ser venal se avoluma. Não é difícil ver que se trata do traidor-mor, daquele que renegou a todos, incluindo pai, mãe, filhos, mulher, amante, princípios, crenças e a si mesmo. É a imagem da podridão refletida no espelho.


Marco Aurélio Cremasco nasceu em Guaraci (PR). Publicou os livros de poemas Vampisales (1984), Viola caipira (1995), A Criação (1997 – Prêmio Xerox/ Livro Aberto), fromIndiana (2000), As coisas de João Flores (2014). Também é autor do livro de contos Histórias prováveis (2007) e do romance Santo Reis da Luz Divina (Prêmio Sesc de Literatura 2003 e finalista do Jabuti 2005). Em 2010 foi contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária para a escrita do romance Evangelho do Guayrá. Vive em Campinas (SP).

Ilustração: Cecília Fumaneri