Contos

O mágico
magico

O mágico desde sempre desconfia de sua falta de talento. E agora está velho e flácido. Acha impossível começar algo novo. Sair do Circo e trabalhar como autônomo... Talvez. Perde-se em pensamentos dessa natureza antes de meter a mão no fundo escuro da cartola. O silêncio expectante da plateia abraça sua insuspeita figura. É então, nesse exato momento, que o segredo salta com suas orelhas brancas e peludas do mais íntimo de sua consciência: imposteur! Um sussurro como vento frio varre a alma do mágico. O riso abre-se em lâmina na face bem maquiada. E os arcos das sobrancelhas realçam um ódio anônimo direcionado aos seus cúmplices. É com prazer cansativo que ele oferece àqueles olhares sedentos o arranjamento senil de sua Falsa Arte. A sensação é mágica.



O palhaço

palhaço
O palhaço andava triste. Devia dinheiro pra um negociante da alta: o acrobata.
Casado com a mulher barbada — as mais feias são mais vaidosas! E sofrem demais... —, o bufo gastava muito com véus e pílulas. Uma grana elevadíssima. Estava se virando pra pagar. O que entrava, num piparote sumia com os juros exorbitantes. No bolso largo, perdia a mão enluvada. Umas moedinhas infelizes: café & cigarro. Entrava no picadeiro com o andar pendente. A música alta. Os chacais da plateia e suas cabeças felizes enchendo-se de guloseimas. Olha maria moooooleeeee! Olha Minduiiiiim. Nada a fazer. Era só um palhaço. Como devia ser, curvava o corpo elasticodolor para além da claraboia, lá onde a lona mira o sol. E lançava o seu riso alucinado acima do voo do acrobata.













O domador
domador

Romão é o domador do Circo. Por superstição, trançou fios de seu bigode à ponta do chicote. Com isso, pensa ele, as feras jamais se aproximam. Entre outros truques, mantém as calças bem apertadas para lhe empertigar melhor o corpo, imprimindo-lhe uma aparência de coragem. Romão é covarde e por isso precisa ser sempre cruel. Exige do dono do Circo que a remessa de alimentos das feras venha viva. Sua prática quase meditativa é deixar os leões com fome por uns dias e jogar uma presa ofegante dentro da jaula. Aprecia muito observar a captura e aniquilamento das vítimas. Porcos pequenos e de pernas curtinhas lhe dão um prazer especial. Uma de suas grandes ideias, inclusive, foi gravar o som lancinante dos víveres para, na hora em que se apresenta ao público, jogar como sutil música de fundo. Suspeita-se que seja por isso que as crianças caem na gargalhada durante este número. Romão já foi visto pelo palhaço devorando um dos coelhos do mágico. O palhaço, que deve dinheiro ao acrobata, aceitou manter o bico fechado em troca de algum troco. Romão também é o tesoureiro do Circo.







Assionara Souza nasceu em Caicó (RN), em 1969. Já publicou os livros de contos Cecília não é um cachimbo (2005) e Amanhã. Com sorvete! (2010), ambos pela editora 7Letras. Os contos aqui publicados pertencem ao livro inédito Histórias do circo e da cidade. Vive em Curitiba (PR).

Ilustrações: Theo Szczepanski