Conto | Wilson Alves-Bezerra

A torre

O bom agora era poder passar o dia pelado, olhando pela janela do 15º andar do mais alto edifício da cidade, inexplicavelmente no topo do monte. A obscena vista do povoado de casas baixas, as plantações e o pasto eram presentes inesperados: o infinito e o nada. O apartamento espaçoso, o mau gosto burguês: cortinas florais, rendadas, plissadas, azulejos pasteis com motivos florais, espelho grande no banheiro, emoldurado por lâmpadas incandescentes brancas, imitando camarim de estrela de televisão. Aluguel barato, salário relativamente alto para os poucos dias de trabalho. O apartamento dos ricos que ele favelizava com seus chinelos de dedo, sua negritude, sua nudez e seus dedos a coçar o corpo suado.

No espaçoso living podia andar de um lado a outro, contemplando a ausência de móveis e imaginando qual seria a família que abandonara o lugar, seus motivos. Além dos poucos dias em que tinha que vestir alguma formalidade e apresentar-se aos moradores locais como o engenheiro da capital, o mundo lhe chegava apenas pelos telefonemas equivocados, pelo ranger do elevador longínquo, e mais o barulho da locomotiva agitando os trilhos, no quarto ao lado.

Quando adormecia, cigarro entre os dedos, na rede em frente ao janelão da sala, logo despertava sobressaltado, com o sussurro das cartas sob a porta, reforçado pelos odores do Ribeirão Quilombo. Levantava-se, caminhava, deitava-se no chão. Estirado nos tacos, o suor se aderia ao sinteko. O sol faminto. O movimento involuntário do peito pelo coração que palpitava.

Depois que a sesta de fogo chegava ao fim e o sol já não se deixava ver na janela, o carrilhão da catedral abalava a quietude da tarde. Era o sinal para os insetos, uma revoada que vinha rápido, infestar a arquitetura fracassadamente arrojada, as paredes não perpendiculares, os globos de luz em seu marco dourado. Acender ou não acender as luzes da sala em nada diminuía sua sanha desabalada. Impossível cumprir o desejo de se iluminar pelo fogo. 

O silêncio era fardo sobre asas. A noite erroneamente clara. Da rua as vozes de alguma conversa, sotaque sincopado, conteúdo incompreensível. Uma moto cruzava a cidade com o escapamento aberto, o cão que ladrava por nada ou por quase nada, ambos deixando o silêncio e a fumaça detrás de si.

Como podia a cidade ser tão pequena? O edifício ser tão alto. E todo o canavial ao longe, impassível. A mesma garrafa de água sobre a mesa há três dias e o Ribeirão Quilombo com suas águas cagadas. Fechou as janelas para não sentir, saber, apreciar ou compreender mais nada. Tentar conciliar com profundidade o sono sem a intervenção da vista empalhada do município que já começava a nauseá-lo. Nem tempestade no céu se anunciava.

A memória se prolifera mas não encontra onde se enredar. Nenhum pensamento urbano permitia-lhe libertar-se do infinito verde, do cheiro de bosta, do silêncio profundo e rude. Angustiava-se na sala que lhe parecia, ainda mais com as janelas fechadas, uma desproporcional quadra de futebol de salão.

Confundiam-se os dias de descanso e os dias de trabalho. As vozes da cidade que o inquiriam sobre o sobrenome, a família, os hábitos. As memórias da cidade grande, de onde viera, iam ficando escassas. O sol costuma confundir as almas, dizia o padre imaginário numa missa inexistente que se inventava para tentar enfrentar a madrugada. Uma presença inefável parecia envolvê-lo e o fazia logo ver saindo fumaça do horizonte como se se tratasse de seu próprio cigarro. Ou, por outra, era sim aquilo mesmo. Dias em que não vê uma só mulher. A cidade uma grande boca sem lábios, insexuada. Em Villa Americana, fornica-se para o matrimônio, pare-se para o trabalho. A família seguirá sendo o núcleo duro do roçado — dizia, numa cantilena que já se ia tornando sinistra. O município nasce da grande fazenda, cercada ante o exterior inóspito. 

Até soar mais uma vez o telefone, ao meio da noite muda. Não era engano. Uma voz abafada e rouca que se dirigia a ele. Não haverá amanhã a reunião previamente agendada, já esquecida, e da qual nem ecos restavam sobre seu corpo finalmente resfriado. O telefonema da assistente, do escritório que o contratara, eficiência onde nem o dia nascia com hora marcada, despertou-o. Foi quando surgiram interrogações do corpo: onde é que se come naquela cidade, numa hora daquelas.

Do outro lado, a voz prestativa ia se tornando interessada e desfiava dados, impossibilidades, dificuldades da província para os que vinham da capital. Ao devolver o fone ao gancho foi como ter sabido que falara com a pitonisa, a única que podia tirar zumbi cativo da senzala.

Tropeçou entre as escassas peças de roupa sobre o chão de terra batida, e apanhou alguma camisa que pendia de um gancho. Cogitara ir nu para a rua, mas a voz rouca que o convocara há pouco inspirava maiores cuidados. Não sabia precisar em quanto tempo uma voz se faz corpo, mas tentou ser veloz, depois de quantas horas ou noites extático. Divisou da janela o que imaginaria ser a primeira réstia de sol da manhã, embora acreditasse que o dia ainda tardasse. Também virá ela com os olhos vivos de uma fome mal saciada, pensou. Nada mal um corcel ligeiro para picotar a noite, entre as folhagens, os canaviais, os bosques inexplorados.

Pensar que no dia que chega não terá de lidar com casa nem ponte aliviava o peso da alma. Imaginar a mata que havia debaixo de cada canavial. Cuspiu para o lado, acendeu outro cigarro com a palha que apanhou no canto do quarto e vestiu finalmente a camisa grossa de algodão curtido. A calça encardida, acreditava que estava bem.

Desceu em silêncio àquela hora, pelas escadas. Todos têm o sono leve dos que estão sempre acossados. Foi só passar leve e macio, depois, pelo capitão do mato, na entrada da fazenda. 

Tinha uma matinha preservada, onde decidiu ficar de tocaia, esperando aquela que o renderia. Depois de quantos dias, ia à forra, atravessar pelado, correndo, a pista, sem perder os dedos na roda, sem lamentar com os outros por um que caiu na caldeira. Ver aquela que venta, com seus olhos de maio, ser outono, ser o leito das coisas que passam. 


Wilson Alves-Bezerra é autor, entre outros títulos, da coletânea de contos Histórias zoofilas e outras atrocidades (2013) e do livro de poemas Vertigens (2015), obra que conquistou o Prêmio Jabuti na categoria Poesia — Escolha do Leitor. Professor na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), vive em São Carlos (SP)