Conto | Santiago Santos

Da pequena e necessária recompensa

      Ilustração: Felipe Rodrigues
recompensa


Dora fica pra trás na Catimba. Resolvemos que é muito mais jogo eu sair sozinho pra ver se acho algo comestível, que se algo me achar comestível primeiro ela ainda tem chance de se salvar. Esse planeta prometia lá de fora. Superfície respirável, muita matéria orgânica, vida vegetal intensa. Há sempre o cálculo probabilístico da Inteligência Artificial pra rastrear possíveis formas de vida que representem perigo. Mas claro que é um cálculo incerto, que não leva em conta muita coisa, como elementos e mutações biológicas que a humanidade desconhece, ou mesmo interferência externa, que nem todo planeta teve a sorte de crescer cheio dos não-me-toques como a Terra, sozinha no parquinho do play.

A IA da Catimba localizou uma fonte de água provavelmente potável a cerca de um quilômetro e meio, passando por uma área densa de vegetação, tão densa que ela só conseguiu pousar onde pousou e não mais perto. Minha pistola não é efetiva contra tudo o que já encontramos, mas consegue pelo menos atrasar a maioria das coisas que já tentaram me alcançar, então me aferro a ela enquanto abro caminho com o facão iônico.

Como tá aí, Jono?, a voz de Dora no receptor. 

Uma merda, claro, respondo, cuidando pra não derrapar na terra gosmenta. 

O que seria a grama daqui parece uma alga azul clara que fica espetada pra cima em ziguezague, um raiozinho invertido, e quando aproximo o pé ela se retrai, deitando no chão e ganhando uma tonalidade vermelha. Não sei bem se são elas que deixam a terra pegajosa ou se a própria composição do chão é parcialmente líquida. As árvores são brancas e não têm folhas; galhos e galhos retorcidos e chapados nas pontas, duros mas fáceis de cortar. No radar não há sinal de animais maiores que uma formiga, então até aqui tudo tranquilo.

Quando chego à fonte, um riacho que atravessa uma faixa de terra, me abaixo e mergulho a ponta do analisador na água. Algumas gotas passam pra dentro do cubo de plástico.

A água parece limpa aqui, água de verdade, digo.

Espera o resultado antes de beber, Jono. 

Claro. Perdi completamente a coragem depois daquela viagem pra Gorang X5.21.

Em Gorang, o conjunto de elementos adormecidos numa espécie de amora silvestre entrou em combustão com alguma enzima do meu estômago e criou uma bactéria ultrapotente que levou meses pra ser completamente removida sem ocasionar implosão ou a troca de todo o aparato digestivo. Uma ressaca de meses com certeza te deixa reticente diante de uma garrafa de uísque.

O analisador dá a luz verde. 

Tudo certo aqui, digo. Vou encher os dois cantis e andar mais um pouco, talvez eu ache comida também. 

Certo. Estou mapeando o trecho em que você está andando, com os drones.

Dora é prestativa. Foi uma boa ideia salvá-la da execução prevista pela corte marcial na Terra. Claro que ela agora assumiu outra identidade e possui outra assinatura genética, outro rosto, outro corpo, um conjunto adicional de memórias. Mas é em essência a mesma.

Levo alguns minutos pra achar uma árvore azul no meio das árvores brancas. Ela tem bolas na ponta dos galhos que parecem botões de flores, do tamanho de bolas de basquete. Que saudade de jogar, puta merda, tenho que me contentar em rever os jogos do Lebron voando pela quadra, lembrando que o espaço me deixou com a força física de uma criança de oito anos na gravidade de casa. Abro um dos botões no meio com o facão. Algo borbulhante e vivo cai no chão e fica se debatendo, um girino melequento, até que solta um ganido e para. As graminhas ziguezagueantes se alongam e se atiram sobre o corpinho e o puxam pra baixo, sumindo na terra.

Aí as matronas brancas ficam irritadas. Primeiro levo uma galhada pesada na orelha, e quando caio no chão as outras lançam seus galhos também, batendo onde dá.

Tô apanhando que nem condenado das árvores!, digo, tentando levantar mas tomando uma rasteira atrás da outra.

Vai na direção que enviei pra você, tem um clareira aí perto!

Consigo eventualmente levantar e corro na direção marcada no GPS, ainda levando galhada atrás de galhada, cortando com o facão iônico o que consigo pelo caminho, que não é muito. Quando chego na clareira vejo a Catimba sobrevoando baixo. Dora joga o cabo de engate e amarro ele na cintura.

Pode puxar, digo, e num tranco sou arrancado do chão e puxado pro compartimento de carga da nave. 

Dora abre a porta depois da despressurização. 

Sua cara virou um maracujá enorme com vários maracujazinhos no meio, ela diz. 

Valeu. Amanhã é que vai ficar lindo pra valer. 

Vai mesmo. Acabou o nosso gel. 

Quê? Puta que pariu. Como deixamos isso acabar? 

Você quis brigar com aqueles frentistas na estação Horep, lembra, valentão? 

Ah, é. Putz, tudo isso por dois cantis de água. 

Já passamos por coisa pior. Pelo menos temos água. 

É verdade. Pelo menos. Catimba, na escuta? Refaça o trajeto até Horep. 

Por que, Jono?, diz Dora. Pra que voltar naquele pardieiro?

Eles têm gel. E é o pardieiro mais próximo. Você tá vendo, não tem nada pra gente nesse quadrante aqui. A gente volta e reabastece antes de entrar em outro. E os meus amigos frentistas podem tá por lá ainda.

Você que manda, chefe, ela diz, voltando pra cabine. 

Tiro o traje, sentindo até o cabelo latejar, deito na cama do dormitório e tomo um gole da água. Hum. Boazinha, pelo menos.


Santiago Santos é escritor, tradutor e jornalista. Publica textos semanalmente no site flashfiction.com.br e é autor do livro de contos Na eternidade sempre é domingo (2016). Vive em Cuiabá (MT).