Conto | Ronaldo Cagiano

Insularidade

Somos todos estrangeiros
nesta cidade
neste corpo que acorda. 
Heitor Ferraz


Passageiro num fim de dia extenuante, o Grande Circular deixava a W-3 Sul e contornava a pista de retorno em frente ao Corpo de Bombeiros para penetrar no amplo sistema viário que leva ao Setor de Embaixadas, ao Aeroporto, à Via L-2, ao Núcleo Bandeirante e à Saída Sul, quando minha atenção migrou das páginas que eu lia, para flagrar o sujeito ao meu lado a tentar o diálogo, mas meus olhos detidos numa leitura intensa e sedutora de A morte Feliz, de Camus, ainda não haviam permitido desviar o olhar para aquela criatura que me fitava, com a intermitência de miradas esquivas, desde que tomei o coletivo no ponto perto do Brasília Rádio Center. Concentrado estava, concentrado fiquei, em Patrice Mersault, em Roland Zagreus, num ponto qualquer da Argélia, onde o livro me transportava numa velocidade superior à do coletivo, aos mundos absurdos da existência humana. Nesses longos minutos de assédio ocular, diante da minha imobilidade alheia aos sentimentos e atitudes próximos, a impaciência da alma ao meu lado ia agredindo minha leitura, uma leitura sobre questões intrigantes da natureza humana. Mas o que poderia ser mais intrigante que a sua insistência em ser notado, ouvido, além do mar de nadas e obviedades que nos cercavam?

Examinei, de soslaio, aquele homem bem trajado — quem era? de onde veio? por que andava de ônibus? para onde ia? teria me reconhecido? não, eu não o conhecia, nunca conheci ninguém, não me importo — tentava estabelecer um contato, ainda que mínimo, para quebrar a onda de silêncio e solidão que procelavam dentro dele, em meio àquela profusão de corpos num coletivo, para fugir à transitoriedade dos relacionamentos de um ônibus de rua. Nem isso, nem essa certeza de que a sua presença reclamava a minha ou de qualquer outro, foi capaz de furtar-me em minha faina de leitura obcecada, Camus me dizendo coisas, Era uma nostalgia de cidades cheias de sol e de mulheres, com tardes verdes que cicatrizam as feridas. As lágrimas irromperam. Crescia nele um grande lago de solidão e silêncio, sobre o qual o canto triste de sua libertação... e eu, quando muito, retirava os olhos da página e olhava lá fora, e via lá fora a rua, a rua não é comigo, lugar de seres taciturnos, embotados, sem graça, e eu? indiferente aos apelos incógnitos do passageiro desconhecido, negligente com o resto do mundo, para o que se passava em meu derredor, numa imutável e automática atitude que se repetia cada vez que eu viajava naquela linha em direção à minha casa, depois do cansaço habitual da vidinha besta de bancário. E como sempre alguém ao meu lado, um homem, uma mulher, uma criança, um velho. Alguéns. Nem o vozerio, nem o barulho da catraca, nem os sinais de parada, as freadas bruscas, o mau humor do motorista, a cara feia do cobrador, os painéis lá fora, as casas, as pessoas paradas nos pontos, na avenida anônima: artéria endoidecida, com seu fluxo enfurecido e divergente de feras metálicas, nada me retirava de meu mundo de mergulhos profundos nas páginas de um livro. Nesse dia era A morte Feliz, mas podia ser que eu estivesse noutras viagens: Lorca, Pessoa, Bandeira, Dostoiévski, Borges, Camões, Cortázar, Rosa; ou entre o niilismo nietzschiano e os sermões do Padre Vieira — e eu reagiria da mesma forma, nem um olhar, nem um sinal de interesse, fosse o grito ou fosse o silêncio, fosse o ônibus vazio ou o acidente na pista.

Nesse dia a presença daquele senhor me incomodava e isso se tornou perceptível aos seus olhos, o que não evitou uma abordagem em tom cavalheiresco, que de início não me entusiasmou. O homem de terno, gravata e celular pendurado no cinto, que vez por outra tocava e ele, laconicamente, atendia e, num monólogo ininteligível, dispensava quem chamava do outro lado da linha, tinha visível necessidade de ser ouvido, esse homem pedia socorro sem gritar. Ninguém o sentia, muito menos eu. O telefone tocava — isso se repetiu umas quatro vezes no trajeto — e sua recusa em atender aos chamados estava mais ligada à necessidade de falar com alguém que estivesse perto e suscetível de compartilhamentos.

Tirei os olhos rapidamente do livro. Fechei-o e ele leu, com interesse incomum, pronunciando em voz alta, num gesto de louvação pela leitura especial e querendo entabular um diálogo que parecia não ter, pelo menos para mim, chance de continuidade.

Eu não queria conversar com ninguém. Desde a manhã, quando a cena da copeira pulando do vigésimo oitavo andar das torres gêmeas do edifício do Congresso inquinou o meu dia com sua carga de espanto e horror, eu não conseguia ver nem ouvir ninguém. Nunca vira a morte tão de perto. Nunca a pequenez humana me fora revelada com tamanha indigência psicológica e espiritual. Eu estava entre os próprios escombros da humanidade inteira. A morte ali, com todos os seus tentáculos. O seu rosto cruel e inamovível. Essa mesma que eu tentava compreender num livro, distante do indesejável fim que a todos sucede: muitos, iguais em sua derradeira hora, seguindo a ordem natural das coisas; outros, realizando a ruptura brutal e sistemática, porque não resta outra coisa a não ser pôr fim à existência. A morte, impassível, incontornável, a morte mesmo, física, imoral, intransponível, esta nunca tinha soado com tamanha inclemência quanto a que vi ainda cedo, quando me preparava para mais um dia de trabalho, diante de um corpo recolhido do espelho d’água da Praça dos Três Poderes e estirado ao chão, coberto por um lençol parco na burocrática espera da perícia policial. Meus olhos não tiveram tempo de dizer um oh! de comiseração, de estarrecimento diante da brutalidade insinuada contra si mesma e levada às últimas consequências. E, no fim do dia, o sujeito ao meu lado, querendo arrancar-me, a qualquer custo, do meu arrebatamento, da minha estupefação, da minha leitura, porque aos seus olhos a minha completa insubordinação ao que me circundava, imagino que isso estava no seu íntimo, a minha indiferença era assassina, como era a de tantos quantos levaram à morte aquela mulher de quarenta anos, separada, mãe de três filhos, que morava numa biboca qualquer e trabalhava feito burro de carga para sustentar os quantos ela pôs no mundo.

Eu soube que dona Jandira pulara, numa atitude escapista, quando sua vida já não tinha mais jeito. Não tinha para ela, que não via luz no fim do túnel, quando seus caminhos haviam sido despedaçados pelo marido alcoólatra e omisso; sua vida havia sido rejeitada pelos próprios sonhos inconclusos — malsucedida no emprego e no amor, atolada em dívidas com agiotas que oferecem o dinheiro fácil às classes menos aquinhoadas do funcionalismo, sobretudo aos incautos empregados de prestadoras de serviço que atendem nos Ministérios e outros órgãos públicos, morando longe, numa dessas invasões subumanas que sitiam o Distrito Federal — um vergonhoso cinturão de miséria — toda a sua vida girava em torno de uma rotina desgastante, cansativa e sem retorno financeiro, sem a mínima contraprestação do bem-estar material e do prazer íntimo. A derrota, sim, em carne e osso. Estava ali, finda, não esperou a morte chegar, foi ao seu encontro pela via da coragem insensata. E dentro do ônibus, com aquele homem tentando chamar minha atenção, eu tinha meu coração, meus olhos, meus pensamentos voltados pr’aquela criatura que já é morta há quase doze horas e não entrará para a história por nenhum ato de heroísmo, ninguém se lembrará de Jandira, senão alguns da família traídos em sua autoestima pelo ato da mãe que não buscou sair do labirinto. Sim, quem sabe, eu me lembrarei também dela quando ler Camus, ele que tanto quis entender e fazer entender a angústia humana, dos gritos submersos que não conseguimos exteriorizar, da oscilação de nossas revoltas, do percurso angustiado de tantos corações revoltados, do homem sempre em núpcias de fogo com sua identidade estiolada pelos venenos da realidade. Vou me lembrar de Jandira, quando outro sujeito sentar-se ao meu lado emcompridando conversa, no ônibus, no banco vazio da minha superquadra, na espera da sessão de cinema, na fila do orelhão — onde sempre haverá gente numa intensa procura, de olhares, de conversa recíproca, de diálogo para enfrentar a tragédia que culmina todos os dias à nossa porta, porque nada escapa ao fluxo das esperanças humanas e não podemos ser nuvens fugidias que carregam para aqui e para acolá sua opacidade, seu isolamento, sua fúria, sua liturgia de privações.

O suicídio de Jandira estará amanhã nas páginas do Correio Braziliense, no necrológio que ultimamente tem se saciado com o sem-sentido e a banalidade da vida e da morte, com todos os seus requintes de perversidade, que a crônica policial da sociedade moderna registra sem constrangimentos ou pudor. Camus a me dizer, como a espada da verdade desferindo seu golpe, que o único problema realmente sério é o suicídio, e Jandira que já foi velada no Campo da Esperança e jaz em cova rasa, me revelando os escombros insuspeitos da nossa condição. 

Muito prazer!, disse-me o cavalheiro decepcionado com meu jeito de poucos amigos e meus olhos escondidos no livro, pedindo-me licença para sair, para saltar na próxima parada, sim, foi o que disse aquele que atendia pelo nome de Antonin Artaud. Eu não podia supor: havia perdido a oportunidade de romper com nossa solidão urbana, essa solidão tantas vezes maquinada ou dissimulada pelos convívios impossíveis, que nos torna estranhos e mutilados, pela condição errante de nossos corpos que não sabem decodificar a aflição e o desespero, tragados que somos pela inevitabilidade da roldana diária, com seus dentes vorazes a nos convocar para a imensidão oceânica das necessidades modernas. Só tive tempo também de dizer o socialmente óbvio e seco prazer em conhecê-lo, meu nome é Bertolt, e vê-lo atravessar a via ainda movimentada naquele início de noite, noite encrespada, sendo engolido por aquela jiboia de faróis, ele, ele nem soube se eu era de Alagoas ou de Minas Gerais, nem dele soube nada mais que um nome e uma angústia latente em seu íntimo, e era fim de expediente, e vislumbro aquele solitário homem de terno e gravata que atendia pela graça de Antonin Artaud ser devorado pelo ventre da noite, desaparecendo no breu da quadra mal iluminada, em busca de sua essência perdida no tumulto doméstico, a ilha invisível de todos nós, escuro território onde acabamos por nos desferir o golpe de misericórdia e montamos, sem apelos, o mosaico de nossas próprias vidas.


Ronaldo Cagiano nasceu em Cataguases (MG). É autor de, entre outros livros, Eles não moram mais aqui, terceiro colocado no Prêmio Jabuti 2016 (categoria “Contos e Crônicas”). O escritor vive em Estoril (Portugal).