Conto | Rodrigo Lacerda

O fim dos soldados perdidos

Se é que é possível, num momento de dor, pensar com calma, aproveito o espaço do jornal Cândido para comentar o maior terremoto musical dos últimos tempos: a banda Soldados Perdidos — catalisadora de toda uma nova geração de inconformistas — não existe mais.

Os boatos correram por semanas, mantendo o universo underground e a imprensa especializada em suspense, até que finalmente, no dia 25 de maio, um post assinado pelos quatro integrantes apareceu no site oficial, confirmando a má notícia.

O texto na internet é vago quanto aos motivos. Mencionar “questões pessoais e a nova conjuntura do país” não basta, não aplaca a necessidade do público de conhecer as razões para uma decisão tão radical. A banda, que chegou a ter dois discos lançados no mercado norte-americano (com o nome Lost Soldiers) e turnês europeias lotadas, deixa órfãos centenas de milhares de fãs no Brasil e no exterior. Ora, a história do rock já ensinou: para se viver essa espécie de orfandade é preciso compreendê-la, do quadro geral aos mínimos detalhes. Lennon & McCartney, não por acaso, passaram décadas se explicando...

Mas nenhuma coletiva de imprensa foi marcada, e até que um dos “soldados” quebre o silêncio, infelizmente, o mistério vai permanecer. A explicação que circulou por aí, não comprovada, aponta desacordos políticos como a causa da dissolução. Eles teriam se agravado no primeiro semestre deste ano, até o ponto de ruptura. Segundo essa hipótese, alguns integrantes — não se sabe ao certo quais, ou quantos — teriam defendido a mudança do nome da banda, tendo em vista o resultado da eleição para presidente e a inevitável associação com o desempenho do novo governo. Queriam preservar sua imagem. Não houve acordo, supostamente, porque outra parte do grupo achou importante manter a crítica, ainda que involuntária, e resistiu à ideia. O impasse teria descambado para uma briga generalizada, pois mesmo aqueles favoráveis à troca não concordaram em qual deveria ser o novo nome.

   Ilustrações: Rodrigo Lacerda
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Davi, vocalista e poeta do rock.

Essa versão dos fatos, no entanto, parece imediatista demais. Analisando os rumos musicais tomados por cada um, é fácil ver que, ao longo do tempo, surgiram diferenças consideráveis em seus respectivos universos criativos. Pode-se dizer que quatro vertentes do rock, todas fundamentais mas contraditórias, vinham minando o antigo companheirismo.

Davi, o líder, vocalista, compositor e letrista dos maiores sucessos — entre eles a feroz “Chuva ácida” e a balada de protesto “O capitalismo não quis, meu amor” —, vem desenvolvendo projetos solo, com letras mais elaboradas e sonoridade folk. Afiliou-se à tradição roqueiro- -menestrel, mergulhou na poesia modernista e se distanciou do repertório original do grupo. Seu estilo, mistura de Tom Waits, ou Leonard Cohen, com Bob Dylan, está pedindo passagem.

Já Ritchie, o guitarrista e o mais velho, carrega a tocha da tradição hippie. No último álbum da banda, Herodes tinha razão, suas composições lisérgicas e progressivas, recheadas de solos intermináveis, destoam do andamento geral, mais “pegado”. Graças à sua filosofia paz e amor, contudo, pode-se afirmar com alguma certeza que não foi Ritchie quem botou pilha para a ruptura.

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Querosene, baterista e coração de mãe.

Toni, o baixista, consagrou-se como o elemento pop/new wave. Quando uma faixa dos Soldados Perdidos leva você para a pista de dança, pode ter certeza que o compositor foi ele. Além do balanço, o senso de humor em suas letras revela um talento iconoclasta e muito inteligente. Daí ser conhecido como “o nosso David Byrne”. Tudo é simples em suas criações, menos o resultado.

E o insubstituível baterista Afonsão, ou Querosene, que combina a estâmina de um Keith Moon com a precisão do Charlie Watts? Famoso pelo parentesco distante com Tim Maia e Ed Motta, Querosene era considerado por muitos o “cimento” da banda. Como se todas as diferentes musicalidades reverenciassem as raízes negras do rock, encontrando nele denominadores comuns. Suas recentes incursões pelo funk e hip-hop podem ter comprometido de vez o equilíbrio do grupo.

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Ritchie, 47 anos, solos de oito minutos. 

As divergências artísticas antecedem as outras, e são mais profundas, porém a boataria das redes sociais não quer saber de profundidade. Aproveitando o diz-que-diz-que, espíritos divisionistas apimentaram a hipótese política para o término do grupo. Espalharam, com estardalhaço, que Davi votou no Bolsonaro nas últimas eleições, e pior, que, desde então, leu a obra completa do Olavo de Carvalho! A maledicência apócrifa veio ilustrada com a imagem do guitarrista, em um show, usando uma camiseta estampada com o Pixuleco, o boneco do Lula presidiário. Mas deve ser montagem, tem toda a cara de fake news.

Só nos resta aguardar. Mais cedo ou mais tarde, as nuvens que cercam o fim da banda irão embora. Qualquer que tenha sido o motivo, os Soldados Perdidos vão fazer muita falta ao poder de resiliência dos brasileiros. E, no plano pessoal, é sempre triste quando artistas que a gente admira deixam de ser amigos.

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Toni, “o David Byrne brasileiro”.


RODRIGO LACERDA nasceu em 1969, no Rio de Janeiro (RJ), e vive em São Paulo (SP). É autor de O mistério do leão rampante (novela, 1995, prêmio Jabuti e prêmio Certas Palavras de Melhor Romance), A dinâmica das larvas (novela, 1996), Vista do Rio (romance, 2004), O fazedor de velhos (romance juvenil, 2008, prêmio de Melhor Livro Juvenil da Biblioteca Nacional, prêmio Jabuti, prêmio da FNLIJ), Outra vida (Melhor Romance no prêmio Academia Brasileira de Letras). Em 2018 lançou o livro de contos Reserva natural.