Conto | Pedro Salgueiro

CAMUNDONGOS


01
Essa casa tornou-se grande, ou eu me tornei pequeno dentro dela. Ratos passeiam embaixo das tábuas do assoalho. Imagino que sejam ratos, porque toupeiras não existem em nossa região. Amélia me garante que não há nada por baixo do piso. Claro que não me convencerá tão fácil, pois ela dorme cedo, bem antes de os galos cantarem, logo depois do primeiro apito do trem: longe demais, pela curva do curtume, além dos limites da cidade.

Sei que ela virá em meu encalço, prometeu que vinha, jurou sobre o caixão dele, olhando fixamente nos olhos sem brilho do pai. Amélia estava por lá, como se não compreendesse ainda o que tinha se passado, como se talvez pedisse desculpas. Claro que ninguém olhou para ela, que envergonhada se retirou em silêncio. Eu também gostaria de estar ali a noite inteira, bebendo o café forte de dona Maroca, olhando os olhos claros de Mercedes; tentaria com certeza estancar o rio de lágrimas daqueles olhos tristes. Sonhei com isto desde que nasci. Amélia me avisou do fio bem fino que move estes sentimentos; procurei não entender: os limites para mim estavam além das montanhas, muito distantes de tudo aqui. As cercas de maracujá não me prendiam como agora, e estes ratos impertinentes jamais me tiravam o sono. A casa era bem menor, ou eu não encolhera tanto ainda. Conhecia cada cômodo com outros olhos, olhos de sol nascente; os primos povoavam minha solidão, não me lembro de ter ficado sozinho um instante sequer. Os primos, todos agora mortos, não seriam talvez estes ratos que me atazanam a paciência? Amelinha teima que podem ser até tatus, bichos mansos mas que gostam de cemitérios. Não entendo esta inusitada associação; e ela se cala como se tivesse atravessado limites proibidos, logo ela que sempre media tão bem as palavras: pesava com cuidado cada pensamento, como se sua imaginação vasta pudesse ser captada pela minha mente acuada. Na verdade me atribuía poderes; desconfio que acreditava no que eu sempre dissera em silêncio. Dizia com um meio sorriso, em noites de descontração, entender as linhas infinitas que povoavam meu rosto; cada ruga significava um medo, mas bem por aí parava, ficando de repente séria: como se tivesse rompido a fronteira que nos separava e pisado em território proibido; como se de inimigos nós tivéssemos nos tornado cúmplices. Via com naturalidade minha desconfiança, não tentava abrir portas e janelas que me protegiam, nem tentava me encontrar em meus infinitos esconderijos nessa casa imensa: quando muito procurava ler os hieróglifos do meu rosto enquanto eu fingia ressonar em algum dos cômodos escuros da casa. Desenvolvi, com o tempo e a pouca claridade, a audição; talvez devido a isso escutasse tão bem o trabalho meticuloso dos ratos embaixo do assoalho.

Sei muito bem que ele não deixou herdeiro homem, apenas a filha regando o ódio dos filhos dela; mas desconfio que por essa época já tivesse chegado à conclusão de que faltaria tempo, que portanto urgiam providências. Pensando nisso me perco novamente pelos labirintos dos quartos, onde sei que ela jamais me encontrará. Planejo uma maneira competente de me proteger. Não sei por que associo os pensamentos dela aos ruídos subterrâneos da casa, talvez por serem quase imperceptíveis; também por virem sempre em noites de insônia, camuflados entre os mil ruídos da madrugada, entre um latido e outro dos cães da rua, entre os milésimos de segundos que separam o canto dos grilos, entre o chamado e a resposta dos galos deste e de outros quintais. E em meio a esta sinfonia de silêncios escuto assustado os pensamentos dela roendo as tábuas do meu assoalho, os teclados de madeira dessa casa secular que nos une a todos de nossa família, dos tetravôs que aqui chegaram aos dois sobreviventes que aqui nos escondemos. Suporto ainda por saber da inevitabilidade de tudo, de como cada ação está associada à outra num jogo de causa e consequência que foge ao nosso domínio. Não pretendo me entregar assim fácil, apesar de saber de minha incapacidade de impedir o fracasso. Os rostos das três gerações que consigo reter em minha memória me vêm nas longas noites de resistência, mas também me dão forças, talvez por saberem da parcela de culpa que têm em tudo que me aconteceu.
2


O dia passa rápido, porque são muitos os cantos da casa que preciso defender: minha irmã ultimamente não se dirige a mim, como se afinal houvesse compreendido a inutilidade de qualquer palavra, apenas me observa com seus olhos sem brilho. Tenho tomado conta da nossa residência, recentemente destruí dois cômodos no fundo do quintal e com os tijolos seculares vou fechando todas as portas e janelas. São infindos os cantos desta casa, a cada noite me escondo em um deles. Amélia me procura em vão, pois nunca tentou entender as passagens infinitas deste labirinto. Com orgulho e medo também espera, na verdade deseja isto desde aquela noite. No último ano terminei o lado sul, neste avanço para o leste; sem pressa porque bem sei que ainda tenho algum tempo. Amélia já não ultrapassa fronteiras, nada diz, somente me olha com seus olhos sem lágrimas. Mas também sei que só estaremos completamente salvos quando eu conseguir emparedar todas as entradas. Tenho me apressado nos últimos tempos devido aos insuportáveis barulhos dos ratos, parece que cavam cada vez mais próximos. Ela e Amélia não me encontrarão. Sabem que têm pouco tempo, por isso o barulho infernal dos camundongos esteja tão intenso. No próximo ano acumularei tijolos ao lado da porta da frente, o último elo que nos une: será por ali que ela entrará para se unir a mim e à Amélia, quando então prestaremos conta de tudo o que estas quatro gerações nos uniram e separaram.


Pedro Salgueiro nasceu em Tamboril (CE), em 1964. Publicou os livros de contos O Peso do morto (1995), O espantalho (1996), Brincar com armas (2000), Dos valores do inimigo (2005) e Inimigos (2007). Vive Fortaleza (CE).