Conto | Paulino Júnior

Maçã do amor

Vangloria-se de ser “uma balzaca que faz uns frilas de modelo” e brinca que “no currículo já foi de tudo”. O único trabalho dela que eu lembrava era a foto no encarte do CD de uma banda de rock da segunda divisão. Entre as demais habilidades que conta de si, havia a de boa pronúncia no inglês e afinação no canto. Diz que chegou a receber proposta de gravadora, mas não entrou em acordo porque só faria se fosse do seu jeito — um som diferente com músicos profissionais que ela indicasse.

Risos e gestos de concordância a incentivam ainda mais nos relatos de experiência e opiniões. Homem mesmo só eu e meu amigo na diversidade da mesa. Parecia que ninguém se importava por ela monopolizar a conversa, ao contrário, era a distração e argamassa daquelas pessoas que não queriam se sentir sozinhas enquanto observavam o ambiente do bar que começava a encher naquela sexta à noite.
Cada vez menos tem se importado com coisas como colocação social e fama. Ela é desencanada e gosta de curtir. Então começou com seu assunto favorito e declarou que iria reativar seu “polêmico” blog que falava de sexo. Algumas receitas de seu repertório foram dadas ali na mesa: com pau assim se faz assado, com pau assado se faz assim... A pequena plateia gargalhava e até batia palmas.

No entanto, faziam barulho mais para chamar a atenção dos que circulavam e menos por ela. Exceção feita ao seu poodle de estimação — que ria espalhafatosamente a cada fala, como se acionado por uma claquete de TV, chegando à fidelidade de pedir recordações: “Ei, conta aquela da boate que você conheceu a Vera Fischer” — e por mim.
Calhou de meu amigo nos apresentar nesta noite, com uma cutucada: “Toma cuidado: você vai ser a carne nova”. Eu já conhecia a fama dela desde a época que foi casada com o Caverna, um figuraça que chegou a ter algum sucesso à frente de uma banda de heavy metal e que depois descambou para outros gêneros na tentativa de emplacar alguma coisa.
a

O poodle dela não se aguentava. Ela carregava o gay a tiracolo como se fosse um cachorrinho de estimação. Sem recriminação, não deixava mesmo de ter graça os gestos coreografados para exibir curiosidades sobre celebridades que dizia ter conhecido nos “frilas da vida”, ou ridicularizá-las com intimidade. Conta que foi a primeira a tatuar uma estrela em cada ombro e ser descaradamente copiada por uma famosa atriz e modelo que posou pra Playboy. Quem pode testemunhar em seu favor é o chefe dos maquiadores da Globo, pois foi um dos primeiros a admirar e elogiar as tatuagens: “Que show! Você nasceu para brilhar!”. Ela solta uma risada para cima e mexe no cabelo como quem faz desfeita desse mundo das estrelas.
Largou a faculdade de Comunicação Social, com ênfase em publicidade e propaganda, porque não era bem o que pensava: “Teoria, teoria, teoria... Eu gosto é de prática!”. Puxou o celular, moveu os dedos pela tela e pediu para que fosse passado de mão em mão. “Que arraso!”, ganiu o poodle. “Ficou legal, né? Tá lá no álbum ‘Look do Dia’ no Facebook.” Depois revelou que estava estudando o cachê para estrelar uma performance em um vídeo.
O bar lotava, as pessoas na mesa foram se dispersando e decidimos fechar a conta para fumar em paz lá fora. De dentro da moldura, perto da porta, Johnny Cash mandava todo mundo se fuder. O poodle cochichou algo pra ela e, recebendo aprovação, se mandou. Ela olhou pra mim e disse “Vai atrás de um esquema dele”. Mostrei um sorriso sem querer demonstrar minha sensação de alívio. Porém, uma turminha logo se aproximou insistindo para que ela se juntasse a eles rumo à balada. Recusou com a justificativa de ter passado o dia “na correria dos frilas”. Meu amigo também foi para outro lado, mas antes me deu uma piscada cúmplice. Eu podia perfeitamente imaginar o que se passava naquela cabecinha, nas histórias que rolavam sobre ela.
De repente, ela se vira pra mim e convida para uma “saideirinha” em sua quitinete a alguns quarteirões dali: “no prédio que fica o Gula´s”. Então advertiu que apertássemos o passo para pegá- -lo ainda aberto, pois estava com fome e morrendo de vontade de comer um pastel.

Segurava uma maçã do amor enquanto a outra mão tampava o sexo. Os cabelos escuros cobrindo os ombros, as sobrancelhas em curva, os olhos esticados com lápis preto e os lábios borrados com um vermelho viscoso que escorria pelo queixo e cobria todo o corpo. Ospeitões siliconados ficavam ainda mais atraentes lambuzados por aquela gosma que representava sangue. O jeito que tampava a buceta também era especial, parecia que tentava estancar uma hemorragia. Lembrava uma vampira que tinha acabado de jantar e chafurdado no sangue da vítima. Não sei se é coisa da minha cabeça, mas algo dava a impressão de que não tinha matado a fome, eternamente insatisfeita.
A foto interna no encarte era sem dúvida a única coisa que prestava no CD.

Na quitinete ela torce a cara e afirma que odeia homem meloso, pegajoso, metido a “maridinho”. O principal motivo que a separou do Caverna foi que ele pegava no pé dela para que bancassem o casalzinho certinho — disse e botou a língua para fora encenando enjoo. Ela já era o contrário, incentivava que ele pegasse as fanzocas e ainda exigia que contasse tudo. Concluiu de si que tinha puxado para o pai, que era um bon vivant, diferente de sua mãe, que “não teve entranhas para segurar o marido”. Dou uma risadinha boba e imagino o que minha mãe acharia de uma mulher com um palavreado desses.
“Sabe que sou uma esteta, né?” Ela me diz e emenda com a informação de que, inclusive, já trabalhou em uma clínica esteticista. Porém, a autorreferência tinha outra referência. “Em qualquer profissão é necessário ter personalidade para inovar. Por exemplo, tem uma atriz que faz uma cena genial em um Blowbang. Os caras vão enchendo uma taça que ela segura. Um a um... Uns oito... e, sabe, estão cheios, são profissionais. Quando o último termina, ela dá uma balançadinha para misturar e mexe com o indicador como se preparasse um drink. Chupa o dedo, elogia o sabor, balança mais um pouquinho para aspirar o buquê e bebe devagar. Mas, aí é que tá: ela não toma! Segura na garganta e faz gargarejo. A coisa circula e vai borbulhando, espumando. Agora, olha só, o gran finale: ela passa a cuspir devagar sobre uma mesa espelhada, vai fazendo carreiras, uma por uma. Então ela pega a nota de um dólar e faz um canudo para puxar como se fosse cocaína. É brilhante!”

Ela termina com uma gargalhada e bate palma. Concordei e pedi mais detalhes sobre o vídeo. “Depois eu te passo”, ela me disse meio distraída e emendou bem à sua maneira: “Balzac acertou quando descreveu a mulher depois dos trinta como uma guerreira”. Concordei novamente e sugeri comermos os pastéis antes que esfriassem ainda mais.
Eu pedi um de queijo e um de carne com ovo, ela pediu logo um especial: “Com tudo que tenho direito, apesar das calorias”. Comemos com gosto. Entre mordidas e goles de cerveja, contou mais um de seus sarros: “Um cara que eu tava ficando zoou que a melhor coisa de passar a noite comigo era que dava pra comer o pastel do Gula´s logo de manhã...”. Olhou para o teto e depois voltou-se pra mim como se pensasse em voz alta: “O babaca se fudeu! Nunca mais dormi com ele”.
Enquanto ela ainda gargalhava, limpei a boca e avisei que estava na minha hora.

Paulino Júnior nasceu em Presidente Prudente (SP). É graduado em Letras e mestre em Teoria Literária pela UNESP de Assis (SP). Foi premiado no Edital Elisabete Anderle (Fundação Catarinense de Cultura) pelo livro de contos Todo maldito santo dia (2014). Publica toda segunda-feira um texto de ficção inédito no “Caderno Plural” do jornal catarinense Notícias do Dia. Vive em Florianópolis.