Conto | Miguel Sanches Neto

JUNTOS

A história que o Cândido publica integra a nova coletânea de contos de Miguel Sanches Neto, O móvel mundo, a ser publicada pela Companhia das Letras em 2014


Jogou no quintal as panelas que estava lavando. Ainda não tínhamos terminado de almoçar, mas nos levantamos em silêncio, fingindo que não acontecia nada, Jean perguntou o resultado do jogo da noite anterior, eu respondi que tinha sido zero a zero, e isso não nos deixou nem alegres nem tristes, não torcíamos para nenhum dos times, mas mesmo assim ele quis saber se ocorrera algum lance bonito, eu respondi que não, pelo menos durante o tempo que fiquei acordado, porque havia cochilado uns minutos.

Saindo da cozinha, já a caminho do portão, ainda ouvimos um último barulho, um prato contra o muro, que se espatifou longe de nós, mas um caco pequeno me acertou o braço, produzindo um pequeno arranhão. Levei a mão instintivamente ao lugar ferido, mas não disse nada.

— O que foi, pai? — Jean se assustou.

— Nada — eu disse. E continuamos andando pelo jardim.

— Não aguento mais esta vida — Amanda gritava lá com as sombras dela.

Ao sair na rua, vimos o vizinho da frente cortando a grama.

— Boa tarde, rapazes — ele nos cumprimentou.

— Boa tarde, seu Oswaldo — Jean respondeu.

Eu apenas sorri para ele.

E me senti em paz com o mundo. Éramos dois rapazes. Já entrado na meia idade, eu saía com meu filho adolescente para uma caminhada pelo bairro na tarde de sábado. Eu nunca tinha me preocupado com a idade, mas isso mudou quando fui ao dentista depois de quebrar um dente. Estava comendo uma broa italiana e algo se rompeu em minha boca, depois passava a língua e sentia o buraco. Não doeu, mas era ruim a sensação de um dente lascado. Com a boca aberta, as pernas cruzadas na cadeira, as mãos segurando uma toalha de papel e um babadouro pendurado no pescoço, eu disse que me sentia uma criança. E me lembrei da primeira vez que fui a um consultório, tinha a idade de Jean hoje. O dentista riu e disse que deve fazer muito tempo isso, pois você acaba de entrar na meia idade.

— Por quê?

— Na meia idade os nossos molares começam a se quebrar facilmente — ele disse e riu.


Também ri. E continuo rindo agora enquanto caminho com Jean. Nossos ombros se tocam sem querer e me vem uma paz muito grande. Uma moto barulhenta passa ao nosso lado, fazendo com que as palavras dele não sejam ouvidas.
— O que você disse?

— Para onde nós vamos?

— Não sei. Tem alguma preferência.

— Nenhuma. Queria andar bastante. Quando jogo bola com os amigos durante muito tempo, sinto minhas pernas desaparecerem. Já sentiu isso?

— Já, mas não jogando bola.

— É uma sensação boa, não é? Andamos como se tivéssemos flutuando. Eu me sinto meio fantasma nesta hora. Por que você está rindo?

— Nada — eu digo.

Mas fico admirando a inteligência e a calma deste filho. Não tira grandes notas na escola, apenas o suficiente para ir passando. Não se desespera diante dos exames mais difíceis. E sempre tem uma observação a fazer sobre as coisas.

— Que carro é aquele ali, pai?

Estávamos passando na frente de uma oficina de lataria, e havia várias carcaças de automóveis no pátio. No meio delas, um carro bege, todo comido de ferrugem. Falei a marca antiga.

— Rústico, né.

— Era o carro mais cobiçado na minha infância.

— Então é como se sua infância estivesse abandonada aqui nesta oficina.

— De certa forma, é isso mesmo.

— Uma infância enferrujada, que ninguém mais conhece.

— Você não conhecia esta marcada de carro?

— Não me lembro dela. São tantas...

— Naquela época, quase na havia carro importado. E mesmo os nacionais eram poucos.

— Devia ser chato, né? Todo mundo andando com os mesmos carros.

— Era diferente. O bom é que quando saía um modelo novo era um acontecimento.

— Devia ser mesmo.

— Agora, as fábricas lançam tantos carros que não dá nem para saber quais os últimos modelos.

— Mas também tem um lado bom.

— Qual?

— Você pode escolher o carro mais parecido com você.

— E qual se parece com você?
 
— Não sei ainda.

— Que carro você gostaria de ter?

— Tem hora que quero um modelo, mas daí uma fábrica lança outro, e mudo de opinião.

— Você está então com dificuldade de saber quem você é.

— Não é bem isso. Tem hora que quero um carro mais esportivo. Daí surge um modelo familiar moderno. E me encanto por ele. Quando acho que é aquele o meu carro, sai uma picape. Para um jovem, uma picape é interessante. Só carregar a namorada.

— Mas você ainda não tem namorada. Pelo menos que eu saiba.

Jean solta uma gargalhada. Estamos cruzando uma avenida. Há poucos carros, mas apertamos o passo. Assim que subimos na calçada do outro lado, ficamos em silêncio. É bom caminhar conversando. Mas é bom também fazer uns minutos de silêncio. Ao conversar, nós dois, interiormente, andamos para o mesmo lugar. Ao ficar calado, cada um segue por um caminho próprio.

— Para onde estamos indo? — ele me pergunta alguns metros adiante.

— Não sei. Lembra daquele carro velho?

— Claro. Faz só uns poucos minutos que passamos por ele.

— Para você é uma lembrança de poucos minutos. Para mim, de décadas.

Jean se calou. O sol esquentava nosso cabelo. Fiquei com vontade de tomar uma cerveja. Dez anos atrás eu tinha parado de beber. Não queria que meu filho aprendesse isso comigo. Com certeza, em breve ele vai começar a beber para se enturmar. Mas não terei nada a ver com a coisa. Amanda disse que era exagero de minha parte. Parar de beber só por um temor bobo. E agora eu vejo a falta que faz esta cumplicidade alcoólica entre pai e filho.

— Quase uns 30 anos atrás, eu tinha uma mania. Gostava de ficar olhando os carros com meus amigos.

— Como era isso?

— Na minha cidadezinha não tinha muito o que fazer.

— Sempre invejei a sua infância na rua.

— Não vou dizer que tenha sido ruim, mas faltava muita coisa.

— Então vocês ficavam olhando carro.

— Poucas pessoas tinham carro novo. Os vendedores iam a São Paulo para comprar modelos usados. Eram principalmente esses carros que circulavam na cidade. Apenas os mais ricos iam para um outro município comprar um zero quilômetro.

— E virava uma festa a chegada.

— Bem isso. Lembro de uns irmãos, eram seis se não me engano; colheram muita soja num ano e cada um comprou um modelo daqueles. Seis cores diferentes. Entraram na cidade soltando rojões, uma fila de carros reluzentes, sem placa. As pessoas saíam na rua, deixavam o que estavam fazendo para ver o desfile. Num único dia, chegava à cidade um número de carro zero maior do que o do ano todo.

— Foi a primeira vez que você viu aquele modelo?

— Não, eu já o conhecia. Como falei, a gente gostava de ir até a rodovia, sentar num muro sob uma goiabeira, e ficar contando os carros. Cada um escolhia um modelo e o que contasse um número maior era o vencedor.
— Parece legal. Quem de vocês viu o primeiro carro daquela marca?

— Eu. Um tarde, meu pai chegou em casa bêbado. Minha mãe começou a brigar com ele, dizer que não suportava ver o marido assim, destruindo a vida dele com a bebida. Já tinha perdido o serviço. Era ela quem sustentava a família, vendendo roupas de casa em casa. A mãe um dia disse que ele não tinha dinheiro nem para pagar o açougueiro, mas sempre arranjava para a bebida. Eu estava assistindo a um desenho na tevê preto e branco, presente de uma amiga da mãe, tevê velha, chuviscando sem parar. Não me lembro do desenho.

— Sempre achei que a sua memória não fosse boa — Jean disse, rindo.

— Mas ainda ouço o barulho do tapa. Um eco que percorreu a casa toda. E depois o silêncio. Daí a mãe dizendo que odiava ele, nunca perdoaria aquilo. Não me recordo de mais nada.

— Você nunca tinha me contado isso.

— Saí correndo pelo quintal, e quando cheguei na calçada continuei correndo. Não corria de meus pais. Corria de mim mesmo. Eles ficaram lá brigando, e aquilo seria o começo da separação, que só viria uns meses depois. E logo em seguida a morte dele. Voltou em casa algumas vezes, a mãe o tratava com educação. Servia um café doce, ele só gostava de café bem doce, contava como eu estava indo na escola, essas coisas. Ele nunca me trazia presentes, e cada vez aparecia com as roupas mais velhas. Sóbrio, mas com uma vermelhidão e um inchaço no rosto que diziam tudo. Quando morreu, a mãe levou roupas novas para ele, das que ela vendia aos clientes dela, e me lembro de ouvir ela dizendo que estava quatro números maior do que era.

— Olha aquela lanchonete ali, não quer sentar um pouco?

Sem responder a ele, os olhos embaçados, fomos para a lanchonete, escolhemos cadeiras na parte externa. O garçom não nos atendeu logo.

— Sabe, Jean, eu saí correndo aquela tarde, e juro que pensei em me atirar debaixo de um caminhão. A sorte é que a rodovia ficava a algumas quadras, eu logo fui diminuindo o passo, olhava as casas, os quintais. Tinha amigo em todos os lugares. Eu não me sentia filho único. Éramos uma família imensa naquela rua. Mas na hora não encontrei nenhum amigo, está certo que não fui na casa de ninguém, apenas passava na frente, olhava e seguia. Se tivesse encontrado alguém, teria parado. Já não pensava em me atirar embaixo de nada. Tanto é que, assim que cheguei, já subi no muro e me sentei bem quietinho, como se estivesse na escola.

— Pai, você disse que nunca ficou quieto na escola. Que aprontava o tempo todo.

— Então mudo a frase. Quietinho como eu deveria ficar na escola.

Nós dois rimos. O garçom tinha se aproximado. Estava com uma agenda eletrônica na mão.

— Para mim um suco de morango — Jean disse.

— O mesmo — eu disse, e olhando o cardápio.

— E duas tortas de maçã.

O garçom se afastou.

— Vamos agora voltar de novo no tempo, porque deixamos um menino sentadinho no muro, olhando os carros. Siga em frente, pai.

— Fiquei uns minutos ali, sem prestar atenção nem nas marcas nem nas cores dos carros.

— Seu mundo tinha ficado preto e branco.

— E chuviscava, como na nossa tevê.

— Então...

— Bem, não foi assim tão rapidamente. Devo ter pensado em muitas coisas. Visto pessoas cruzando a rodovia. Acompanhado o canto dos pássaros, essas coisas todas que acontecem numa cidade do interior. Um vira-lata deve ter aparecido. Uma carroça com um cavalo velho pode ter passado. Não consigo saber ao certo quanto tempo fiquei ali.

Chegaram os nossos pedidos. Bebemos o suco no canudinho. Demos garfadas gulosas na torta de maçã, que tinha muita canela. Sorrimos um para o outro com os lábios sujos de açúcar. E tomamos ao mesmo tempo mais um gole longo do suco.

— Não é que está bom — eu falei.

— Poderíamos ter pedido de goiaba, em homenagem à sua infância de quintais cheios de goiabeiras.

— Voltando de novo. Então olhei para o asfalto e vi um carro diferente. Não conhecia nada parecido com ele. Nos horários que eu via tevê, não havia propaganda deste carro. E eu, louco pelos filmes de ficção científica, pensei que pudesse ser uma espaçonave que me levaria para bem longe dali.

— Que cor era o carro?

— Vermelho, e isso me deu uma alegria. O meu mundo ganhava cor.

— Como você soube que era aquela marca?

— Ele se aproximou diminuindo a velocidade, ligou a seta, e entrou bem lentamente na esquina da rua onde eu estava. Pude ler a plaquinha de metal na tampa do porta-malas. Na mesma hora, desci do muro e saí correndo. Logo estava na casa do Cléber, meu melhor amigo. Bati, a mãe dele atendeu, me viu e chamou o filho. Contei a novidade. Tinha visto um modelo novo. Depois fomos para a casa de outros amigos. E todos ficamos sentados no muro por umas duas horas, mas ele não voltou e nenhum outro passou.

— Vocês vão querer mais alguma coisa? — o garçom perguntou.

Respondi que não, pedi e paguei a conta, saindo para nossa caminhada. Já eram quase três horas. Tínhamos que ficar fora até o sol se pôr. Poderíamos ter saído de carro, mas isso causaria irritação em Amanda. Estávamos limitados às nossas pernas.

— E se pegássemos um ônibus?
— Prefiro a pé, pai.

E fomos andando até quase o centro, vendo vitrines, fazendo pequenos comentários sobre coisas que tínhamos que providenciar em casa. Ninguém tocava no nome de Amanda. Paramos mais uma vez para comprar garrafinhas de água — com gás para mim, sem gás para Jean. Dois perdidos no deserto urbano. Havia poucas pessoas na rua e isso nos dava a sensação de sobreviventes depois de uma grande catástrofe, de uma epidemia qualquer que houvesse dizimado a maioria da população.

Sem nenhum acerto entre nós, fomos tomando o caminho de volta. As pernas estavam doendo. Vinha aquela sensação de que Jean falava, de fantasmas flutuando poucos centímetros acima do chão. Quando chegamos em nossa rua, tocamos no assunto até então silenciado.

— O que você acha? — Jean me pergunta olhando para o nosso quintal, que ainda está longe.

— Da outra vez demorou bastante tempo.

Sentimos alguma ansiedade, mas ao invés de acelerarmos a caminhada, retardamos nossos passos. Os vizinhos já estão dentro de suas casas na noite que se inicia. Algumas luzes se acenderam na rua, outras ainda não. Quando passamos embaixo de um dos postes, a lâmpada se acende. Olhamos um para o outro, agradecidos ao Deus elétrico, que nos distinguiu.

Paramos na frente da grade do nosso quintal. As luzes externas brilham, não há panelas na grama. Abrimos o portão com cuidado, voltamos a conversar sobre futebol.

— Será que vai ter algum jogo importante na tevê hoje?

— Ainda não vi — eu respondo.

— Se não for muito tarde, talvez assista.

Com a chave que sempre carrego comigo, abro a porta da cozinha. Amanda está no quarto, e houve nosso barulho.

— São vocês?

Há um cheiro de açúcar no ar. Um cheiro bom. Somos envolvidos por esse aroma ancestral. Ela aparece de cabelos úmidos e roupas limpas. Ficamos em pé na cozinha, como se fôssemos estranhos. Amanda sorri, se abaixa e abre o forno do fogão.

— Fiz um bolo — ela diz, retirando a forma e colocando sobre a mesa, onde estendeu uma toalha nova, de um tecido plastificado, todo xadrez. Noto que a toalha está no avesso. Apreensivos, sentamos para comer. Cortamos o bolo com atenção. Comemos pequenos pedaços. Sem elogiar. Amanda odeia elogios.

— Mãe, me passe a geleia — é a primeira vez que falamos algo.

— É de goiaba. Seu pai adora.

Diz isso e ri para mim, amorosamente.