Conto | Luiz Paulo Faccioli

Amor V

Ficamos afinal livres. A vida corre com a suavidade do outono, suas sombras alongam-se preguiçosas na paisagem dourada neste sol de tarde, o tempo é apenas um calçamento irregular mas sereno para as nossas convicções tão retas. Foi-se a insegurança da pressa, foi-se a angústia de querer sempre a certeza de tudo. Pouco a pouco fomos descobrindo que nada é eternamente perfeito nem perfeitamente eterno, só esta imprecisa luz de outono, no meio de uma tarde no outono, assim morna, sem gravidade, sem peso ou medida, vaga, ampla, confortável. Ficamos afinal confortáveis depois de todos estes anos, polidos nas sucessivas perdas, pedras agora suaves, lisas. Assumimos também o gosto pelos adjetivos: pessoas, animais e coisas não cabem mais nos respectivos nomes. E não há secura capaz de nos encantar com alguma suposta virtude. As frases ficaram maravilhosamente longas, ingenuamente vagas. Demos um basta à concisão ao desejar que tudo seja agora caudaloso, incauto, interminável. 

Envelhecemos. 

E, assim como nossas frases, nos julgamos também intermináveis. 

Será possível, Eugênio, viver para sempre?

Há tempo vinha pensando na hipótese do nosso fim e ela continuava sem fazer nenhum sentido. Ao me fugir a compreensão, acabei acreditando na eternidade, pelo menos naquilo em que ela nos dizia respeito. Creio que não fosse muito... nem somos assim tão velhos para que eu pensasse como se já estivéssemos prontos a morrer. Ainda não era o caso. Sessenta anos os dois, e todas as condições para chegarmos bem vivos aos oitenta, noventa quem sabe. Mais não sei, porque não consigo vislumbrar além. Ficamos de repente eternos, estranha mesquinhez para quem já perdeu tanto. Primeiro a vergonha, antes mesmo que se fossem os parentes e com eles o mais severo dos julgamentos. Não criamos descendência, mas teria sido legítimo lutar por uma. Se quando jovens as coisas eram bem mais complicadas do que hoje são, agora mais do que nunca me arrependo de não ter ao menos tentado. Apesar de tudo e contra todos, vivemos bem até aqui. 

Pelo menos, vivemos muito bem até agora. 

Faltou apenas um filho. Queria muito que uma criança tivesse brincado nesta casa, quebrando alguns enfeites e a ordem tão ciosamente guardada ao longo dos anos. Um pouco de bagunça e de irritação nos teriam feito um grande bem. Aqui tudo foi sempre calmo, limpo. Depois de termos nos acostumado um ao outro, depois de os outros terem se acostumado conosco, uma tranquilidade excessiva nos invadiu. Deveríamos tê-la rompido de alguma forma. Nós, antes sempre tão fogosos, cometemos então a placidez do recato. Antes, quando ainda sentíamos alguma culpa, chegamos à conclusão tácita de que nossa casa talvez não fosse o lugar mais adequado para se criar um filho. Julgávamo-nos talvez indecentes, embora sem nunca termos pretendido renunciar ao que escolhêramos para nossa vida. E ela acabou decidindo por nós a calmaria. 

Mas já passamos por poucas e boas. Lembra, Eugênio, quando tentaram nos expulsar do prédio? 

Culpa daquele casalzinho. Eles recém haviam chegado com suas duas filhinhas insuportáveis e logo passaram a implicar conosco. Disseram que não éramos um bom exemplo para as meninas, viravam a cara ao nosso cumprimento. Pobre gente, nunca souberam qual era a verdadeira história. No começo, conseguiram o interesse de alguns poucos, tímidos, mas no fim a vizinhança inteira acabou se voltando contra eles: não porque alguém estivesse preocupado em nos defender, senão porque ninguém mais tolerava as duas pestinhas. O filho que sonhei em nada se pareceria com elas. Imaginei-o igual a Eugênio, educado, culto, bonito. Teríamos muito orgulho, a casa viveria sempre cheia, primeiro os colegas de escola, depois os amigos, as namoradas, por fim a mulher e os filhos: nossos netos. Se tivéssemos adotado uma criança, já seríamos talvez avós. 

Você nunca pensou em ser avô? 

Não, não consigo imaginá-lo posando de avô. Apesar dos sessenta e dos modos agora um pouco mais reservados, ele nunca perdeu o ar malicioso, o mesmo de quando era jovem, nem o hábito de esconder de mim suas revistinhas pornográficas. Eugênio pensa que eu não sei que ele as coleciona, como se fosse possível manter esse tipo de segredo entre nós depois dos anos todos de convivência. Mas ele ficaria muito constrangido se eu o desmascarasse, por isso fingi sempre não saber de nada. Eu também gosto de ver aquelas fotos, mas nunca tive coragem de confessar: não sei como ele teria reagido à minha franqueza. Ele sempre desejou de mim algo que eu não podia dar, uma fragilidade que nunca tive, uma dependência que eu nunca senti em relação a nada ou ninguém. Mas aos poucos fui cedendo, e ele acabou por se tornar o homem da casa. Parece incrível que eu tenha chegado ao cúmulo de ostentar marido e sonhar com filho, duas hipóteses que jamais frequentaram meus planos. 

E agora isto. 

A vida à qual Eugênio e eu nos propusemos não contava com essa naturalidade toda. 

O que foi que aconteceu com a gente? 

Nós não crescemos juntos. Morávamos em cidades diferentes, as famílias raramente trocavam visitas. Eu era filho único, ele tinha um irmão mais velho, poucas vezes nos encontramos durante a infância. Onze anos os dois quando aconteceu o desastre. Ao deixar o hospital, ele veio morar conosco. Lembro-me dele chegando em nossa casa, quietinho, assustado, com o braço muito magro apoiado numa tipoia e a cabeça metida num enorme curativo. Salvo por milagre, repetiam todos. Cuspido para fora do carro, único da família a ter a sorte de escapar ao incêndio que sucedeu à batida. Milagre, sorte, eu duvidei de ambos ao vê-lo num desamparo tão grande nesse dia como nunca voltaria a ver ninguém. Ele jamais quis falar sobre o que presenciou na noite do acidente, eu tampouco perguntei, e deixamos ao tempo a tarefa de nos fazer esquecer que esse havia sido o começo.

Posso pedir que você passe um café antes de ir? 

De repente, o desejo de sentir o cheiro de café recém feito. Ninguém prepara um café tão bem quanto Eugênio, o meu sai sempre aguado, o dele é sempre no ponto. O café é apenas uma de suas várias habilidades culinárias, a mais singela, a menos reconhecida pelos outros, mas hoje é desse cheiro que eu preciso. Perfume de café novo invadindo a casa, com ele a certeza de uma autêntica tarde de quase inverno e esta minha necessidade tão nova e insistente de me apoiar no passado. Por que logo hoje, depois de tanto tempo sem pensar no assunto? Há muito Eugênio parece não se importar com nada do que eu falo, e as nossas recordações tornaram-se agora só minhas. 

Que história mais doida a nossa, Eugênio! 

Desde quando chegou, meus pais sempre o trataram como a um filho, mas para mim ele nunca foi muito igual a um irmão. Juntos cursamos o último ano do primário, depois o ginásio, fizemos travessuras, descobrimos o sexo mexendo com as coleguinhas na saída do colégio. Entramos na vida de mãos dadas, e assim vivemos até hoje. Meu pai morreu quando tínhamos quinze anos. Nessa época, nos unimos ainda mais: a dor nos aproximou muito além do que talvez devesse. Alguns anos mais tarde, a mãe chegou a acompanhar nossa intenção de sair de casa para vivermos juntos. Foi muito difícil para ela, e não creio que tenha realmente aceitado. Era como se dois filhos decidissem casar um com o outro, mas ela pediu que ficássemos. Afinal, nós três éramos os últimos. Ela nos deixou alguns meses depois, sem nunca ter compreendido o que realmente nos acontecia. Eu pensava saber até há pouco. 

O cheiro bom chega finalmente da cozinha. Ninguém passa um café tão bem quanto meu primo. De repente ele voltou a ser apenas isto: meu primo. 

O que me fez acreditar, Eugênio? 

Ficamos afinal livres. As sombras do outono continuam a se alongar preguiçosas na paisagem dourada neste sol de tarde. O tempo é ainda um calçamento irregular, talvez não mais tão sereno: desde o começo pensei que seria para sempre, mas não foi. Pedra mais uma vez polida. Nada é eternamente perfeito nem perfeitamente eterno, nem este sol, nem esta suavidade. 

Ele vai com quem agora escolheu. 

Eu fiquei preso a esta tarde. 

O que me fez acreditar que a eternidade era possível?

Luiz Paulo Faccioli nasceu em Caxias do Sul, em 1958, e lá viveu até 1977, quando mudou-se para Porto Alegre, cidade onde mora atualmente. É músico, compositor, juiz Allbreed e Instrutor pela The International Cat Association — TICA. Autor de Elepê (contos, 2000), Estudo das teclas pretas (novela, 2004), Cida, a gata maravilha (infantojuvenil, 2008) e Trocando em miúdos (contos, 2008), participou das antologias Porto Alegre: curvas e prazeres (contos eróticos, 2002), Os cem menores contos brasileiros do século (2004) e 35 segredos para chegar a lugar nenhum (crônicas, 2007), entre outras. É crítico literário e colunista de literatura da rádio Band News Porto Alegre.