Conto - Luís Roberto Amábile

O herói peludinho

Luís Roberto Amábile

ilustra
Magro demais, o nariz grande demais, os pelos nascendo demais, a qualquer hora, de repente, a qualquer momento, incontrolável. Esta é a situação do herói numa noite de lua minguante de 1990.

O herói tem 13 anos e apenas começa a se dar conta de que não entende quase nada. Entende um pouco de filmes, isso é verdade. Sempre se empolgou com filmes, desde O pássaro azul e a Branca de neve na sessão da tarde e depois todos os Supermans e Rockys e os Karatê Kid e, claro, como não?, De volta para o futuro, e tantos outros, tantos, e ainda aquele que não se lembra o nome, nem é um filme tão bem feito, mas antes de dormir ele vive se lembrando, o da professora que se perde com a turma de crianças numa caverna e, em algum momento, ela fica só com a roupa de baixo, a professora de calcinha e sutiã, mergulhando num rio subterrâneo para achar a saída da caverna.

Então o herói sempre gostou de assistir a filmes, todo mundo gosta, mas ele mais. E ultimamente atingiu outro nível. Transformou-se num cineMANÍACO.

Vai ao cinema toda semana, uma vez pelo menos (iria mais, mas só há uma sala na cidadezinha, que exibe o mesmo filme a semana toda, às vezes repete por duas semanas). O videocassete foi inventado para ele, a videolocadora sendo seu paraíso. E as revistas. O herói devora Set, Cinemim, VideoNews e tudo o que lhe cair nas mãos. Ler sobre filmes é quase um orgasmo, mesmo que ele não saiba direito o que é isso (até sabe, mas não entende). E com o guia...

Sua leitura de cabeceira, a que lhe dá mais prazer, é uma enciclopédia de astros e estrelas. Lê e relê a se imaginar um deles. Claro, mora em outro país, que quase nem faz filmes, mas ele ainda é novo, e tem um ótimo plano. Já está tudo planejado, na verdade. Vai escrever seus próprios roteiros, só está estruturando (nos mínimos detalhes) as histórias em sua cabeça antes de pôr no papel. Mas vai ser em breve, até já reservou um caderno, aquele com a capa translúcida do Indiana Jones e a última cruzada. Levantará todo dia no escuro, às cinco e, escreverá vertiginosamente até as seis. Antes da realidade bater na porta do quarto (Filho, vou fazer café, se arruma) e ele ser obrigado a mergulhar no mundo de todo dia, ele vai criar o seu próprio.

Então ele adora ler sobre a vida dos astros, projetando um astro e projetando-se e delirando com as atrizes. Com muitas passaria a noite, com outras teria um caso, nada sério, e com algumas namoraria por um tempo. E com uma, uma só, o, depois de dormir com tantas, herói casaria: KIM BASINGER, a estrela de Batman, Encontro às escuras e 9 ½ semanas de amor.

Kim Basinger nasceu vinte quatro anos antes dele. Ela tem 37, a idade da mãe dele. Mas o que importa isso? O herói nem imagina a existência do complexo de Édipo, Kim Basinger é a mulher ideal e ele só quer uma vida ao lado dela numa mansão nas colinas da Hollywood. KIM BASINGER, ele pensa no espelho ainda embaçado pelo vapor do chuveiro e enxerga mais uma vez o nariz enorme e seboso, cheio de pontinhos pretos. Um astro narigudo? É preciso ter esperança, ele é jovem e pode fazer uma operação plástica. Se o Michael Jackson mudou de cor, ele pode ficar com um nariz perfeito. E os músculos? O Tom Cruise não tem músculos? O Rob Lowe? O Corey Haim? Até o Michael J. Fox tem músculos. Mas músculos se conseguem, eu ainda vou encorpar, posso fazer academia, eu NÃO sou um caso perdido, EU TENHO JEITO. E o jovem herói desajeitado se anima mais uma vez, esperançoso num futuro cinematográfico.

E chega de pensar, porque uma característica dos heróis, além de serem homens de valor, magnânimos, é que também são homens de ação, sobretudo agem, interferindo no mundo, até se sacrificando para mudá-lo. E chega de pensar porque o pai (heroísmo não genético, ele já chegou a essa conclusão) está batendo na porta do banheiro, a família de saída para a casa dos tios do herói, aniversário de seis anos da prima.

Espreme o nariz para fazer saltar os pretos e, de nariz vermelho, se veste depressa.

O grosso da festa é nos fundos da casa, numa pequena área, onde o tio faz churrasco e todos se apertam para comer e beber. Mas o herói nem vai até lá para sentir-se deslocado entre os familiares e os conhecidos de sempre. Fica na área da frente, olhando sozinho o não-movimento da rua por um tempo, depois prestando atenção ao movimento das crianças menores, a sua prima, as colegas, a Lidiane. Tenta conversar com os meninos-homens da sua idade. Troca impressões com o Polenta e o Buru sobre Distrito Industrial, que acabou de ser inaugurado e tem poucas indústrias e muitas ruas de terra. Combinam de talvez andar de bicicleta por lá no fim de semana. Falam também de desligar a chave de luz.

A chave de luz fica ali na frente, todos os adultos estão nos fundos, e no Sociedade dos Poetas Mortos o Robin Williams de professor sobe na cadeira e pede para os alunos fazerem o mesmo: “Vejam o mundo de uma perspectiva diferente!”. E fazer as luzes se apagarem não seria um outro modo de ver aquela realidade? No escuro as pessoas poderiam se revelar. Tudo isso passa pela cabeça dele, não de forma ordenada, não que ele saiba exatamente, e nada disso ele diz ao Polenta e o Buru. Apenas solta algo como “Pô, ia ser legal apagar a luz”, eles concordam, e a Lidiane passa saltitante.

O herói gosta de escuro, da penumbra, do lusco-fusco. A sala de cinema não é assim? E uma súbita escuridão poderia dar uma animada, talvez abalando as certezas de mais uma festa de família. Vocês topam? Mas o Polenta e o Buru não são heróis. Eles receiam, e não que o herói não receie, ele não é medroso, como todo herói que se preze ele enfrenta os seus medos. Eles davam cobertura pelo menos? Ficavam quietos?

O Polenta e o Buru vão ficar quietos, mas vão para os fundos, abandonando o herói no meio das crianças, da Lidiane.

O herói está sozinho, e a Lidiane, mas quando não esteve?, e a Lidiane, mas que herói não está?

A Lidiane tem uns sete anos e o herói pode jurar que ela é a versão mirim da Kim Basinger. A Lidiane é loirinha, loirinha, de lindos olhinhos cor de mel e narizinho arrebitado, e pelinhos do braço descoloridos pelo sol que ela toma enquanto brinca nalguma piscina de plástico daquela de armar. Obviamente os braços, talvez as pernas, são os únicos lugares em que nascem pelos na Lidiane, mas no futuro... E a Lidiane tampouco tem peitos como a Kim Basinger, nada de peitos para Lidiane, mas no futuro... Ah, se o herói tivesse um carro com porta que abre para cima movido a plutônio que viajasse no tempo. Mas chega de projetar, o futuro é agora, ele é um herói de ação, e cortaram o cabelo da Lidiane como o da Kim Basinger em 9/2 semanas de amor”, a pequena e curvilínea Lidiane... E vai acontecer de novo, ele pode sentir, é como nos filmes, o herói agora já sabe, é uma das poucas coisas que ele sabe (apesar de não entender), a metamorfose. Olha lá a Lidiane com seus pequenos lábios grossos e cabelos levemente encaracolados e cortados na altura dos ombros... E nem é noite de lua cheia, mas nem precisa, ele é um lobisomem diferente, ah, ele e a Kim Basinger andando abraçados no cais, ele e seu corpo a ficar peludo, a Kim Basinger dançando de camisola rosa, como ele pode explicar? Ele ainda não se acostumou, e a Kim Basinger só de chapéu, os cabelos cacheados na altura do ombro, os cabelos fugindo do chapéu, as roupas fugindo da Kim Basinger, ela só de chapéu e ele todo peludo, duramente peludo... Que dureza, como explicar? E mesmo com a música que vem do fundo consegue escutar o creque dos botões da chave de luz, e os adultos gritam no fundo da casa, e as crianças gritam ali perto dele, e cadê a Lidiane com aquela bundinha já arredondando e o arzinho inocente?

E o jovem lobisomem se dobra para falar com a Lidiane, tão mais baixa que ela é, que delícia de baixinha que lembra a Kim Basinger. E o heroizinho maníaco desliza, mas com atrito, suas mãos peludinhas pela Lidiane, que faz uma cara de quem não está entendendo nada, de novo ele repara nos pequenos lábios grossos dela, agora entreabertos, bem Kim Basinger mesmo.

Auuuuu!

Logo depois ele acendeu a luz e já vinham adultos reclamando. Que tinha de ser você, né, Nelsinho? E ele foi para a rua sem dizer nada. Ficou olhando a lua minguante, a lua torta no céu, e ele a olhando e tentando voltar a pensar. E uivando.


Luís Roberto Amabile nasceu em Assis, São Paulo, em 1977. Estudou teatro e jornalismo na USP. Foi repórter de cultura, turismo e gastronomia nos jornais Folha de S. Paulo, Estado do S. Paulo e na Editora Abril. É autor da peça No bico do corvo e do livro de contos O amor é um lugar estranho. Vive em Porto Alegre (RS).

Ilustração: Felipe Rodrigues