Conto | Katherine Funke

Quando Ale passou por Ali

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Ali era o lugar onde conheci pessoas loucas morando dentro de máscaras coerentes. Ali era nosso bar. Estúdio criativo, prolongamento do expediente, cérebro coletivo. E só no Ali serviam countreau no chá preto numa dose perfeita.

A gente adorava este nome: Ali. Lembrava do nosso poeta favorito, Waly, e do eterno sonho com um lugar onde todos os nossos planos se concretizavam. Quem batizou foi Iara. Ela também fez o cardápio, montou a biblioteca, a coleção de vinis. Decorou a casa de um jeito só dela. Não haveria nada, não haveria Ali, sem Iara. Nossa musa. Arquiteta. Viúva do Beto, fotógrafo, meu antigo companheiro de viagens, fundador da ideia de abrirmos um bar que fosse só nosso.

Éramos uma turma boa, sem neuras, cada um na sua arte e todos sempre por Ali.

Mas um dia apareceu o Ale. Filho de Débora. Débora, a ilustradora, sabe? É. Aquela, do jornal. Então; o Ale tinha voltado de Londres, de uma temporada por lá. Tinha uns dezessete anos, acho. Bonito. Impetuoso. Gênio forte. Mimado. Já chegou querendo mudar tudo.

Ali era de fazer qualquer mente criativa babar; ali nossas mentes atingiam grande número de rotações por minuto. Mas Ale achava Ali quieto, parado demais.

Lembro bem. No exato instante em que ele reclamou pela primeira vez, a gente sorvia o chá matizado e escrevia, lia ou desenhava, cada um na sua ou no máximo num papo em dupla. Ouvíamos o Bitches Brew do Miles Davis.

“Isso aqui precisa de um agito”, ele anunciou.
Fritou os miolos até descobrir um jeito de trazer novos clientes. Sem mais aviso, apareceu com uma turma que chamava de amigos. Não passava de um bando de que reclamava e alterava o lugar das coisas sem parar. E ainda alugavam Yago, nosso garçom querido, com observações sarcásticas a respeito da temperatura da cerveja.

“Precisa gelar de verdade ou não voltamos mais aqui”, diziam, hereges.

Iara não se desesperou. Juventude tinha de agir como juventude, era assim mesmo. Comprou um freezer novo.

Ali não servia cerveja antes do Ale.

Iara sempre dizia que financeiramente não valia a pena. Muitos de nós não fazíamos questão. Para papear com cerveja íamos a outros lugares. Havia muitos outros bares bons na cidade.

Ali era diferente, único. Tinha outros tipos de bebidas. Destilados, cachaças, countreau, cafés, chás. E você também podia ficar Ali e beber apenas água do filtro de barro e pronto, ninguém enchia o saco.

Mas as coisas estavam mudando muito rápido. Débora achava legal o filho ter iniciativa. E Iara era louca por Débora; eram amigas desde criança. Logo, Iara achava ótimo toda e qualquer mudança. Aplaudia comovida em ver Ale se despedir da infância.

Então a gente acompanhava. Só acompanhava. Mas a presença de um e outro rareava. Eu entendia meus amigos. Claro. E comecei a encher meu caderninho numa fúria ansiosa de quem sente que um tempo bom vai se acabando.

Iara aplaudiu quando Ale trouxe a guitarra. Comentou que achava incrível nenhum de nós ter tido essa ideia maravilhosa antes: música ao vivo! Gostávamos do chiado dos vinis. Estávamos mesmo ficando velhos.
Ale cantava e trouxe uma banda para acompanhar. O repertório tinha músicas da moda adolescente. Nenhum clássico, nenhum repente... O som da banda do Ale e os fãs do Ale e os amigos do Ale e o Ale foram preenchendo todos os espaços de Ali.

Em poucas semanas, o meu chá começou a chegar frio. Com pouco countreau. Nosso garçom desesperava. Havia pedidos demais das outras mesas. Cervejas. Cervejas. Cervejas. Yago até esquecia de encher o filtro de água.

Vieram outros, com guitarra na mão, cheio de certezas. Com suas garotas enfezadas, que cheiravam cocaína no banheiro. Turma da pesada. Enfezadas, feias e enfeitadas. Perdidas.

Ali ia ficando pequeno e inconstante. Boa parte de nós não nos encontrávamos mais. Passamos muito tempo nos desencontrando, fugindo de Ale, ali.

Mas aí chegou a época do vestibular. Ale queria estudar medicina em São Paulo. Entrou na rotina de cursinho. A turma dele desapareceu. Tão de repente como vieram, sumiram.

Ali voltou a ser ali, mas um freezer vazio ocupava o antigo lugar da estante de vinis.

Ali não era mais lá a mesma coisa.


Katherine Funke
, 32, é autora do livro de contos Notas mínimas (2010) e do romance Viagens de Walter (2013). Vive em Salvador (BA).

Ilustraçãp: Diego Gerlach