Conto | Jorge Filholini

O irmão que escolhemos

"Preciso de sua ajuda.” Foi o que Carlos me falou quando abri a porta. Ele, todo molhado, com os olhos arregalados, encolhido, quase corcunda, bota de couro desbotada, magro, com covas nas bochechas. Levantou a mão direita como se pedisse perdão e não ajuda. Eu, com o óleo no fogo para as fritas, água fervendo para o macarrão, long de Stella, a camisa do Star Wars — Han shot first, bermuda amassada com respingo de molho de tomate. No som do note um solo de Charles Mingus, enquanto o torrent baixava mais um capítulo do presidente Kevin Spacey. Seria uma noite perfeita, mas o irmão bateu na porta.

“Preciso de sua ajuda, irmão.”

O irmão que a gente escolhe. O irmão de viradas de noites no boteco, de desavença ideológica, de se abraçar quando aconteciam brigas nos relacionamentos de um ou de outro. O irmão sangue bom. O irmão dos negócios. O irmão do crime. O irmão que agora abre a bolsa e deixa cair
lápis
moedas
garrafa de água sem gás vazia
tampas coloridas de refrigerante
um guarda-chuva pequeno
fone de ouvido branco
mais moedas
Halls pela metade
papeis de halls
e, finalmente, a carteira.
Passa o zíper, dentro nenhum sinal de animais em extinção. “Nem uma onça, meu irmão”, me olha de baixo para cima. Sou maior, estou por cima.
 
“Preciso de ajuda”

Ele continua. Quase se ajoelha. Olho para o teto. O que aprontou? E agora, o que faço com o irmão?

“Preciso de sua ajuda, eles estão no meu pé. Fiz merda, e das grandes. Foi em Matão, entrei num esquema sem volta. Fugi com doze quilos de coca. Trouxe pra cá”.

Porra! Como é que é? Aqui?

“Eles não sabem que estou aqui, eu fui cuidadoso, não sabem de você. Não sabem do nosso passado. Tomei cuidado. Eu devia ter feito o mesmo, abandonado tudo. Como você fez”.

Fiz! Larguei essas paradas de assalto, assassinato, roubo de carga e distribuição de drogas.

“Me ajude. Preciso. Se eu voltar vão me matar. Me torturar. Me queimar vivo. Arrancar meus dedos, meus pés, meus braços. Farão do jeito que fazíamos naquela época. Não quero voltar. Não devia ter feito isso, mas precisava de dinheiro”.

Ele chora! Tento um jeito de consolá- lo apoiando a mão no seu ombro. Fizemos parte de um esquema bem desenvolvido. Como podem ver, eu era o cérebro. Depois do tiro na perna feito por um gambé filho da puta, decidi parar. Treze meses de fisioterapia. Me dediquei aos livros, HQ’s, cinema, música e arquitetura. Abri uma construtora. Ele gastou toda a grana. Bebia muito. Apostava no animal errado. Voltou ao pó. Um dia, o irmão que escolhi, muito chapado de coca e doce, abriu a cabeça de um rapaz no balcão do bar onde frequentávamos. Meu irmão alegou que o rapaz era um alienígena disfarçado de humano e que estava ameaçando o planeta. Depois daquele ocorrido, o bar nunca mais usou balcão.

Ele entrou, arrumei o sofá e comeu o macarrão. As fritas ficaram para outro dia. Perguntou o que eu estava fazendo. Disse que ia ver uma série. Ele não sabe o que é House of Cards e nem faz ideia de quem é Kevin Spacey.

Como não? Vencedor de dois oscars. Kayser Söze. Os suspeitos. Beleza americana. Lex Luthor, do Bryan Singer. Ainda não o conhece?

“Preciso de sua ajuda”

Meu irmão persiste! O irmão que a gente escolhe. Mandei-o descansar.

Amanhã resolvemos tudo. Durma.

O café passando. O cheiro acorda o irmão. Assustado. Ainda pensa estar no pesadelo.

Senta e toma o café. Daqui a pouco sairemos e resolveremos as questões.

“Que questões? Tô fodido! Eles vão me matar.”

Relaxa, tudo será resolvido. Não falo deles. Arranjei um lugar para você ficar. Mais seguro do que aqui.

“Onde?”

Você vai saber. Coma!

Descemos do carro. Ele mais lento.

Preocupado. Não para de olhar para os lados. Caminha. Me segue. Meu irmão sempre foi a minha sombra.

“Porra, na rodoviária? Esse lugar é todo aberto. Ficou maluco?”

Fica tranquilo. O busão já vai chegar.

“Busão?”

Ora, pensou que ficaria aqui. Você precisa ficam num lugar isolado. Onde você deixou os doze quilos dos pós?

“Em um Monza estacionado perto do mercado, na esquina do seu apê”

Certo! Me passa a chave. Eu cuido do resto. Meu irmão sempre confiou em mim. Ele me admirava. Meu irmão queria ser eu, mas não conseguiu. Foi comigo que ele deu o seu primeiro tiro em um homem. Carregou corpos e os mutilou. O encontrei chorando em cima do pai. Morto no asfalto pela polícia. Lágrimas e sangue mesclando na sombra pueril. Passava de carro e não poderia deixar aquele moleque sozinho berrando para o pai acordar. Estendi a mão e abri a porta do passageiro. Mais de quinze anos juntos. Não o tratava como um filho. Cuidava dele sendo um irmão mais velho. Quando as canelas espicharam, meu irmão vendia pinos nas festas punks e de pagode, prestava as contas sozinho aos traficantes e com menos de vinte e cinco anos já tinha uma boca bem considerada na região de Araraquara. Ele se tornou o irmão que a gente escolhe.

Me entrega as chaves do carro. Sorrio para ele. Passo confiança. Obrigado!

É o seguinte, vai se sentar naquele banco, o busão já tá chegando. Eu vou comprar as passagens. Fica logo ali, virando aquele guichê. Viu? Então, por favor, me aguarde lá no banco. Não! Não se preocupe. Vai dar tudo certo! Vou te ajudar. Você é meu irmão.

Sigo para o local que havia indicado. Dobro o guichê. Paro. Encosto as costas na parede.

Me escondo. Não quero ver.

O meu irmão aguarda no banco em que pedi. Meu irmão confia em mim. Veio até mim. Dois homens se aproximam do meu irmão. Cada um sacando uma arma. Sentam cada um ao lado dele. Meu irmão olha na direção em que fui comprar as passagens. Nenhum retorno.

Tudo vai ficar bem. Você é o irmão que escolhi. Pensei nas frases. O irmão que a gente escolhe. O irmão que despachamos. O irmão que não queremos como estorvo. O irmão que escolhemos para dar aos porcos. Tento um altar dentro de mim para pedir perdão. Mas os santos viraram as costas.

Volto para o banco, meu irmão não está mais. Entrego as chaves para os dois armados. Explico a eles que o pó está dentro do porta-malas.

Vejo levarem o meu irmão. O irmão que escolhemos. Que criei e mandei embora. O irmão que teve o seu fim porque fui eu que o trouxe para o começo. O irmão que não tem mais jeito. Posso, enfim, voltar para o Kevin Spacey e ferver a água para o macarrão.

Jorge Ialanji Filholini nasceu São Paulo, em 1988. Cofundador do site Livre Opinião — Ideias em Debate, em que trabalha como editor, colunista, entrevistador, administrador e organizador de eventos culturais. Fez parte, ao lado do escritor Marcelino Freire, do projeto Quebras, como produtor e assistente de multimídia. Recentemente, publicou o seu primeiro livro de contos, Quebras: Uma viagem literária pelo Brasil. Vive em São Carlos (SP).