Conto | Joca Reiners Terron

Velho Oeste


Como viver aqui é insuportável, resolvemos sair em busca dos conselhos de Velho Oeste. Na estrada, paramos no Posto de Gasolina Encantado para perguntar ao frentista qual era o lugar onde Velho Oeste vivia. “No leste”, o frentista respondeu. “Como assim, no leste?”, eu perguntei. “Como assim, não era no sul?”, perguntou Máquina. “Como assim, não é mais pro norte?”, perguntou Pústula. “Como assim, não deveria ser mesmo no oeste?”, perguntou Paraísos Artificiais, “afinal, o cara se chama Velho Oeste”. O pessoal do Ministério da Fome é mesmo muito engraçado. Só Paraísos Artificiais que nunca entende nada. Ele é um baterista e os bateristas estão sempre chapados demais pra entender alguma coisa. “Ele sempre foi gozador, o Velho Oeste”, respondeu o frentista, “a consulta custa cinquenta centavos.” Na saída, o frentista nos deu um livro muito grosso. “Leve isto”, ele falou, “vai ser muito útil pra vocês”. O livro se chamava Guia de ruas sem saída. O autor era Velho Oeste.

O livro começava assim.

“Vocês precisam saber que a principal coisa a fazer é matar o Tempo. E não existe arma mais letal e que o Tempo mais tema do que Contar Histórias. Contar Histórias é fogo: o Tempo não resiste e acaba morrendo quietinho quietinho. Puf, é assim que ele morre. Mas agora eu vou contar uma história. Pra matar o Tempo. É uma história muito antiga. É a história de como tudo começou. É a
História de Banha

Banha era um adolescente normal, tão normal que era gordo, muito gordo. Até que ele começou a ter acne. Em poucos meses o corpo dele foi inteiramente tomado por espinhas. Eram espinhas do tamanho de furúnculos, e ficavam tão inflamadas que explodiam sem nenhum motivo (a não ser o fato de estarem inflamadas). Um dia quando ele caminhava pela rua, uma espinha que ficava na testa de Banha explodiu e caiu na boca de uma garota que passava. Em meio segundo a garota começou a 1) babar; 2) cantar um hino religioso numa língua desconhecida; 3) seu cabelo ficou verde; 4) fundou uma religião. Banha se tornou o deus idolatrado por aquela religião chamada A.C.N.E., que significa Assumpção Christiana de Novas Espécies. A Garota de Cabelos Verdes virou sacerdotisa e ordenou que Banha fosse colocado em uma estufa de vidro e que ele fosse alimentado somente com chocolates. De três em três meses, as espinhas de Banha floresciam e explodiam e o corpo dele era inteiramente lambido pelos devotos da igreja. Esse ritual se repetiu por muitos e muitos anos. Coisas que aconteciam quando os devotos lambiam as espinhas de Banha 1) inventavam coisas inúteis; 2) faziam amor com vegetais; 3) os cabelos e pentelhos ficavam multicoloridos; 4) inventavam línguas que ninguém entendia. Com o passar dos anos, Banha ficou parecido com um baiacú. Com o passar dos anos, Banha ficou parecido com uma couve-flor. Com o passar dos anos, Banha se transformou num cogumelo. Esta foi a história de Banha.

e pronto: o Tempo morreu. Não doeu nada, doeu? Bom, não são vocês que têm de me responder isso, mas o Tempo, e o Tempo já não tem maiscomo falar nada porque tá mortinho da silva. Mas eu tenho certeza de que não doeu nada. Isso não interessa. E o que é que interessa?, é isso o que as cabecinhas ocas aí de vocês devem estar pensando neste exato momento: o que é que interessa, hein, porra? É isso aí. Bom, o que interessa é que vocês estão no caminho certo. Agora basta seguir essa estrada em linha reta sem olhar pros lados. É, não olhem muito pros lados, pois aqui tem uns bichos muito medonhos. A melhor coisa que vocês têm a fazer é simplesmente não olhar pros lados e seguir em linha reta. Lá no final da estrada em linha reta tem uma curva. Mas não façam a curva: saiam da estrada e continuem em linha reta pelo deserto. Depois de atravessarem o deserto, isto deve levar uns quarenta dias, vai aparecer um platô em forma de platô. Vocês o reconhecerão assim que o virem, não se preocupem. Escalem o platô em forma de platô pelo lado Oeste, que é menos íngreme, além de ser fácil de guardar, pois tem o meu nome. Eu podia complicar, tipo, dizendo procês escalarem pelo lado leste. Mas não. A hora que vocês conseguirem chegar no cume do platô, pronto, chegaram. Estarei à espera de vocês com uma cervejinha bem gelada.”
Entramos no deserto, mas parecia mais que o deserto é que tinha entrado dentro de nós. Pior, não parecia nem um pouco disposto a sair. Continuamos a andar. Caminhamos quarenta dias e quarenta noites. Quando Pústula parecia prestes a desmaiar, avistamos o platô. Caminhamos mais quarenta dias e quarenta noites, sempre com o platôem vista. Quando vimos o platô, o platô sumiu. Nova contagem de dias e noites começou, e caminhamos quarenta dias e quarenta noites. Então avistamos o platô. Agora não mais somente Pústula que estava em vias de desmaiar, mas o Ministério da Fome inteiro. Se continuássemos assim, em breve seríamos uma ex-banda. Bastou nos distraírmos um segundo com essa digressão e pronto: o platô sumiu de novo. Andamos mais quarenta dias e quarenta noites e já estávamos nos acostumando a essa caminhada sem fim quando surgiu o platô. Era o mesmo platô ou era outro platô? Não importava, e caminhamos em sua direção. Quando o atingimos, percebemos que não só era um platô de verdade como era o platô que procurávamos, o de Velho Oeste. Começamos a escalá-lo, mas percebemos que era o lado errado. Prosseguimos assim mesmo, pois o Ministério da Fome nunca subiria pelo lado certo.

No topo do platô fazia um sol dos diabos e havia uma gruta, o que foi providencial. Na entrada tinha uma tabuleta onde estava escrito: Gruta do Velho Oeste. Em baixo dessa frase havia outra, que dizia: Se você está procurando a Gruta do Velho Leste, fica mais ao sul. Se procura a do Velho Norte, fica mais ao leste. Como o interior da gruta estava vazio e não havia nenhum sinal de Velho Oeste, abrimos o livro na última página. Lá estava escrito:
“Pô, desculpa aí. Andei meditando nos últimos duzentos anos, tão sabendo, meu corpitcho tava numa boa,só na meditação tukdam, que é uma meditação muito louca na qual o cara vai meditando e meditando e meditando até virar tipo uma samambaia. Eu já tinha virado só um saco de pele com unha e osso, daí um pardal trouxe uma semente e jogou em cima de meus restos e a semente vingou e nasceu uma samambaia e eu já tava nessa de samambaia fazia uma cara, acho que uns trinta anos, daí um ladrão muito do sem vergonha passou por aqui na semana passada e me roubou, pensando que eu fosse um pé de maconha. Agora ele tá tentando me vender no mercado negro, dizendo que eu sou a reencarnação do Buda. Vai vendo. Olha, vocês têm que me encontrar. É fácil, caminhem sempre pro sul. Quando virem um arco-íris, basta me procurar debaixo dele. Pra efeito de reconhecimento, estarei vestido de samambaia, ok. Já sei como vocês estão vestidos. Venham logo, antes que esse babaca me fume inteira. Falou e disse, báibái.”

Joca Reiners Terron nasceu em Cuiabá (MT), em 1968, e vive em São Paulo (SP). Poeta, prosador e designer gráfico, foi editor da Ciência do Acidente, pela qual publicou o romance Não há nada lá e o livro de poemas Animal anônimo. É autor também dos volumes de contos Hotel Hell, Curva de rio sujo e Sonho interrompidopor guilhotina. No romance, publicou Do fundo do poçose vê a lua, vencedor do prêmio Machado de Assis, e A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves. O fragmento publicado aqui faz parte da novela inédita O espaço sideral no estômago.